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Terror na cabeça

Os terroristas que atacaram os Estados Unidos não são como psicopatas que você vê no cinema. Eles se parecem mais com soldados numa guerra. (E, se bobear, até você podia ser um deles.)

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h20 - Publicado em 30 set 2001, 22h00

Rodrigo Cavalcante

A alemã Chaille Wendt estava tendo um dia de trabalho normal na Universidade Técnica de Hamburgo no dia 11 de setembro até que, bem, você já sabe. Ela parou para ver as imagens do atentado contra Nova York, ficou em silêncio e fez para si uma pergunta a um só tempo óbvia e de difícil resposta: que mente humana seria capaz de realizar algo tão abominável? Enquanto assistia a tudo, a cerca de 6 000 quilômetros de distância, Chaille (pronuncia-se Coile) sequer podia imaginar que um dos 81 passageiros do Boeing 767 da American Airlines – o primeiro a bater em uma das torres do World Trade Center – tinha estudado no mesmo prédio onde ela estava naquele momento. No início do ano passado, ela havia se encontrado algumas vezes com o simpático Mohamed Atta, aluno do mesmo departamento de planejamento urbano em que ela trabalha. “Ele era gentil, calmo e extremamente educado”, disse Chaille à Super alguns dias após o ataque.

“Seu trabalho de conclusão de curso – um projeto sobre o planejamento da cidade síria de Aleppo – mereceu elogios dos professores.” Mas o FBI, a polícia federal americana, tem outra imagem de Mohamed. Segundo os investigadores, ele era o seqüestrador que pilotou o Boeing em direção à torre norte do World Trade Center às 8h48 daquela manhã de terça-feira – e deu início à primeira crise internacional de peso do século XXI.

O que teria se passado na mente de Mohamed Atta minutos antes de entrar no avião? Que espécie de convicção arraigada é essa capaz de fazer com que ele e outros 18 homens embarcassem tranqüilamente em uma missão – como prova de frieza, alguns deles tiveram a calma de pedir para o vendedor de bilhetes creditar o trecho no cartão de milhagem da companhia aérea – cientes de que não voltariam vivos? O ódio dos seqüestradores e de terroristas como Osama bin Laden é desumano, fruto de um cérebro doente, ou humano demais, vítima de certezas inexoráveis?

Se a primeira imagem que lhe veio à cabeça após o ataque foi a do terrorista em vestes de um maníaco fanático, com um sorriso perverso e macabro, é bom começar a duvidar dos estereótipos. Apesar de não excluir a existência de psicopatas infiltrados em grupos terroristas, a maioria dos estudiosos diz que, assim como Atta, ninguém precisa ser um Hannibal Lecter para fazer o que se suspeita que ele fez. Para os especialistas, qualquer um, sob certas circunstâncias, seria capaz de cometer um ato tão abominável. Inclusive você, ou eu.

“A idéia de que terroristas são mentalmente doentes não corresponde à realidade”, diz Philip Schrodt, especialista em terrorismo da Universidade de Kansas, Estados Unidos. “Eles não são pirados que ouvem vozes do além. São pessoas que acreditam estar agindo certo e farão de tudo para atingir seus objetivos.” Quando perguntado sobre por que alguém daria a própria vida por uma causa, qualquer que seja ela, Schrodt diz: “Procure a lista de soldados americanos que ganharam medalhas de honra na Guerra do Vietnã e você vai encontrar dezenas de homens que morreram em ações suicidas pela mesma lealdade ao grupo que moveu as pessoas que cometeram o atentado”. Apesar de reconhecer que há uma clara diferença entre uma guerra e um ato terrorista – o ato terrorista é inesperado e, por isso, mais covarde, atingindo bem mais inocentes –, ele diz que a mente dessas pessoas funciona como a de um soldado.

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“Na cabeça deles, a guerra existe, eles estão do lado do bem e não conseguem enxergar civis inocentes. Para eles só há inimigos.”

