Sal: Ouro em Grãos
O sal está presente na vida humana desde os tempos antigos. Símbolo religioso, moeda, fonte de poder e motivo de conflitos, influiu até no destino das nações.
Quem já não ouviu o comentário: “Ela é linda, mas não tem o menor sal”? E a expressão, famosa por ter sido atribuída a Jesus Cristo, de que seus seguidores eram “o sal da terra”? Alusões como essas são mais que figuras de linguagem. Como sinônimo de charme ou de virtude, sugerem numa pitada a enorme importância do sal na trajetória do homem – conseqüência, sem dúvida, de sua presença em todo canto. O sal, com efeito, existe nos mares e nos continentes, nas células e no líquido que as envolve. O cérebro dos animais superiores comanda a ingestão de sal em caso de deficiência aguda no organismo. Os rins limitam as perdas do sal na urina. A vida sem sal, portanto, não só não teria graça, como metáfora, nem seria muito fácil, como fisiologia. Por isso, o sal acabou temperando toda a história humana. O sal começou a ser explorado e usado deliberadamente no início do Período Neolítico, cerca de 10 mil anos atrás, quando surgiram a agricultura, a pecuária e as primeiras comunidades rurais.
Em conseqüência, o homem passou a consumir, além das carnes assadas ricas em sal, carnes e cereais cozidos, mais insossos, precisando assim ingerir quantidades suplementares de cloro e sódio – os componentes do sal. Acredita-se que foi observando o gado localizar fonte e poços salgados que o homem chegou ao sal. É sabido que animais com deficiência de sódio no organismo são capazes de achar, pelo olfato, águas salgadas.
Dependendo tanto do sal, não é de admirar que o homem o incorporasse a suas crenças. Na Antigüidade, os assírios já o utilizavam nos cultos. Na religião judaica, por outro lado, o sal sempre teve forte presença simbólica. O Antigo Testamento narra, por exemplo, o caso da mulher de Lot, transformada em estátua de sal porque olhou para trás ao fugir de Sodoma e Gomorra, destruídas pela ira divina. Para os hebreus, o sal era um elemento purificador, símbolo da perenidade da aliança entre Deus e o povo de Israel. O ritual de batismo da Igreja Católica Romana, em que grãos de sal são colocados nos lábios dos recém-nascidos, reproduz a crença judaica no sal como purificador.
Na Idade Média, porém, a antiga santidade do sal acabou se transformando em malefício, ao mesmo tempo em que proliferavam superstições como a de que desperdiçar sal era mau agouro na certa, além de ignóbil. Um magnífico exemplo disso aparece na obra de Leonardo da Vinci ( 1452-1519 ). Ao pintar A última ceia, Da Vinci colocou diante de Judas um saleiro derrubado. Uma das crendices da época dizia que, se uma pessoa derramasse sal, deveria pegar alguns grãos caídos e jogá-los para trás do ombro esquerdo – o lado que representa o mal. Em tempos mais recentes, o sal passou a significar esquecimento, esterilidade. Na sentença que condenou o inconfidente Tiradentes à morte em 1792, os juízes portugueses mandaram salgar o chão de sua casa, para que ali nada mais tornasse a nascer.
Milênios depois que o homem transformou em caminhos as trilhas dos animais em busca de água salgada, as rotas do sal cruzaram o globo em incontáveis direções. O historiador grego Heródoto ( 484 a.C. – 430-420 a.C.) fala das caravanas que atravessavam os mares Mediterrâneo e Egeu no rumo das salinas do Egito e da Líbia. No tempo do Império Romano, os soldados recebiam parte de sua paga em sal – daí a palavra salário.
