Todo o Islã se unisse contra os Estados Unidos e o Ocidente?
No Cairo, o conselho supremo da Al-Azhar, o grande centro teológico islâmico, dera seu veredito final:
Voltaire Schilling
Mal a lua sumiu lá longe no deserto quando a aurora, lançando a primeira claridade sobre o horizonte, obriga o moazim – tradicional arauto das mesquitas – a chamar, com sua voz sagrada, do alto do minarete, os fiéis para a salat, a primeira prece da manhã. O sol já sobe sobre Damasco e Bagdá, mais claro e mais forte ainda em Jacarta e Islamabad, mas ainda não despertou ninguém em Sarajevo, na Bósnia. Não importa: esse é o dia tão aguardado por todos os muçulmanos do planeta. Por meses ouviu-se o mesmo zumzum. Nos últimos tempos, o rumor crescente tomara conta dos bazares de Istambul e de Teerã, das ruelas de Antióquia e das cercanias da mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém – por todos os lados a palavra jihad, guerra santa, ganhara uma conotação cada vez mais dura, forte, urgente.
No Cairo, o conselho supremo da Al-Azhar, o grande centro teológico islâmico, dera seu veredito final: o Grande Imã concluiu que o longo tempo de humilhações do povo do Profeta chegara ao fim. Ele, então, conclama a Umma inteira – toda a comunidade islâmica – a pegar em armas. Que cada irmão de fé coloque seu destino nas mãos do Único. Ele saberá o que fazer. O mesmo concluíram o Mufti, sacerdote de Jerusalém, e o Cadi, sábio jurídico de Jacarta, ambos líderes com autoridade para declarar a jihad. Os abusos do Ocidente têm que chegar a um fim. Com a Palestina gemendo, Bagdá sob escombros, Cabul reduzida a pó, Islamabad dilacerada pela luta civil, nada mais resta a não ser pregar a guerra santa.
E ela então começa. Na vanguarda, como sempre, saem os chamados sahids, mártires suicidas. A primeira explosão se dá na estação de metrô da Gare Saint-Lazare, em Paris, quando um deles se explode em meio à torcida do Paris Saint-Germain. Em Londres, ocorre o mesmo dentro da sede do Parlamento; e também em Berlim, em plena Deutsche Oper, lotada na hora em que se toca Bártock. Alguém, de pé, no meio do público compenetrado e silencioso, rasga a camisa para exibir a todos o ventre amarrado com os tubos de explosivos e, num só gesto, faz tudo ir para os ares. Em Moscou, o prédio inteiro do Pravda desaba em seguida ao barulho do rombo provocado por uma bomba numa parede do Kremlin. Nos Estados Unidos, os reservatórios de água das grandes cidades são contaminados com o vírus da varíola.
Nesse momento, na maioria das grandes cidades européias, as massas muçulmanas, metidas nos subúrbios, saem às ruas: Allahu Akbar, Allahu Akbar, Laa ilaaha illallahu Wallahu Akbar, Allahu Akbar, Wa lillahil Hamd. “Alá é Grande, Alá é Grande!”, gritam elas, “Não existe nenhum deus se não Alá. Alá é Grande, Alá é Grande, e todos somente devem rezar por Alá.”
É então que os mujadhins entram em ação. Um colossal cinturão humano formado por esses soldados da jihad começa a deslocar-se lá dos confins do mar da China. Na Ásia, quem dá o primeiro passo é Abu Sayyaf, chefe dos moros, os muçulmanos da ilha de Mindanao, nas Filipinas, ao ordenar o ataque total contra Luzón, ilha povoada por filipinos católicos. Logo ele é seguido por Syed Salahuddin, líder da guerrilha Al Faran, no vale do Caxemira, que faz seus homens descerem para se unirem às tropas da Hindutava, os fundamentalistas daquela região. Na Europa, a mesma ofensiva transborda das fronteiras da Albânia, da Bósnia e da Turquia, apavorando sérvios, croatas e búlgaros.
Frente a uma Espanha perplexa, milhares de mujadhins vindos da Mauritânia, do Marrocos, do Magreb argelino, da Tunísia e da Líbia, fazem fila, tensos, emocionados, para entrar nos barcos ancorados nos arredores de Tânger, que os farão chegar ao litoral da Andaluzia. Entre eles, gente da guerrilha argelina GIA, e da Al-Ikhwan, a Irmandade Muçulmana, prontos para, com os trabucos na mão, devolver, uma a uma, todas as afrontas que tinham certeza que o Ocidente lhes fizera desde as Cruzadas medievais.
Até os tuaregues, lendários nômades do Saara, montando seus enfeitados camelos, trazem dos fundões do deserto seus velhos rifles de guerra, porque também lá haviam sido avisados pelos ventos de que Alá queria uma jihad. Ao mesmo tempo, os jovens estudantes das madrassas (escolas religiosas) em Peshawar, no Paquistão, e em Oran, na Argélia, fazem sua última leitura: “As legiões dos céus e da terra são de Alá” (Corão, 48; Al Fath, 7). Ao colocarem seus punhais na cintura e um fuzil no ombro, os garotos saem para o combate confiantes que o Único não lhes faltará. Do alto do céu, quando os cristãos dessem para reagir, desabariam sobre eles, atendendo ao mando direto de Alá, os próprios arcanjos com flechas de fogo.
É a mais extensa linha de guerra já vista na Terra, estendendo-se do mar Amarelo, na China, ao oceano Atlântico, incendiando no caminho o mar Cáspio, o mar Negro e o Mediterrâneo, fazendo de tudo aquilo um palco de morte e destruição. Em Pequim, o governo comunista, até então neutro, oscila. Do lado muçulmano, vêm pedidos de armas leves. Do lado ocidental, apelos para que a China apóie os esforços para esmagar o levante islâmico. Muitas capitais européias estão bem no meio da conflagração, com seus bairros de imigrantes árabes sublevados, em ebulição. Ao mesmo tempo em que não podem ser bombardeados pelos Estados Unidos, servem de fronte e esconderijo para os rebeldes islâmicos, milhões de soldados dispostos a tudo para tomar o planeta.
Um cabo de força é esticado entre o presidente Jiang Zemin, que quer manter os laços com as nações ricas do Ocidente, e o premiê Zhu Rongji que acredita ser mais afinado com a tradição revolucionária da China apoiar a rebelião islâmica antiocidental. Na reunião que se segue entre os dois grupos, vence uma terceira posição, a do vice-presidente Hu Jintao. Depois de pacienciosamente escutar os contendores, Hu lhes diz apenas: “Deixem que eles, cristãos e mouros, ardam, que a Cruz e o Crescente queimem, pois assim ainda maior será a glória de Confúcio”.
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