O historiador de assuntos religiosos Philip Jenkins, da Universidade da Pensilvânia, também nos Estados Unidos, tem uma visão parecida. Ele costuma perguntar para os seus alunos o que acham dos pilotos americanos que derrubaram as bombas atômicas que mataram mais de 120 000 civis – 20 vezes mais que as cerca de 6 000 vítimas no ataque a Nova York e Washington – em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. “Como havia uma guerra e eles representavam uma nação inteira, ninguém poderia chamá-los de extremistas”, diz Jenkins. “Terroristas também acham que estão numa guerra e representam uma causa, mesmo que essa batalha não seja entre nações.” Assim como os kamikazes japoneses e os soldados americanos que sabiam que não voltariam de suas missões no fronte ocidental, os seqüestradores que atacaram Nova York também acreditavam que estavam destruindo um inimigo em nome de uma causa justa. “Dentro da sua lógica, não havia inocentes nas torres do World Trade Center”, diz Jenkins.

Essa explosão de ódio e violência motivada por uma causa – por mais absurda que seja – é o que separa, para os pesquisadores, o perfil de um terrorista do de um psicopata. “O psicopata tem um problema no cérebro que o torna incapaz de sentir emoções, culpa e arrependimento como as pessoas normais”, diz Renato Sabbatini, neurocientista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É como um problema na configuração do hardware de um computador.” Ele diz que imagens dos cérebros dessas pessoas quase sempre revelam que eles têm uma atividade deficiente no lobo frontal, a região abaixo da testa que cuida das emoções. Por não sentirem remorso ou qualquer inibição de origem emocional, são capazes de cortar suas vítimas com a tranqüilidade de quem prepara um jantar numa noite agradável. “É pura ingenuidade achar que os 19 homens que participaram dos atentados contra Nova York e Washington se enquadrem nesse perfil”, diz Sabbatini.

O psiquiatra Henrique Del Nero, da Universidade de São Paulo (USP), diz que há outra diferença fundamental que coloca em lados opostos esses dois tipos de criminosos: “Psicopatas não agem como suicidas, eles sentem prazer na violência e nunca interromperiam esse prazer se matando”, diz Del Nero. “Já os terroristas podem se suicidar porque têm a convicção de que vale a pena morrer em seu esforço contra o inimigo.” Eles acreditam estar lutando por uma causa maior que suas próprias vidas.

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Há uma exceção. Talvez houvesse um psicopata envolvido no ataque aos Estados Unidos – assistindo a tudo à distância. “Só pelo olhar dele, desconfio que Osama bin Laden seja o único psicopata da ação em Nova York”, diz Del Nero. “Os outros terroristas do grupo podem ser pessoas como você e eu.” Embora seja muito improvável que um psicopata esteja entre os seguidores de um grupo terrorista – inclusive porque gente assim é extremamente individualista e trabalha mal em equipe –, é bem provável que haja alguém com esse distúrbio psiquiátrico na liderança da milícia. Os psicopatas muitas vezes são carismáticos e convincentes – perfil no qual se enquadram não apenas bin Laden, mas também outros responsáveis por grandes mortandades da história, de Charles Manson a Hitler.

Todos eles se valem da mesma estratégia para arregimentar seguidores: dividem o mundo entre o bem e o mal e conclamam as pessoas a ficarem do lado certo. Essa visão polarizada e maniqueísta é apontada como um dos traços presentes na pregação de quase todos os grupos terroristas. “Tanto faz se são os sikhs da Índia, militantes cristãos americanos ou fundamentalistas islâmicos, o que os diferencia das pessoas comuns é uma visão parcial e distorcida da realidade”, diz Mark Juergensmeyer, professor da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, que já entrevistou dezenas de terroristas para o seu livro Terror in the Mind of God (Terror na mente de Deus, inédito no Brasil). “Eu não tenho dúvidas de que os suicidas do ataque do dia 11 de setembro morreram com o sentimento de que realizaram um ato de bravura, de que eram super-heróis”, diz Juergensmeyer.

É claro que não são apenas os terroristas que vêem o mundo assim. Deus versus o Diabo, Darth Vader versus Luke Skywalker, Batman versus Coringa. Se a visão dualista do mundo é algo presente em quase todas as culturas, o que faz com que alguns ingressem em grupos terroristas e outros permaneçam defendendo suas crenças civilizadamente com palavras – incluindo o seu amigo que insiste em lhe converter para a religião que acabou de abraçar? Ou mesmo entrar numa corrente ou a torcer para o Corinthians?

