Ilha de Trindade: O vulcão que saiu do mar
A 1 200 quilômetros do litoral brasileiro, a ilha de Trindade parece um mundo misterioso, onde ainda sobrevive uma fauna primitiva de estranhos costumes.
Roberto Muylart Tinoco
Na altura do litoral do Estado do Espírito Santo, existe uma monumental cordilheira formada por vulcões submarinos. Perpendicular à costa brasileira, ela se estende por mais de mil quilômetros ao longo dos paralelos de 20º e 21º em direção ao sudoeste da África. Os pontos culminantes da cordilheira estão submersos a poucas dezenas de metros da superfície. Entretanto, as bases dessas montanhas estão entre 3 e 4 mil metros de profundidade. Na extremidade oriental da cadeia, distantes 1.200 quilômetros do litoral de Vitória, surgem os únicos vestígios visíveis à superfície: os rochedos que formam o minúsculo arquipélago de Martim Vaz e a ilha de Trindade.
Trindade é a cumeeira de uma enorme construção vulcânica submersa. Seus picos escarpados de quase 600 metros, como as partes visíveis de um iceberg, representam apenas a décima parte da altura de uma gigantesca montanha submarina em forma de cone. A base de toda essa formação alcança um diâmetro de 50 quilômetros e repousa na escuridão abissal do Atlântico sobre uma espessa camada de rocha.
Foram necessários milhares de anos para que todo aquele edifício submerso ficasse concluído. Imaginar a grandiosidade de uma Trindade pré-histórica parece impossível. A ilha é hoje um amontoado de escombros, uma sucessão de carcaças vulcânicas atoladas em sua própria desagregação. Há enorme quantidade de lavas derramadas através de antigos canais condutores, misturando os mais diversos materiais. É provável que a derradeira manifestação vulcânica em Trindade tenha se dado por volta de 5 mil anos atrás, e ocorreu na parte oriental da ilha, quando então se formou uma cratera com mais de 200 metros de raio, elevando-se outro tanto sobre o nível do mar.
Só restou de pé uma pequena parte do arco daquela cratera. Todo o resto desabou, criando com as ruínas uma acidentada plataforma de rochas pontiagudas, semi-encobertas pelo mar. A violência dos vagalhões que atingem essa região acabou por abrir uma enorme brecha, um túnel, que transpassou o imenso paredão de lava da antiga cratera e formou uma pequena praia no interior da ilha. Ondas com mais de 5 metros de altura formam-se dentro do túnel e se desfazem num leque de espuma no outro lado do paredão.
Quando terminou a longa fase de vulcanismo e o relevo da ilha ficou definitivamente modelado, Trindade passou a receber as primeiras pinceladas do mundo verde, que não tardaram a recobrir as rochas das encostas com extensos bosques tropicais. Aves marinhas, caranguejos e uma multidão de insetos desfrutam, há muito tempo, de um cenário descrito como paradisíaco por uma expedição inglesa que ali aportou no dia 15 de abril de 1700. A bordo do navio encontrava-se o matemático e astrônomo inglês Edmond Halley, notável por ter calculado a trajetória do cometa que ganhou seu nome e por sua influência no trabalho de seu contemporâneo Isaac Newton. Ele havia sido encarregado pelo governo inglês de realizar pesquisas e medições do magnetismo terrestre. Infelizmente, naquele mesmo dia, foram soltos os primeiros porcos e cabritos em Trindade – bichos que iriam devastar a vegetação da ilha.
Assim, desde o início do século XVIII, Trindade passou a receber certos hóspedes muito indesejáveis e prejudiciais a seu equilíbrio ecológico. Depois dos porcos e das cabras, foram trazidos cachorros e gatos, não faltando também a figura cosmopolita do camundongo.
Mesmo tendo sido duramente golpeada em seu equilíbrio ecológico, Trindade ainda abriga diversos representantes de sua fauna primitiva. Há uma praia inteiramente tomada por pequenas crateras de 2 metros de diâmetro. Umas ao lado das outras, sugerem algo como o resultado de um intenso bombardeio sobre a superfície fofa das areias brancas. Esse panorama vem sendo elaborado há séculos por grandes tartarugas marinhas, que chegam às centenas para ali enterrar seus ovos.
Trata-se da Chelonia mydas, ou tartaruga-verde, uma das cinco espécies de tartarugas marinhas encontradas em águas oceânicas. No Atlântico Sul, apenas as ilhas de Ascensão, atol das Rocas (SUPERINTERESSANTE nº 2, ano 3) e Trindade são visitadas pelas fêmeas na época da desova.
Enormes caranguejos terrestres também freqüentam as praias, principalmente na hora em que o sol começa a desaparecer. Eles saem de dentro de buracos escavados na areia ou descem das encostas mais próximas do mar, alimentando-se de quase tudo que encontram pela frente, inclusive os ovos e filhotes recém-nascidos da tartaruga-verde. Ainda que uma fêmea da Chelonia mydas deposite em média quinhentos ovos, poucos escapam à voracidade dos caranguejos. Muito bem adaptados a viver sobre as montanhas, os caranguejos desenvolveram hábitos alimentares que os libertaram de permanecer nas praias. Além de conseguirem subir em árvores e devorar até larvas de insetos, escalam as mais íngremes encostas e não poupam sequer os ninhos das aves marinhas.
A fauna e a flora de Trindade já mereceram diversos estudos mas ainda deverão contribuir com muitas respostas para questões ligadas à biogeografia e à genética. No momento, a maior preocupação compartilhada por especialistas – dos mais diversos setores da ciência – em relação a Trindade reside na sua preservação. As relíquias botânicas da ilha encontram-se ameaçadas por um insaciável herbívoro: o cabrito. Atualmente, ele vive em bandos espalhados pelas partes mais altas, onde a vegetação é mais exuberante e onde se encontra o hábitat da Cyathea copelandii, um feto arborescente ou samambaia-gigante.
Sua presença em Trindade foi um enigma para os botânicos, até que se descobriu o mecanismo de propagação dessa planta. As samambaias-gigantes são descendentes dos minúsculos esporos de samambaias pré-históricas que circularam dentro de altíssimas correntes aéreas sobre o Atlântico há milhares de anos. Dessa mesma forma aterrissaram em alguma época em Trindade as sementes de uma pequena orquídea, do gênero Polystachya, que se adaptou muito bem aos bosques sombrios e úmidos nos pontos mais altos da ilha.
Há um único enigma em Trindade que talvez continue para sempre sem resposta: a existência ou não de um impressionante tesouro escondido entre suas rochas. Conta-se que, após a independência do Peru, em 1821, galeões espanhóis transportavam os tesouros da catedral de Lima com destino à Espanha, quando foram interceptados por piratas ingleses. Estes, depois do saque, teriam guardado os despojos em algum ponto da ilha. Parece pura fantasia. A grande riqueza que Trindade continua nos oferecendo, à plena luz do dia, é uma espetacular amostragem do vulcanismo submarino ocorrido no Atlântico Sul.
Para saber mais:
(SUPER número 6, ano 5)