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Renascimento: Passagem para o futuro

Itália, 1400: a revolução comercial cria novas classes, abre as cidades e impõe outra mentalidade. Os efeitos sobre a cultura e a ciência são imediatos e profundos. É a explosão do Renascimento, que lança a semente do mundo moderno

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h12 - Publicado em 31 jan 1988, 22h00

José Tadeu Arantes

O olhar mostra segurança. O corpo, uma nudez sem pudor. A musculatura, relaxada, uma anatomia perfeita. A figura toda é uma procura de graça e beleza. A estátua é de um personagem bíblico, Davi, o pastor que virou rei de Israel por volta do ano 1000 a.C. Mas sua forma lembra antes um jovem deus pagão da mitologia grega. A beleza é fortemente idealizada, mas ainda assim indiscutivelmente humana. Sob a rigidez do mármore, há palpitação de vida. Diante do Davi de Michelangelo, esculpido na virada do século XVI não há dúvida de que se está contemplando um mundo diferente do da Idade Média.

De fato, desenhista soberbo, pintor, escultor, arquiteto e poeta, Michelangelo Buonarroti (1475-1564) foi uma das maiores expressões do Renascimento — essa grande convulsão cultural que sacudiu a Europa durante os séculos XV e XVI e abriu caminho aos tempos modernos. Quando Michelangelo terminou a obra, em abril de 1504, o Renascimento já havia completado um século na Itália. Foi, antes de tudo, um poderoso movimento artístico e literário, mas com grandes repercussões na filosofia e nas ciências, no pensamento político, na moda e nos costumes. Seus precursores foram poetas e prosadores italianos como Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), pintores como Giotto (1266-1336) e Masaccio (1401-1428).

Por volta do final do século XV, o movimento atravessou os Alpes para atingir a Alemanha, a região que corresponde atualmente à Bélgica e Holanda, e a Suíça. Ramificou-se também pela França, Inglaterra, Espanha e Portugal. Sua força irresistível vinha de profundas transformações econômicas conduzidas por uma nova classe social urbana em ascensão — a burguesia mercantil. Na Itália, esses mercadores haviam enriquecido de maneira fantástica graças ao comércio com o Oriente e traziam consigo uma nova visão de mundo, baseada na valorização da realidade material, em contraste com a religiosidade profunda da Idade Média.

Estabelecendo representações nos países orientais, investindo na construção de navios e no desenvolvimento do transporte terrestre, eles compravam no Oriente, para vender na Europa, matérias-primas, como minerais para tinturas, produtos de luxo, como seda e brocados, e especiarias, como cravo e canela, utilizados na conservação e tempero dos alimentos e na produção de remédios.

O enorme dinheiro acumulado, administrado por novos métodos de contabilidade, era depois multiplicado várias vezes, por meio de atividades bancárias, com empréstimos a juros, e manufatureiras, com a produção de tecidos, mineração, siderurgia e metalurgia.

Com esses recursos econômicos, obtinham ainda dos príncipes governantes a concessão para cobrar tarifas aduaneiras e cunhar moedas. Subordinada à burguesia, surgia também uma nova e numerosa classe de assalariados, que trabalhavam juntos nas primeiras oficinas ou separados, cada qual em sua casa, recebendo dos patrões matérias-primas e ferramentas e entregando-lhes o produto acabado.

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Era uma verdadeira revolução na vida européia, com a decadência das fechadas e hierarquizadas corporações de artesãos, que monopolizavam a produção industrial na Idade Média. Também os camponeses autônomos passavam a dedicar parte de seu tempo ao trabalho assalariado pelo sistema doméstico.

Por outro lado, a crescente demanda de alimentos e matérias-primas pelas cidades em expansão levava também a uma transformação na produção agrícola. Esta se voltava cada vez mais para o mercado e, portanto, deixava de ser fechada e auto-suficiente. O lugar de honra na estrutura social, antes ocupado pela nobreza latifundiária, era agora disputado pela burguesia ascendente. Na Itália, a mais ilustre família da nova classe de comerciantes enobrecidos foi a dos Medici, que governou Florença do século XV ao XVII.

Giovanni (1360-1429), o fundador da família, havia enriquecido graças ao comércio com o Oriente e ao monopólio da produção de alumínio, que obteve do papa. Somente no ramo têxtil, empregava mais de 10 mil trabalhadores, distribuídos por 300 indústrias — números para nenhum empresário moderno pôr defeito. Com o dinheiro e uma habilidosa política de casamentos, seus descendentes exerceriam enorme influência em toda a política européia, tornando-se príncipes e papas.