Jarrold Post, ex-chefe do centro de análise e comportamento de terroristas da CIA, o serviço secreto americano, diz que o principal motivo que leva alguém a ser um terrorista é de natureza social. A necessidade de ser aceito por um grupo, sentir-se parte de uma comunidade, escolhido e reconhecido como alguém especial seria o suficiente para atrair muitos adeptos a seitas fanáticas ou grupos extremistas. Agora misture esses ingredientes à pregação do uso da violência e à catequisação de que matar em troca da própria vida é uma honra suprema, e estaria pronta a receita explosiva que mantém esses grupos em ação. “Geralmente são jovens que perderam parentes em guerras, estão desempregados e encontram na missão terrorista um objetivo para a sua vida”, diz Post. “Se por trás dessa mente existir uma narrativa religiosa que incita o sujeito a cometer atentados, ele certamente o fará.”

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Há mais de dez anos, o psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, da Unicamp, estuda a relação entre mente e religião. “Há pesquisas que mostram que antes de se converter a uma nova religião, a maioria das pessoas tinha um sofrimento mental maior que a média da população”, diz o psiquiatra. “Esse sofrimento cai após a conversão, quando a pessoa dá um novo sentido para a sua vida.” A conseqüência é que o convertido passa a ver o mundo de outra forma, separando-o em dois: o mundo exterior, com suas leis, e o mundo no qual ele acabou de ingressar, com uma série de regras próprias que lhe trazem alívio. “Dependendo do que a nova religião exija dele, o convertido se tornará capaz de esforços surpreendentes para manter-se fiel a ela”, diz.

Tornar-se um mártir seria o maior desses esforços, a prova de fé definitiva em diversas religiões. Mais que atingir a purificação da alma, a exaltação do sofrimento físico é uma espécie de atalho para chegar ao paraíso – uma promessa que não é pregada apenas pelo Hezbollah e por outros grupos terroristas. “Na própria Igreja católica há uma forte identificação com os santos que enfrentaram o martírio e a morte pela fé”, diz Dalgalarrondo. “E tanto o Antigo quanto o Novo Testamento estão repletos de passagens com esse teor.”

Assessor de assuntos bíblicos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o padre Johan Konings tem uma visão bem diferente sobre o assunto e diz que a suposta glorificação da dor física no Cristianismo não passa de uma má interpretação dos textos da Bíblia. “Quando Jesus diz: ‘Se um olho lhe faz pecar, arranca-o’, as pessoas não podem interpretar isso como um incentivo à automutilação, mas como um conselho de que devemos cortar o mal pela raiz”, diz Konings. Mas não seria a própria imagem do Cristo crucificado o maior exemplo dessa exaltação do engrandecimento pelo flagelo? “Pouca gente sabe que, até o século II, Cristo não era representado na cruz mas como a figura do bom pastor ao lado de suas ovelhas”, diz Konings. “A imagem ‘dolorosa’ do Cristo na cruz somente veio a se tornar símbolo da Igreja por volta do século VI, possivelmente por alguma relação com o ambiente de violência do período.”

Para ele, nada mais natural que, nos momentos de guerra e sofrimento, as pessoas venham a se identificar com o martírio de Jesus e dos santos. “Quando a Bíblia é interpretada a serviço de alguma causa violenta, todo tipo de distorção é feita”, diz. “Não é coincidência que a Inquisição e as guerras religiosas tenham ganhado força com o surgimento dos Estados nacionais.” Desde o fim da Idade Média, o casamento entre a religião e o Estado terminava quase sempre em sangue e perseguição.

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Já no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, há uma passagem que diz que aqueles que morrem em defesa de Alá irão para o mais alto nível do paraíso, o sétimo, ao lado dos profetas, com direito a mulheres delicadas e cálices cheios. “Essas palavras são uma forma de explicar aos homens que o paraíso é um lugar maravilhoso”, diz o xeque Jihad Hassan Hammadeh, líder da religião islâmica em São Paulo. Mas ele lembra que não há nenhuma promessa de paraíso para aqueles que usam a violência. “O texto é claro: quem mata um homem inocente age como se estivesse matando toda a humanidade”, diz o xeque. “O Alcorão somente permite o uso da violência como legítima defesa, e, ainda assim, na mesma proporção do agressor, nunca incitando mais violência.” Por essa visão, Mohamed Atta e os outros terroristas que participaram do atentado de 11 de setembro podem esquecer o paraíso islâmico pelo qual provavelmente decidiram morrer.

