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Pão: os primeiros 14 mil anos de história

Cada vez mais gente busca fazer pão como nossos antepassados faziam. E novos estudos mostram que o pãozinho de cada dia é mais antigo do que se pensava.

Por Edison Veiga
Atualizado em 30 ago 2021, 17h30 - Publicado em 24 ago 2018, 13h57

“Eu sou o pão da vida”. “Se não têm pão, que comam brioches”. “Pão e circo”. “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Não há alimento cuja história esteja tão arraigada às sociedades humanas quanto o pão. Trata-se de um alimento simples, já que pode consistir só de farinha e água. Mas também é complexo. Afinal, são impressionantes as reações biológicas de uma massa de farinha úmida.

Acima de tudo, porém, o pão é universal, e, ao mesmo tempo, único. “Ele expressa a forma como determinada cultura interage com o seu ambiente para produzir comida”, diz o pesquisador Mikael Linder, especialista em alimentação e pesquisador da Universidade Livre de Bolzano, no norte da Itália.

Para entender as origens do pão, é preciso recuar bastante no tempo. Nossos ancestrais caçadores-coletores comiam gramíneas, por conta do sabor adocicado e porque aliviava o gosto acre da carne. Por tentativa e erro, foram descobrindo que moer sementes e misturá-las com água facilitava a ingestão. Depois veio a prática de assar essa pasta, da mesma forma como já faziam com a carne. A predileção por um dos tipos de gramínea foi um ingrediente para que nossos antepassados deixassem de ser caçadores/coletores nômades.

Até pouco tempo atrás, imaginava-se que criação do pão e a da agricultura tivesse acontecido ao mesmo tempo, há 11 mil anos, no Oriente Médio. Mas tudo indica que o pão chegou antes das plantações. É o que mostra um estudo recente, publicado em julho de 2018 por arqueólogos da Universidade de Copenhague. Com base em escavações feitas na Jordânia, eles concluíram que há 14,4 mil anos já se fazia na região um tipo de pão sem fermento, a partir de uma variedade selvagem de trigo. Ainda não era exatamente pão, porque não havia fermentação. Mas já chegava perto. E já existia pelo menos 3 mil anos antes dos primeiros sinais de agricultura.

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(Dulla/Superinteressante)

A agricultura em si nasceu conforme nossos antepassados foram selecionando as melhores e maiores sementes de certas gramíneas selvagens e plantando-as em locais fixos. Depois de séculos e séculos dessa prática, veio o resultado: o trigo doméstico. E o trigo trouxe segurança: permitiu o armazenamento de grãos mais nutritivos, abrindo as portas para o surgimento das primeiras cidades, e dos efeitos colaterais delas – a escrita, a matemática, a engenharia. O mundo em que você nasceu, em suma.

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Engraçado que o trigo doméstico é algo tão natural quanto um iPhone. Ele é tão “artificial” que as sementes ficam grudadas o tempo todo na espiga. O vento não pode disseminá-las. A reprodução do trigo, então, só é possível por meio de semeadura artificial. É como se o trigo doméstico fosse um cachorrinho de colo – um ser vivo incapaz de sobreviver no ambiente selvagem, sem humanos por perto.

Outra coisa que surgiu devagarinho com o tempo foram as técnicas de fermentação. Quem fazia mais massa do que era necessário para assar, deixando o resto guardado para outro dia, passou a observar um fenômeno interessante. Em certas ocasiões, em vez de apodrecer, a massa crescia, ganhava mais sabor e se tornava ainda mais fácil de digerir. Não era magia, era biologia: algumas dessas massas deixadas de lado entravam em contato com leveduras – micro-organismos que estavam ali de bobeira, no ar.

Esses micro-organismos, que hoje conhecemos como “fermento”, comem açúcar da massa e “defecam” gás carbônico. O gás fica preso à rede elástica de proteínas do trigo (o glúten). E o pão cresce. Ou seja: fermenta. Tudo naturalmente, posto que nossos ancestrais não tinham onde comprar fermento em pó – essa é uma invenção do século 19. O que fermentava ali era a “massa madre”. Apesar do nome pomposo, ela não tem nada demais. Pegue farinha, misture com água. Mexa, mexa, mexa e, se borbulhar, é porque as leveduras do ambiente entraram ali e começaram a produzir gás. A farinha começa a virar pão. É o que acontece na sua cozinha, é o que aconteceu na origem de todas as civilizações.

Pão e circo
Os primeiros anos da agricultura moldaram o que somos hoje. E de forma mais direta do que parece. “Mais de 75% das calorias ingeridas pela população mundial hoje vêm de plantas que nossos ancestrais domesticaram milhares de anos atrás. É intrigante pensar que, nos últimos 2 mil anos, nenhuma nova espécie importante em volume mundial de produção foi domesticada, ou seja, ainda nos alimentamos com base no desenvolvimento empírico dos nossos antepassados”, diz o bioquímico Juliano Lindner, da Universidade Federal de Santa Catarina.

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“Mais de 75% das calorias ingeridas hoje vem de plantas que nossos ancestrais cultivavavam milhares de anos atrás.”

O pão, estrela maior desse desenvolvimento, logo passou a ser produzido em escala industrial. No auge do império egípcio, há quase 5 mil anos, pães eram feitos em grande escala. São desta época os registros dos primeiros fornos feitos especialmente para o preparo dos pães. Os egípcios já faziam pães em diferentes formatos. Os mais consumidos eram arredondados e chatos, mas existiam também alongados, como as baguetes de hoje, e outros em formato de caracol. Havia ainda pães fritos na gordura e adoçados com mel e frutas.