Sob o governo de Cosimo de Medici (1389-1464), filho de Giovanni, e principalmente de Lorenzo, o Magnífico (1449-1492), neto de Cosimo, Florença foi a capital do Renascimento. Arquitetos, escultores e pintores, como Donatello, Brunelleschi, Ghiberti e Filippo Lippi, patrocinados por Cosimo — ou Botticelli, o próprio Michelangelo e Leonardo da Vinci, protegidos por Lorenzo —, davam à corte dos Medici brilho, prestígio e sofisticação incomparáveis, que compensavam em muito as origens plebéias da família. O Renascimento foi também uma época de políticos refinados — e destituídos de escrúpulos.

Homens como Cesare Borgia (1475-1507), filho do papa Alexandre VI, que tentou conquistar toda a Itália para si e fazia da conspiração e assassínio de seus opositores sinistras obras de arte. E Niccoló Machiavelli (1469-1527), o fundador da ciência política moderna, via em Cesare o ideal do príncipe renascentista e nele depositou sua esperança de unificação da Itália. O que a impediu foi a rivalidade entre as cidades-Estado e a política papal.

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Cultos, humanistas, mundanos e ambiciosos ao extremo, os grandes papas renascentistas não eram suficientemente fortes para promover eles mesmos a unificação do país, mas eram fortes e ardilosos o bastante para impedir que outro o fizesse. Paradoxalmente, a pulverização da Itália representou um forte estímulo ao Renascimento. Em lugar de um único centro de atração, representado em outros países pela corte real, vários centros, como Florença, Roma, Veneza e Milão, disputavam e patrocinavam a cultura. Ter a sua volta um punhado de artistas e intelectuais brilhantes era prova de prestígio para os príncipes e papas da época.

Nos jardins do palácio Medici, Cosimo fundou em 1440 a Academia Platônica, copiada da famosa escola de Filosofia ao ar livre mantida por Platão em Atenas, no século IV a.C. Sob a direção de Marsilio Ficino (1433-1499), a Academia tornou-se durante o governo de Lorenzo o mais importante centro de irradiação cultural do Renascimento. Ajudado por um grupo de eruditos bizantinos, fugidos de Constantinopla após a ocupação da cidade pelos turcos, em 1453, Ficino realizou um imenso trabalho de tradução e comentário das obras de Platão e seus seguidores. A biblioteca da Academia reunia enorme coleção de manuscritos gregos.

A obsessão do homem culto renascentista por tudo que viesse da Antiguidade clássica greco-romana levou os historiadores dos séculos XVIII e XIX a uma imagem tão fácil quanto falsa do Renascimento. A Idade Média teria sido um período de completo esquecimento da herança cultural da Antiguidade. Rompendo radicalmente com o obscurantismo medieval, o Renascimento — daí o seu nome — seria o renascer da cultura clássica. Essa interpretação é amplamente contestada pela pesquisa histórica do século XX. Nem a Idade Média foi, em toda a sua duração, um período de trevas nem o Renascimento representou uma ruptura total com a Idade Média.

Quem leu o livro O nome da rosa, de Umberto Eco, ou assistiu ao filme baseado nele, teve uma brilhante amostra da veneração quase religiosa do sábio medieval pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a. C.). A obra de Aristóteles formava uma verdadeira enciclopédia do saber humano. Nela se encontrava de tudo: Matemática e Lógica, Física e Metafísica, Medicina e Astronomia, Ciências Naturais e Psicologia, Política, Ética e Estética. Embora se baseasse mais na especulação do que na observação direta da natureza, era para o mundo das coisas concretas que ela se voltava. A Igreja refutou muito em aceitar esse corpo de conhecimentos. Aristóteles teve que ser, de certa forma, cristianizado por filósofos como São Tomás de Aquino (1224-1274), antes que sua obra se transformasse numa segunda Bíblia da Idade Média.

Assim, o aristotelismo tornou-se, pouco a pouco, um congelado sistema de dogmas, verdades prontas e acabadas, em que havia um lugar para cada coisa. Cada coisa devia estar no seu lugar e nenhum espaço existia para a inovação — um espelho da organização social da época. Foi justamente contra esse sistema petrificado que o homem culto do Renascimento se rebelou, estimulado pelas formidáveis transformações materiais que o desenvolvimento burguês colocava diante de seus olhos. O platonismo da Academia florentina, altamente espiritual e místico, era antes de tudo uma reação ao aristotelismo na versão consagrada pela Igreja medieval.