É claro que os terroristas interpretam as passagens do livro sagrado de uma maneira bem particular. Para quem estiver disposto a lutar na “Guerra Santa”, a promessa do paraíso ganha alguns itens adicionais. O terrorista Abdallah Sakran, preso em 1996 antes de detonar uma bomba em Israel, afirma que não apenas lhe foi prometido o paraíso, como lhe disseram também que seus parentes e amigos teriam mais chances de chegar lá se ele morresse em ação. E não é só isso: o pacote pós-morte incluiria o direito a casar com 72 virgens no paraíso e a 6 000 dólares para serem gastos aqui na Terra mesmo, pagos à sua família para ela tocar a vida até encontrá-lo no céu. “É uma interpretação distorcida do Alcorão que, aliada à pobreza e ao ódio nacionalista, se torna um apelo e tanto para que o terrorismo conquiste novos adeptos”, diz o xeque Jihad.

Com a crença de que a morte pela causa levará o terrorista ao paraíso, qualquer espécie de negociação torna-se praticamente impossível. “O terrorismo tradicional tem um objetivo definido que abre uma possível base de negociação para a solução de impasses”, diz Michael Fowler, especialista em resolução de conflitos da Universidade de Louisville, Estados Unidos. “Isso não aconteceu no dia 11 de setembro. Eles não queriam a libertação de prisioneiros, dinheiro nem o reconhecimento de algum Estado, apenas atacar e humilhar um país que eles consideram um representante do mal.” Em ações do terror com reféns motivadas por causas nacionalistas e religiosas, Fowler diz que o negociador tem que encontrar saídas que façam sentido à lógica do terrorista. No seqüestro dos funcionários da embaixada americana em Teerã, capital do Irã, em 1979, ele lembra que diplomatas da então Alemanha Ocidental intercederam pelos americanos usando os ensinamentos do Alcorão.

Eles conversaram com um dos conselheiros diretos do aiatolá Khomeini e disseram que, segundo as regras do Alcorão, os prisioneiros não deveriam ser tratados daquela forma. “Ninguém sabe ao certo quanto isso pesou na resolução do caso, mas essa é uma das únicas saídas nesse tipo de negociação”, diz Fowler. “É preciso encontrar um ponto comum com cada tipo de causa terrorista.”

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Mas, afinal, há alguma diferença entre o religioso, o nacionalista, o radical de direita ou de esquerda quando eles estão dispostos a usar o terror para atingir seus objetivos? O Departamento de Estado americano é claro quando define o terrorismo como “a violência premeditada contra alvos civis, praticada por grupos minoritários ou agentes clandestinos, normalmente com a intenção de influenciar a opinião pública”. Ou seja: o que difere o terrorismo de outras formas de violência não é apenas o apego à causa, mas a forma de agir (leia mais sobre esse assunto na matéria “Existe terrorismo bom?”, na .O irônico disso tudo é que as pessoas aceitam a morte de civis em guerras como uma fatalidade e não como um crime, como nas ações terroristas”, diz Renato Sabbatini, psiquiatra da Unicamp. “Será que um documento de declaração de guerra autoriza a morte de inocentes?”

Para a ofensiva antiterrorista que tomou conta do espírito americano nos últimos dias, tudo indica que sim. É o que se verifica pela explosão na venda de bandeiras – e de armas – e pelo discurso do presidente George W. Bush conclamando o mundo para uma luta do “bem contra o mal”. Até mesmo a revista Time, geralmente tão equilibrada em suas tomadas de posição, escreveu um editorial dizendo que não era hora de os americanos se consolarem, era hora de eles aproveitarem o ódio para responderem com fúria aos ataques. Alguns especialista vêem um risco nisso. “O discurso americano está cada vez mais parecido com o discurso dos fundamentalistas islâmicos”, diz Roberto Ziemer, especialista em psico-história – uma maneira de estudar a história à luz da psicologia. Ziemer diz que, no fundo, o fundamentalismo – e seu filho, o terrorismo – é apenas uma forma simplista de os homens personificarem num inimigo o mal que existe em todos. Inclusive em você ou em mim.

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