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(Dulla/Superinteressante)

Sim. Pães sofisticados são um advento antigo. Escavações arqueológicas mostram que, quando foi destruída pelas lavas do Vesúvio, no século 1, Pompeia já produzia iguarias bem similares aos pães italianos consumidos hoje. Esses pães tinham até certas marcas que sugerem uma “assinatura” de cada padeiro. A região de Altamura, também no sul da Itália, desenvolveu um pão macio e com sabor mais lácteo – decorrente do trigo do tipo grano duro, cultivado na região – e que ainda hoje é uma referência no mundo da panificação. Sobre ele, o poeta Horácio escreveu em 37 a.C.: “É o melhor pão que se pode encontrar”.

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Aos poucos, os romanos foram aperfeiçoando a técnica. Em ‘O Banquete dos Sofistas’, Ateneu conta que os padeiros obrigavam seus ajudantes a usar luvas e máscaras, preocupados que o suor não escorresse para a massa e que a respiração não alterasse seu sabor. “Para os apreciadores havia múltiplas variedades produzidas a partir da mesma massa. A par do pão vulgar, que tinha o formato de uma bomba, havia, por exemplo, o panis artopticius, rodado num espeto. O panis testuatius era cozido dentro de um vaso de barro. Havia um pão-de-Parta, considerado uma especialidade, em cuja fabricação a massa era deixada dentro de água durante bastante tempo e só depois cozida; o resultado era um pão tão leve que podia boiar em água, ao contrário do que acontecia normalmente”, conta o historiador e escritor Heinrich Eduard Jacob, no livro Seis Mil Anos de Pão.

Com a conversão da República Romana em Império Romano, no ano 27 a.C., os padeiros se tornaram funcionários públicos. De uma hora para a outra, as 258 lojas que os padeiros tinham na cidade de Roma deixaram de ser propriedade privada, numa tentativa do Estado de controlar a produção de pão.

Afinal, já vigorava ali havia tempos a chamada política do pão e circo, na qual o governo procurava apaziguar o povo dando-lhe comida (e diversão). No ano de 72 a. C., havia 40 mil cidadãos que recebiam cereais de graça do governo. Essa bolsa-família seguia aumentando, de modo que em 49 a.C., já na gestão Julio Cesar, eram 200 mil os que viviam da mesada estatal.

À medida que conquistavam outros territórios, os romanos traziam para a capital a produção de grãos – e outras atividades econômicas. Roma, então, tornou-se a primeira metrópole urbana da história. No início da Era Cristã, a cidade tinha 1 milhão de habitantes. Hoje isso parece pouco. Mas estamos falando em 66 mil pessoas por quilômetro quadrado; a maior densidade demográfica de todos os tempos (Mumbai, a urbe mais densa de hoje, tem 30 mil; São Paulo, 7 mil). Um em cada 200 habitantes do planeta na época morava na cidade de Roma. Sem manter essa turba calminha, governo algum se sustentaria. Então, dá-lhe pão.

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O colapso do Império Romano, no século 5, abriu caminho para que os povos germânicos tomassem as rédeas – seja na política europeia, seja da panificação. O norte continente nunca foi bom para a cultura do trigo – o clima não ajudava. Enquanto a Itália serviu como berço do pão branquinho, então, a Alemanha foi o do pão escuro, à base de centeio. Não só centeio: cevada, lentilha, aveia… A tradição era misturar de tudo, para aumentar o valor nutritivo. A Escandinávia também chegou a ter um pão em cuja receita ia casca de pinheiro, palha e sangue seco de rena. Na Estônia, o centeio era misturado ao sangue de porco.

Eterno retorno 

No século 19, Louis Pasteur descobriu que os agentes responsáveis pela fermentação eram micro-organismos. Até ali, a própria noção de “micro-organismo” não existia. Isso abriu as portas para a produção industrial de fermento – sempre a partir de uma levedura específica, a Saccharomyces cerevisiae, especialista em produzir grandes quantidades de gás carbônico.

Foi uma mão na roda para os padeiros, já que mais gás significa mais pão pronto em menos tempo. Mas há um porém: isso torna a fermentação previsível. O resultado é sempre o mesmo, basicamente.
Com a fermentação natural é outra história. Primeiro, ela envolve várias espécies de leveduras – e de outros micro-organismos também. As leveduras do ambiente vivem em simbiose com certas bactérias na massa madre (a do pão de fermentação natural). A fermentação mais lenta permite às bactérias produzir ácido lático e ácido acético. Essa dupla confere mais sabor ao pão, e uma textura inconfundível.
Não é só isso. “Há várias receitas na busca pelo melhor blend de fermentos e bactérias: adicionar mel na massa madre, cascas de frutas, espuma de cerveja, água de batata…”, diz a jornalista de gastronomia Mariana Weber no livro Cozinha de Vó (lançado em julho pela SUPER).

Em Sankt Vith, no interior da Bélgica, há uma bela amostra dessa variedade. A Puratos, uma empresa que desenvolve massas para panificação, mantém uma espécie de biblioteca de massas madres vindas de várias partes do mundo – são 105 exemplares, quatro deles brasileiros: da padarias Basilicata, Cepam, Benjamin Abrahão e Brico Bread. As amostras ficam lá, em geladeiras – e são analisadas pela Universidade de Bari, na Itália, que faz um raio-X dos micro–organismos presentes em cada uma delas.

Mas não importa. Seja a fermentação natural, seja industrial, o produto dela com a massa de farinha e água segue sendo o alimento mais importante da história da humanidade. E boa parte dela segue homenageando-o todas as manhãs, sem falta. Um pão na chapa, por favor.

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