Também se usava o sal como moeda para comprar escravos. Ao perceber que serviam para conservar e dar sabor à comida, além de curar feridas, os romanos achavam que os cristais de sal eram uma dádiva de Salus, a deusa da saúde – e em sua homenagem cunharam o nome. Dos muitos caminhos que vão dar em Roma, um dos mais movimentados até hoje é a Via Salaria, a antiga rota por onde circulavam carros cheios dos preciosos cristais. As viae salariae riscavam a Europa de oeste a leste, alcançavam a atual Turquia e desciam pelo Oriente Médio e norte da África. Na África, por sinal, na região do sub-Saara onde hoje é a Mauritânia, mercadores trocavam sal por ouro – um peso pelo outro. Na Abissínia, atual Etiópia, na África Oriental, o sal era a moeda do reino. Do mesmo modo, na África Central, bolos de sal era dinheiro. O grande comércio marítimo do sal só se desenvolveria no final do século XIII, servindo para transferir o excesso da produção salinífera. Isso ajudou a enriquecer Veneza, a península Ibérica, o norte da Europa e algumas regiões da França.
Atualmente, graças aos métodos físicos e químicos, o sal passou a segundo plano como conservante de alimentos. Mas até o final do século XIX era o único agente que preservava certas comidas. Na verdade, o sal desidrata a carne e o peixe, impedindo o surgimento de vermes na área salgada. Basta isso para dar uma idéia da importância econômica do sal na Europa, em cujos portos e estradas dezenas de milhares de toneladas do produto circulavam todo ano, na passagem dos tempos medievais para o Renascimento. Fosse qual fosse a sua origem – da salina à beira-mar ou da mina continental subterrânea -, a propriedade era sempre grande. E os proprietários, segundo as leis, eram sempre os soberanos.
Nessa condição, eles concediam o privilégio da exploração da salina ao nobre ou à autoridade eclesiástica. Em troca recebiam uma cota da produção. Esta podia ser determinada em volume (por exemplo, a produção de uma salina em cada cinco) ou em tempo (produto de um certo número de horas de trabalho). Já os instrumentos necessários à produção eram propriedade dos concessionários. Características do feudalismo, os contratos entre o rei e os nobres eram perpétuos. Desse modo, o senhor podia sublocar a terceiros a exploração da salina, mediante pagamento. Estes, por sua vez, podiam ceder a salina a outros com a condição de também eles receberem um cota.
Com isso, formava-se uma pirâmide de direito de rendas. Na base estavam os salineiros, que não eram empregados, mas pequenos empreendedores independentes que vendiam sua produção. Essa estrutura impediu que houvesse diversos monopólios na extração do sal. Mas nada era menos livre do que o seu comércio, estritamente regulamentado no atacado como no varejo. No mar Adriático, a Sereníssima República de Veneza baseou sua riqueza e seu poder no monopólio comercial do sal – e não se encontra um único tratado no qual Veneza estivesse envolvida que não tivesse o sal como um dos principais assuntos. E Veneza é apenas um exemplo do sistema de monopólio.
Até mesmo o transporte era uma exclusividade das corporações medievais, que garantiam a seus membros a hereditariedade do privilégio. A partir do século XII, os Estados passaram a se ocupar gulosamente dos impostos que o sal podia levar para seus cofres. Como se tratava de gênero de primeira necessidade, seu transporte podia ser facilmente controlado pelo fisco. Não era o valor do sal – que era pequeno -, mas a quantidade utilizada – que era grande -, que servia de base para a taxação. O sal era a única mercadoria que podia ser taxada em exorbitantes 2000 por cento, sem que as pessoas pudessem deixar de consumi-lo. Alguns Estados deram-se ao luxo de abrir mão do imposto sobre o tabaco, compensando a perda com aumentos escorchantes do imposto sobre o sal.
Com tão doces lucros, reinos e impérios puderam financiar seu esporte predileto – a guerra. Na interminável Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, que durou de 1337 a 1453, o sal teve um papel importante. O rei francês Filipe VI, que reinou de 1328 a 1350, ordenou que todo o sal fosse recolhido a fim de que a Coroa tivesse reservas suficientes para evitar o pesadelo de um bloqueio de sal em seu território – sinônimo de capitulação certa em poucas semanas. Naturalmente, a salgadíssima taxação desgostava o povo. A partir de 1378, um estado de revolta quase permanente instalou-se entre as populações urbanas do norte da França até Paris, assim como entre as populações rurais do sul do Maciço Central francês e ainda entre os artifícios e operários das cidades de Flandres (na França, Bélgica e Holanda), onde já florescia uma poderosa indústria têxtil.
