O verdadeiro valor dos voluntários olímpicos
O trabalho não remunerado de milhares de pessoas é uma tradição olímpica cada vez mais (in)conveniente
O Rio de Janeiro sediou o maior evento do planeta sob desconfiança internacional e interna. A festa foi linda, o ISIS não deu o ar da graça, um ou outro incidente ocorreram, mas nada que abalasse a imagem das Olimpíadas.
Na cerimônia de encerramento, falou-se da saudade que os Jogos vão deixar, do acolhimento brasileiro e da próxima edição no Japão – com direito a Hello Kitty, Doraemon, Pac Man e primeiro-ministro viajando por um túnel que atravessou a Terra fantasiado de Super Mario. Em meio à execução de hinos nacionais, discursos, apagamento do fogo olímpico e outras saudações e festividades protocolares esteve o agradecimento às pessoas que mais ralaram para fazer a festa acontecer: os voluntários.
Esses personagens estão presentes na organização olímpica desde os primeiros Jogos da era moderna, em Atenas, há 120 anos. No início, militares e escoteiros eram maioria nos esforços para que o evento acontecesse. Ao longo das décadas, a participação de civis comuns, que se prontificavam a ajudar por motivações pessoais, foi crescendo até atingir o patamar de dezenas de milhares de voluntários: foi a partir de Los Angeles, 1984, com cerca de 30 mil.
Para a Rio 2016, mais de 50 mil pessoas, do Brasil e do exterior, se inscreveram para trabalhar nos bastidores e fazer o evento acontecer. As funções eram das mais variadas: desde tradutores e “guias turísticos” para membros de delegações e de comitês esportivos até organizadores de fila e checadores de ingresso. Em comum, os mesmos direitos e responsabilidades: o comitê organizador garantiu o custeio diário para alimentação e transporte público dos voluntários. E só. Hospedagem e passagem para ir e voltar do Rio, no caso de forasteiros nacionais e gringos, ficaram por conta de quem se voluntariou.
Fazendo uma conta rápida, supondo que metade dos voluntários não sejam do Rio e desprezando os custos de deslocamento para a cidade, temos que o comitê economizou R$ 161,5 milhões com hospedagem – usando como base a média de preços por leito no Rio* para os 17 dias do evento. Guarde este valor para mais tarde.
Como noticiado por vários veículos da imprensa brasileira e estrangeira, diante de alta carga horária de trabalho diário e da alimentação pífia fornecida pelo comitê, 15 mil voluntários deixaram os postos antes do fim dos Jogos sem notificar ninguém – alguns, é bom dizer, agiram de má-fé logo de cara, se “demitindo” logo após receber o uniforme do evento, com camiseta, calça e tênis exclusivos. Segundo reportagem da revista Época, a debandada criou os “voluntários pagos”: pessoas contratadas como terceiros para trabalhar durante três semanas, até o fim do evento, por R$ 1500. Digamos que o comitê organizador pagasse o mesmo para cada um que sobrou da evasão olímpica: mais R$ 52,5 milhões pra conta.
Somando as notas deste ligeiro exercício de imaginação, temos que os organizadores da Rio 2016 economizaram R$ 214 milhões com o trabalho voluntário. Para fins de comparação, até pouco antes do início dos Jogos, foram comercializados mais de R$ 1 bilhão em ingressos.
Ok, é fácil imaginar que uma resolução para que esse trabalho de bastidores passasse a ser pagos poderia esbarrar em questões trabalhistas difíceis de contornar para os comitês organizadores a cada edição olímpica, uma vez que as leis que regulam a remuneração variam de um país para outro – isso sem mencionar o custo burocrático e logístico dos pagamentos e o possível prejuízo com evasões parecidas com as que houve entre o voluntariado no Rio.
Mas fica aí o cálculo para refletirmos sobre os valores do voluntariado olímpico – os tangíveis e os intangíveis – em tempos de esporte cada vez mais profissionalizado e rentável, cujo amadorismo idealizado nos primórdios dos Jogos se foi há décadas.
* média baseada em custo per capita para leito no Airbnb e custo médio por leito segundo o Trivago na cidade do Rio de Janeiro.