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O cowboy do Xingu

Ele enfrentou índios, autoridades, invasores de terras. Agora, está do outro lado do balcão, à frente de uma ONG que luta pela agropecuária responsável na floresta. O texano John Cain Carter quer salvar a Amazônia

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h06 - Publicado em 11 Maio 2014, 22h00

Por Sabrina Craide

Em uma pequena sala na avenida das Indústrias, em Goiânia, o som do ar-condicionado e das obras ao redor abafam a voz do fazendeiro texano John Cain Carter, que há nove anos trocou suas terras, de 8 mil hectares, na região do Alto Xingu, por um escritório para tocar a ONG Aliança da Terra. Enquanto mostra fotos antigas do Texas e um mapa da região onde fica a Fazenda Esperança, em que viveu cinco anos com a família, sem energia elétrica e telefone, Carter revela saudade da mata. “Adoro o cheiro da terra depois da chuva, adoro acordar às 5 da manhã e escutar os papagaios, gosto de dar toque em vaca, de inseminar. Sinto falta e quase tenho depressão”, diz. O saudosismo pelo Xingu tem algo de irônico. Nesses cinco anos, Carter foi ameaçado de morte, enfrentou índios, pistoleiros e a falência generalizada de políticas capazes de conter o clima de faroeste na região, um cenário retrado no documentário O Vale os Esquecidos, de Maria Raduan. Carter chegou pela primeira vez à fazenda, que era do sogro, um tradicional criador de gado nelore, em 1996, pilotando seu avião, depois de servir ao Exército dos EUA e passar uma temporada no Iraque. Viu índios pelados, onças cruzando a mata e foi atraído pelo desafio: “Isso é o Velho Oeste”. Carter conheceu as entranhas de um Brasil selvagem, onde fazendeiros mantêm pistoleiros na folha de pagamento para espantar invasores e grileiros.

“Eles passavam seis meses por ano dentro da mata pegando grileiros, matando, batendo, quebrando dentes”, diz. Com medo de ter as terras invadidas, o texano passou noites deitado na estrada com os vaqueiros para vigiar sua propriedade. Via a todo momento caminhões com madeira ilegal e matas sendo queimadas para virar pasto. E foi também pilotando seu avião que Carter viu sua fazenda sendo invadida. “O câncer chegou à nossa terra”, disse, dramático, à esposa. Entrou na mata camuflado, passou dias queimando alojamentos de invasores, mas garante que não matou ninguém. Envolveu-se em disputa até com os xavantes da região, que mataram 12 nelores seus para alimentar a tribo – cada animal valia R$ 15 mil. Os índios estavam acampados ao lado da fazenda de Carter após terem sido retirados das terras onde viviam, em uma polêmica disputa. O fazendeiro foi tirar satisfação sobre o roubo e encontrou índios pintados e armados com arco e flecha. Mesmo assim, peitou o cacique. O líder disse: “Me desculpe. Meu povo está morrendo de fome na beira da estrada. Sete crianças ja morreram”. Carter se comoveu, apertou a mão do cacique e prometeu levar uma animal por mês para alimentar os índios. Virou amigo dos xavantes. Carter diz que procurou autoridades, entidades e até ONGs estrangeiras em busca de ajuda para conter as irregularidades que presenciava, mas não teve respostas. Afirma que foi ameaçado de morte, teve suas terras queimadas e seu avião foi sabotado. Carter conta que foram colocados pregos no aileron e no flap do avião, que servem para controlar o movimento e reduzir a velocidade. Os pregos foram pintados de branco para não serem percebidos antes do voo. “Foi terrorismo puro, mas vencemos.”

Numa tarde abafada, a filha de 1 ano ensaiava os primeiros passos na varanda da casa. Foram alguns instantes de distração, e a menina quase foi atacada por uma cascavel. Carter matou o animal, mas o episódio colocou ponto final na movimentada passagem da família pelo Xingu – curiosamente, depois de ter enfrentado tantos homens, foi vencido pela natureza. Cansado da inoperância do poder público, decidiu trabalhar ao lado dos fazendeiros para ensiná-los a produzir sem destruir a floresta. Em 2004, Carter fundou a Aliança da Terra e trocou a mata pela sala com ar-condicionado em Goiânia.