A onda de protestos culminou a 27 de abril de 1413 em Paris com a revolta dos açougueiros, grandes consumidores de sal para a conservação da carne, o preparo de peles e a fabricação de salsichas e embutidos. O movimento terminou na criação de um código administrativo de 259 artigos, com regras minuciosas para a cobrança dos impostos. A lei, que devia funcionar em favor do povo, é a verdadeira certidão de nascimento da gabelle – o imposto sobre o sal não mais contestado pela população. A gabelle conservou os direitos da realeza, mas cortou os lucros de nobres e eclesiásticos.
Mas a ganância dos soberanos franceses não tinha limites nem conhecia a prudência – e os reis não resistiram à tentação de fazer do sal sua maior fonte de renda. Segundo o historiador Fernand Braudel (1902-1985), a França no século XVII era o maior produtor de sal marinho da Europa, o primeiro exportador mundial, e a fortuna obtida dos impostos sobre o sal equivalia a todas as rendas que o rei da Espanha recebia de suas colônias.
Pode-se dizer que o luxo da corte de Versalhes era feito de sal. Às vésperas da Revolução Francesa, o imposto sobre o produto representava 13 por cento das receitas totais do Tesouro real. Deu no que deu: a sangria do sal contribuiu em não pouca monta para alimentar o ódio popular à monarquia, tendo assim importante papel na Revolução Francesa, que lançaria as bases da democracia moderna. Um século e meio depois, o sal ajudaria a desencadear outro movimento igualmente importante para os destinos do homem – a luta contra o colonialismo. De fato, em 1930, em protesto contra o aumento da taxação sobre o sal imposto pela Inglaterra na Índia, o advogado Mahatma Gandhi, o líder da não-violência, conduziu levas de peregrinos até o litoral, para ali fazerem seu próprio sal – um passo decisivo no processo que culminaria em 1948 com a independência da Índia do jugo inglês.
Para saber mais:
(SUPER número 12, ano 3)
(SUPER número 12, ano 8)
A saúde e o saleiro
O sal mais importante para o organismo humano é justamente o cloreto de sódio. Junto com o potássio, o sódio é responsável pelo equilíbrio hídrico do organismo, protegendo-o das excessivas perdas de líquido. Ajuda também a manter a atividade dos músculos, incluindo o coração. A falta de sódio gera fraqueza, apatia, náuseas e câimbras. O excesso também é prejudicial – pode até levar à morte. Só devem moderar o consumo de sal as pessoas com tendências à hipertensão, ou seja, pressão alta. Pois, à medida que o organismo retém água, o líquido aumenta o volume sanguíneo, provocando a hipertensão.
O excesso de sal também aumenta o trabalho dos rins. Normalmente, os rins não devem deixar que o sal se acumule no organismo. Mas, em excesso, impõe uma sobrecarga aos rins – sem falar no coração. Se todo o sal não é filtrado, passa a reter água, aumentando o volume de sangue em circulação. O resultado é a pressão alta. Elevadas doses de sal, aliadas à incapacidade que um organismo tem de expeli-las, causam edema ou inchaço – como é popularmente chamado – nas mãos, tornozelos ou pés.
Ultimamente, na esteira das denúncias de que o açúcar refinado seria responsável por um extenso rol de males físicos e até psíquicos, os partidários da alimentação natural voltaram sua baterias também contra o sal refinado, tido por alguns autores como um verdadeiro assassino.
Do mar à mesa
Quimicamente, a palavra sal designa uma categoria de substâncias que resultam da ligação entre um grupo de moléculas originadas de um ácido com um grupo que se origina de uma base (a soda cáustica, por exemplo, é uma base). O sal mais comum é o cloreto de sódio (NaCl) e pode vir de três fontes: do mar, das minas de sal-gema – geralmente em depósitos subterrâneos – ou das chamadas salmouras de subsolo, decorrentes da forte concentração de sal de mares ou lagos interiores, como o mar Morto, onde tudo flutua, tamanha a quantidade de sal.