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Por outro lado, se admirava o passado clássico, o homem renascentista tinha também a consciência de que o estava ultrapassando. A febril exploração dos mares — que levou o português Bartolomeu Dias a atingir a ponta meridional da África (1487), o genovês Cristóvão Colombo a alcançar a América (1492), o português Vasco da Gama a chegar à Índia (1498) e também o português Fernão de Magalhães a circunavegar a Terra (1519-1522) — exerceu um tremendo impacto no Renascimento. Ficava claro que havia muito mais maravilhas no mundo do que haviam pensado os gregos.

O desenvolvimento das cidades na época renascentista ampliou o lugar ocupado pela cultura. Antes, o conhecimento estava confinado às raras universidades e aos mosteiros. Agora, a multiplicação das universidades, junto com a invenção da imprensa de tipos móveis pelo alemão Johannes Gutenberg (1400-1468), permitia uma difusão muitíssimo maior do conhecimento. A laboriosa atividade do copista medieval, que reproduzia a mão os preciosos manuscritos gregos e latinos, era substituída com enorme vantagem pelo trabalho dos impressores.

Do ponto de vista cultural, um dos resultados mais espetaculares da Reforma protestante foi a tradução da Bíblia do latim para o alemão, por Martinho Lutero (1483-1546) e o amplo movimento de educação inspirado pela idéia de que todo fiel deveria ser capaz de ler e interpretar por conta própria as Escrituras Sagradas. No mundo da grande cultura, porém, o latim continuava a ser a língua oficial. Um dos traços mais característicos da época, aliás, era a existência de uma multinacional comunidade de eruditos que dominavam o saber clássico e não só se expressavam em latim como tinham seus próprios nomes latinizados.

Eles formavam o que o escritor húngaro Arthur Koestler (1905-1983) denominou a “República das Letras” e foram a própria alma do Renascimento. Para esses homens, a demolição do sistema escolástico representava uma enorme liberdade de pensamento, a possibilidade de uma especulação intelectual sem limites. A verdade já não devia ser procurada nos livros de Aristóteles, mas na grande obra da natureza. Ocorre que a destruição da ciência aristotélica deixou o Renascimento desprovido de uma ciência sistematizada. Os sábios da época estavam deslumbrados demais com a infinita variedade das coisas deste mundo para se dar ao árido trabalho de sistematização dos novos conhecimentos.

Eles procuravam por toda a parte a diversidade, lançavam-se à aventurosa exploração de mundos desconhecidos, criavam jardins botânicos e jardins zoológicos, colecionavam minerais, dissecavam cadáveres humanos e de animais, mediam o movimento dos astros, escreviam minuciosas descrições das mais diversas atividades profissionais e técnicas, mas seus tratados não ultrapassavam ainda o estágio dos catálogos. O alemão Leonhard Fuchs (1501-1566), por exemplo, escreveu e arrolou em ordem alfabética cerca de quinhentas plantas. Foi incapaz, porém, de formular qualquer teoria sobre a vida vegetal.

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As exceções são o monumental livro de anatomia do belga André Vesálio (1514-1564), De humani corporis fabrica (A organização do corpo humano), e o livro de cosmologia do polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), De revolutionibus orbium coelestium (A revolução das esferas celestes). Nele, o cônego Copérnico afirmava, contrariando as teorias dominantes, que o Sol — e não a Terra — estava no centro do Cosmo. Antes, o alemão Nicolau de Cusa (1401-1464) já havia dito que o Sol era apenas o centro de um sistema, e não do Universo.

As idéias de Cusa influenciaram o filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600). Ele afirmava existirem no Universo infinitos mundos habitados, como a Terra. Mas nem Cusa nem Bruno eram astrônomos, e suas corajosas hipóteses permaneceram meras especulações. A grande sistematização científica na qual iria se basear o pensamento moderno foi um produto do século XVII. Mas aí já não se pode falar em Renascimento. No período renascentista, assistiu-se a um enorme interesse pela magia e pelo hermetismo. A idéia de um Renascimento banhado em ciência, em oposição a uma Idade Média mística e supersticiosa, é outro estereótipo que não resistiu à pesquisa histórica.

