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A descriminalização da maconha é uma garantia de direitos básicos.

A decisão do STF em junho não muda o status da cannabis: ela continua ilegal. A diferença é que, ao impor um critério claro para diferenciar porte de tráfico, as prisões não serão mais baseadas na cor de pele e no endereço da pessoa abordada.

Por Maria Clara Rossini
11 jul 2024, 16h00

Uma pesquisa da Fiocruz realizada em 2015 diz que 7,7% dos brasileiros entre 12 e 65 anos já usaram maconha alguma vez na vida. Já o Datafolha de 2023 aponta 20% da população maior de idade. Em ambos os casos, uma parcela bem menor das pessoas diz ter usado nos últimos 12 meses (2,5%, segundo a Fiocruz) ou que usa a droga atualmente (5%, pelo Datafolha).

É verdade que o uso é maior entre jovens adultos (33% das pessoas entre 25 e 34 anos já fumaram, segundo o Datafolha). Mas a experiência passa por outras faixas etárias (9% dos maiores de 60 anos) e varia dependendo da região do Brasil (25% no Sudeste, comparado a 16% do Nordeste).

Seja em experiências pontuais ou recorrentes, fato é que o Brasil consome maconha. A substância é ilegal, mas não existiriam celas suficientes se fôssemos prender todas as pessoas que têm ou já tiveram contato com ela. A Lei de Drogas (11.343/2006), então, diz que apenas traficantes devem cumprir pena, enquanto usuários levam uma advertência ou cumprem serviços à comunidade.

Ponto de vista do usuário que é pego com maconha: o policial confisca a droga e te leva para a delegacia. Você assina um termo circunstanciado de ocorrência – uma espécie de BO que vale para crimes menores. Sai da delegacia. Depois de alguns dias, você comparece em um juizado especial criminal para o Ministério Público analisar o caso e oferecer uma denúncia formal. A pena pode ser, por exemplo, uma advertência verbal. A partir dali você ganha um antecedente criminal. Pode voltar para casa.

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Ponto de vista do traficante que é pego com maconha: o policial confisca a droga e te leva para a delegacia. O delegado faz um boletim de ocorrência com tipificação temporária de tráfico de drogas. Você permanece em prisão preventiva até o julgamento. O juiz avalia o caso e concede a pena, que pode variar de cinco a quinze anos de prisão.

Uma pessoa que é flagrada com um baseado na mochila se enquadra na primeira situação, enquanto um carregamento de uma tonelada de maconha está na segunda. Mas muitos casos estão entre esses dois extremos. Quem decide se o sujeito é usuário ou traficante, inicialmente, é o policial que lavra o BO. Depois, é o juiz.

Os dois devem se basear no artigo 28 da Lei de Drogas para distinguir usuário de traficante. Ela aponta para cinco fatores de diferenciação: quantidade da substância apreendida; local e condições da apreensão; circunstâncias sociais e pessoais; conduta; e antecedentes  do indivíduo.

A lei não especifica o que é quantidade de uso ou de tráfico, deixando a questão aberta ao agente. Não é novidade que a interpretação dessa quantidade depende da cor da pele e do endereço do usuário – a tolerância para pessoas brancas, de bairros nobres e de maior escolaridade é maior em comparação a pessoas negras, periféricas e de baixa escolaridade. Segundo uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) encomendada pelo STF, a taxa de apreensão considerada porte de droga nos bairros nobres de São Paulo fica em torno de 35%. Já nas delegacias que estão afastadas do centro, o porte é apenas 13% das apreensões. O resto é tráfico.

Há boletins de ocorrência que sequer mencionam a quantidade apreendida em gramas. Segundo uma pesquisa do IPEA de 2023, que analisou 5 mil processos individuais de tráfico, alguns BOs fazem menções apenas a “trouxinhas de maconha”. Parece vago para condenar alguém à prisão.

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No dia 25 de junho, o STF declarou inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas. Na prática, isso resulta em duas ações principais. A primeira delas é descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. Dessa forma, o indivíduo que for pego com pequenas quantidades da droga não perderá o réu primário e não será fichado criminalmente. O porte, no entanto, será considerado um ilícito administrativo, assim como fumar tabaco em local proibido.

Isso, por si só, não resolve o problema principal: alguns usuários continuariam portando maconha sem problemas, enquanto outros seriam enquadrados erroneamente como traficantes. Então, a segunda medida que o STF tomou foi definir um critério objetivo para diferenciar essas duas designações. Quem porta até 40 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas é considerado usuário – limite que vale até o Congresso aprovar uma nova legislação. É isso que pode barrar as condenações de tráfico baseadas na cor da pele e classe social do indivíduo.

Até essa decisão, todo policial fazia tipificações injustas de tráfico? É claro que não. Mas temos motivos para acreditar que isso acontecia em certa medida. Antes da Lei de Drogas de 2006, tanto usuário quanto traficante podiam receber pena de prisão. Na capital paulista, por exemplo, houve mais apreensões por porte do que por tráfico em 2003. Já nos meses seguintes à lei de 2006 (que amenizou a pena para usuários), o cenário se inverteu. Segundo o estudo da ABJ, houve um aumento de 50% no número de apreensões por tráfico na capital, e redução nas apreensões por porte.

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O número de traficantes subiu e o de usuários diminuiu? Não faz sentido. Uma hipótese é que a nova política resultou em uma retaliação por parte das forças policiais – que, sem critérios claros de diferenciação, passaram a enquadrar usuários como traficantes.

Hoje, 23% da população carcerária brasileira está enquadrada na lei de 2006 – ou seja, está presa por tráfico. Parte dessas pessoas são, de fato, traficantes. Outra parte são usuários presos devido à falta de critérios claros na lei. Segundo a pesquisa do IPEA, em 17,6% das apreensões tipificadas como tráfico foram encontrados entre 6 e 25 gramas de maconha. Em 13,4% dos casos, foram menos de 6 gramas.

Ou seja: 31% das pessoas enquadradas como traficantes carregavam pouco mais da metade da quantidade de maconha que deveria ser considerada uso pessoal, segundo o STF. Uma quantidade que talvez já seria considerada porte em outros contextos de apreensão.

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Haverá pequenos traficantes transportando menos de 40 gramas de maconha? Muito provavelmente sim. Esse é um efeito colateral indesejado em detrimento de evitar que muitas prisões injustas aconteçam. De toda forma, se o indivíduo for pego vendendo a droga ou com itens que evidenciem o tráfico, ele ainda pode ser enquadrado como traficante.

O debate está longe de acabar, é claro. Esse é um pequeno avanço no problemático conjunto de políticas públicas antidrogas brasileiro, que acaba na morte de milhares de inocentes (bem como policiais) todos os anos. Para alguns usuários, nada muda: suas drogas continuarão a ser entregues em casa por delivery sem importunação. Para outros, o respaldo jurídico significa mais igualdade e segurança quando forem abordados na rua.

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Referências (1) artigo “III Levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira”; (2) artigo “Avaliação do impacto de critérios objetivos na distinção entre posse para uso e posse para tráfico”; (3) artigo “Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum”.

Fontes Caio Ferraris, advogado criminalista, pós-graduado em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra; Fernando Corrêa, coordenador da pesquisa “Avaliação do impacto de critérios objetivos na distinção entre posse para uso e posse para tráfico”; Paulo Pereira, coordenador do Grupo de Pesquisas Internacionais sobre Políticas de Drogas da PUC/SP.

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