Nos países tropicais ou marítimos, o sal costuma ser obtido pela evaporação da água do mar, através de um processo simples, que permite obter grandes blocos. Empilhadas no aterro das salinas, as pedras passam pela “cura”, ou seja, a limpeza dos cristais – um trabalho para a água das chuvas que dissolve as impurezas restantes. Na extração do sal das salmouras, a evaporação da água e a conseqüente precipitação do sal são conseguidas pelo aquecimento da água, por meio de serpentinas de vapor.
Já nas minas de sal-gema, o sal é recolhido em estado sólido, como se fosse pedra, ou injetando-se água no subsolo para formar salmouras, que serão bombeadas para a superfície. Este, porém, ainda não é o sal branquinho usado na cozinha. Depois de lavados e limpos, os cristais são beneficiados industrialmente. Para não empedrar, misturam-se a eles substâncias como fosfato de sódio e carbonato de magnésio. No Brasil, o sal é enriquecido também de iodo – fórmula encontrada para evitar o bócio, doença causada pela falta de iodo no organismo.
Papel de primeira
O sal é a matéria-prima básica para uma centena de atividades industriais. Sem ele não haveria, por exemplo, nem cloro nem soda cáustica. E sem ele seria difícil tornar potável a água que se bebe ou encontrar papel branco – junto com outros elementos químicos, a soda cáustica e o cloro clareiam o papel. Também não haveria tintas, vidros, vernizes, cosméticos, porcelanas, plásticos e explosivos. A humanidade não teria panos, películas, aditivos, produtos metalúrgicos e farmacêuticos. Tudo isso porque o cloro e o sódio são as bases para a obtenção de produtos químicos que derivam do sal.
O PVC (cloreto de polivinila), por exemplo, é um material básico para a indústria de plásticos. O clorofórmio é a base dos anestésicos e o cloreto de cálcio está presente nos refrigerantes, fungicidas e combustíveis. O mesmo ocorre com os derivados de sódio – óleos vegetais, sabão, tecidos são alguns dos produtos feitos a partir dele, portanto, do sal. E sem o nitrato de sódio não existiriam os fertilizantes, a dinamite e os fogos de artifício.
Proibido produzir
O uso do sal no Brasil foi introduzido pelos colonizadores portugueses. Os índios simplesmente não gostavam do produto. Em 1555, o missionário francês frei André Thevet escreveu: “Eles não querem comer coisas salgadas e proíbem que suas crianças comam”. Já o naturalista holandês Martius relatou que os canibais da tribo umauás não comeram a carne de um desertor espanhol “por acharem-na muito salgada”. O consumo de sal no Brasil Colônia era grande. Os brancos e os mestiços usavam-no na alimentação, na salga de carnes e também nas rações para o gado europeu trazido ao país. Com tal mercado, a Coroa portuguesa instituiu em 1631 o monopólio do produto, para engordar as rendas do Tesouro em Lisboa.
Assim, apesar do enorme litoral, a produção salineira nativa era praticamente inexistente. Os portugueses permitiam apenas que o sal extraído no Nordeste e em Cabo Frio, na então capitania do Rio de Janeiro, fosse usado para consumo local. E, ainda assim, mediante o pagamento de taxas sobre a produção. O monopólio sobre o sal durou até 1801. Nesses 170 anos, o alto preço do produto e as crises constantes de desabastecimento geraram muito contrabando e algumas revoltas. O fim do monopólio era parte de uma política destinada a ampliar a produção de gêneros no Brasil, com vistas ao comércio em Portugal. De todo modo, o monopólio teria sido liquidado com a abertura dos portos e, conseqüentemente, a liberação do comércio, em 1808.
Começou então a desenvolver-se a indústria extrativa salineira, no Nordeste e em Cabo Frio – a mesma que existe até hoje. Das salinas do Rio Grande do Norte saem 85 por cento da produção nacional, que em 1987 alcançou 2 milhões de toneladas. Uma característica da indústria salineira do Brasil é ser basicamente de origem marinha. Nos últimos dez anos, a prospecção de petróleo na plataforma continental revelou jazidas de sal-gema em Sergipe, Alagoas e Amazonas. Estas minas, porém, se encontram a grande profundidade, o que dificulta sua exploração.