Um trabalho mais orientado para a ciência, embora dispersivo, como o de Leonardo da Vinci (1452-1519), permaneceu inédito. Para os homens cultos do Renascimento, já que Aristóteles não era mais a autoridade suprema, então tudo era possível. E foi com óculos de mágico que procuraram ler o livro da natureza. Quando, em 1460, um agente de Cosimo de Medici trouxe-lhe da Macedônia um manuscrito grego com catorze dos quinze tratados que constituíam o Corpus hermeticum, isso causou enorme sensação. O texto era atribuído a um autor mitológico, Hermes Trismegisto, ou Hermes “Três Vezes Grande”, síntese do deus egípcio Toth, inventor do cálculo e da escrita, e do deus grego Hermes, mensageiro e detentor dos segredos dos deuses.

Na verdade, tratava-se de um escrito dos primeiros séculos da era cristã, originário provavelmente de Alexandria, no Egito, o grande centro da cultura helenística. Com caráter misterioso, os manuscritos combinavam filosofia grega e helenística (Pitágoras, Platão, Aristóteles, Plotino etc. ), cabala (o misticismo judaico) e elementos cristãos. Seu corpo englobava Matemática e Alquimia, Astronomia e astrologia, magia e várias formas de ocultismo. A idéia central era a de uma afinidade mística entre o mundo e o homem, sendo este capaz de descobrir elementos divinos dentro de si.

Pela tradução de Ficino, o diretor da Academia Platônica, esses escritores exerceram enorme influência no Renascimento, mexendo com as artes, as ciências e a Filosofia. Seu principal herdeiro foi o suíço Paracelso. Ele pode ser considerado o mais acabado representante de um momento na História da civilização que, sem romper drasticamente com o passado, plantou uma semente de exuberância e ousadia da qual nasceria o mundo moderno.

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Para saber mais:

Colombo: herói (ou vilão) do novo mundo?

(SUPER número 11, ano 5)

Michelangelo, o artista do cristianismo

(SUPER número 2, ano 6)

Um tipo muito curioso

O próprio nome latino que adotou já era um exagero: Theophrastus Philippus Aureolus Bombastus Paracelsus. Não se sabe se a palavra Paracelsus queria dizer “superior a Celsus”, o célebre médico romano do século I. Mas não há dúvida de que Theophrastus von Hohenheim, como foi batizado, se considerava superior a qualquer medalhão da Antiguidade. Esse personagem tipicamente renascentista nasceu numa família de médicos, em Einsiedeln, Suíça, em 1493. Depois de estudar nas universidades de Basiléia (Suíça) e Ferrara (Itália), tornou-se um Robin Hood da medicina, cobrando honorários exorbitantes dos ricos e tratando os pobres de graça.

Seu espírito anticonvencional e incansável curiosidade, aliás, surpreendem mesmo pelos padrões atuais. Condenava com estardalhaço as ciências tradicionais, ao mesmo tempo que procurava aprender com os camponeses outros métodos de cura. Bebedor de marca maior, vencia os camponeses em monumentais competições etílicas nas tabernas; depois, passava a noite ditando seus tratados.

O fato de ter salvado a vida do influente editor Johannes Froben e de ter curado também o escritor e filósofo humanista Erasmo de Rotterdam (1466-1536) assegurou-lhe, em 1527, o cargo de médico municipal e professor de Medicina em Basiléia. Logo, porém, entrou em atrito com as autoridades acadêmicas, recusando-se a apresentar seus documentos de qualificação, fazendo conferências em alemão em vez de latim e admitindo cirurgiões-barbeiros em suas classes. Com a morte do protetor Froben, teve de abandonar a cidade — não sem antes queimar em praça pública o célebre cânon de medicina do persa Avicena (980-1037). Daí para a frente, até sua morte, em 1541, perambulou de lugar em lugar, como uma espécie de cavaleiro andante do anticonvencionalismo.

Alquimista, ao lado dos “quatro elementos fundamentais” enunciados no pensamento grego clássico — terra, água, ar e fogo —, reconhecia “três princípios básicos” — sal, enxofre e mercúrio —, que estariam presentes, em diferentes proporções, em todas as substâncias. O sal, simbolizado pelas cinzas que sobrevivem ao fogo, seria responsável pelo estado sólido; o enxofre, que desaparece ao queimar, pela natureza inflamável das coisas; e o mercúrio, que se volatiliza, pelo estado líquido e gasoso. Uma força geradora universal, o arqueu, combinaria os três princípios. De uma falha dela se originariam as doenças. Paracelso é reconhecido como um dos precursores da homeopatia.

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