No início, os produtores desconfiavam do gringo que tinha ideias de conservação, achando que ele queria roubar dados dos fazendeiros. Aos poucos, foi ganhando a confiança e hoje a entidade já tem mais de 500 propriedades cadastradas, no total de 3 milhões de hectares monitorados. O trabalho começa com a coleta de dados das propriedades e um diagnóstico para ver o que deve ser melhorado, que inclui o replantio e a conservação na beira dos rios, controle da poluição e do fogo e condições de trabalho adequadas. O fazendeiro se compromete voluntariamente a se adequar, de acordo com suas condições financeiras. A ONG também mantém uma rede de brigadas voluntárias de incêndio e dá assistência técnica aos produtores. Entre 2009 e 2012, os pecuaristas da Aliança investiram cerca de R$ 22 milhões em adequações, sempre de olho no reconhecimento do mercado. A meta para 2014 é lançar um selo de origem para os produtos que saem das fazendas cadastradas pela ONG.Com ele, será possível rastrear, até mesmo por smartphones, de onde veio a carne e a soja que estão sendo consumidas. Para Carter, essa é uma exigência do mercado. “Daqui a 50 anos, ser um produtor vai ser igual a ser dono de arma ou piloto de avião: vai precisar de uma licença. A exigência para a comida vai ser tão grande que vai ter que ter regras para o jogo”, prevê.

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O debate sobre a agropecuária responsável não é novo, mas ganha força à medida que a população mundial cresce e o Brasil ganha destaque na produção de alimentos. O planeta deve chegar a 9,6 bilhões de habitantes em 2050. A FAO, o órgão das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura, estima que a produção de alimentos no mundo vai aumentar em 70% para atender esses 9 bilhões. E o Brasil deve responder por 40% do crescimento. Produzir mais comida sem destruir ainda mais as florestas se tornou inevitável. Para chegar lá, o plano do governo e de entidades como a Aliança da Terra é aumentar a produtividade de áreas já abertas, contendo novos desmatamentos. Uma equação simples que deve ser lembrada pelos produtores é que, se não houver florestas, o regime hídrico sofrerá alterações e a irrigação ficará comprometida, o que acaba sendo um tiro no pé. “A preservação é vista como um custo ao crescimento econômico, e não como algo que é importante inclusive para garantir esse crescimento”, diz o biólogo Paulo Moutinho, que dirige o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Na Amazônia, é comum ver agricultores usando o fogo para preparar a terra e desmatando pequenas áreas para aumentar a produção. Para Moutinho, esse ciclo pode ser quebrado com assistência técnica e linhas de crédito apropriadas para melhorar o uso das áreas já desmatadas. O governo federal oferece R$ 1 milhão por produtor, com juros de 5% ao ano, para o cultivo de florestas e a manutenção da reserva legal nas fazendas. Nos últimos três anos, foram repassados R$ 4,5 bilhões para essa linha de crédito, e para a safra 2013/2014 serão novos R$ 4,5 bilhões – abaixo dos R$ 70 bilhões estimados para a agricultura tradicional. Outra iniciativa que já existe para frear o desmatamento é a moratória da soja, promovido pelas associações brasileiras das indústrias de óleos vegetais e de exportadores de cereais, que se comprometeram a não vender ou financiar a produção em áreas da Amazônia desmatadas após 2006.

A preocupação de John Carter não era à toa. No ano em que a Aliança foi fundada, houve o segundo maior pico de desmatamento da história. Mas, desde 2004, uma série de ações fez com que o problema caísse mais de 80%, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes). A primeira foi a criação de áreas de conservação e terras indígenas, o que protegeu grande parte da floresta. Também foi nesse período que o Ministério do Meio Ambiente fez a sua lista negra, com embargos e restrições de crédito a produtores que têm relação direta com o desmatamento. Ou seja, a redução do problema não passa apenas pelo trabalho da Aliança da Terra, e a situação está longe de ser tranquila. Invasões e grilagem continuam sendo rotina. Mesmo quando os fiscais do Ibama chegam a tempo no local, não conseguem aplicar a multa porque ou os donos não são encontrados ou a ação está sendo feita por outras pessoas, sem o conhecimento dos proprietários, diz o diretor de políticas para o combate ao desmatamento do ministério, Francisco Oliveira Filho.

Até 2015, Carter promete lançar um livro contando o que viveu nas florestas da Amazônia. “Quero contar a história como eu vi e quero fazer antes de alguém me matar.” Ele prevê um best-seller.

 

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MADEIRA!
O desmatamento na Amazônia vem caindo desde 2004, quando atingiu o pico (em km²/ano)


Fonte: Sistemas Prodes/Inpe

Para saber mais

Vale dos Esquecidos
Documentário, Maria Raduan, 2010

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