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Penicilina: o fungo que mudou o mundo

Uma das mais poderosas armas da medicina contra as infecções foi descoberta por acaso: no mofo de uma cultura de bactérias que estragou uma pesquisa

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 mar 2023, 00h33 - Publicado em 31 jan 1988, 22h00

Texto originalmente publicado pela Super em 1988

Um simpático senhor escocês, de cabelos grisalhos e olhos azuis, trabalhava no laboratório do Hospital St. Mary, em Londres. Durante dias, ele observou o comportamento de uma cultura de Staphylococcus Aureus, o temível bacilo que causa infecção generalizada. Por isso, não pôde conter um gesto de impaciência ao perceber certa manhã, apesar de todas as precauções, sua experiência literalmente mofara. O calor excepcional do verão que derreteu os londrinos naquele agosto de 1920 foi também foi o responsável pelo nascimento do fundo verde de mofo na placa das bactérias.

Mas Alexander Fleming – este era o nome do pesquisador escocês, na época com 47 anos – não se deixou desanimar por causa do acidente. Ao contrário, soube aproveitá-lo. Percebeu que as bactérias morreram por causa do fungo Penicillium notatum. Depois de isola- lo, Fleming descobriu que ele continha uma substância capaz de matar muitas das bactérias comuns que infectam o homem. Essa substância, que Fleming chamou penicilina, impede a produção das moléculas de carbono que formam a membrana da bactéria. Quando esta se divide, sua parede e vai ficando cada vez mais fina até estourar, deixando escapar o citou plasma do interior. Foi assim, praticamente por acaso, que o mundo ingressou na era dos antibióticos – palavra inventada treze anos depois da descoberta de Fleming e que designa uma das armas mais poderosas de que a Medicina dispõe para salvar vidas.

As estatísticas do Departamento de Saúde dos Estados Unidos mostram que nos 15 anos após a entrada em cena dos antibióticos foram salvos da morte precoce 1,5 milhão de norte-americanos. No Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, o que trata exclusivamente de doenças infecto-contagiosas, as mortes por febre tifóide baixaram de 14 por cento para 0,7 por cento no mesmo período.

Fleming chegou a ser motivo de piada, pois, na ânsia de dar um sentido prático a sua descoberta, comprava qualquer objeto mofado o que viesse pela frente, até mesmo galochas e tecido velho de guarda-chuva, para fazer experiências. Foram dez anos de tentativas frustradas, até que, em 1978, dois colegas de Fleming, o australiano Howard Florey ( 1898- 1968 ) e o alemão naturalizado inglês Ernst Boris Chain da Universidade de Oxford, conseguiram obter 1 grama de penicilina pura. A persistência de Fleming acabaria recompensada. Além de ser agraciado com o título de sir pelo rei Jorge VI, ele, junto com Florey e Chain, ganhou o prêmio Nobel de Medicina em 1940 e 5 pela descoberta e a aplicação do antibiótico.

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Enquanto Florey e Chain isolavam a penicilina em Oxford, estourou a Segunda Guerra Mundial. Ironicamente, a carnificina em que mergulhou no mundo funcionou como estímulo ao desenvolvimento do remédio, pois, para curar tantos soldados feridos, o fundo de onde se extrai a penicilina passou a ser procurado por toda parte. Logo os laboratórios farmacêuticos descobriram a surpreendente fonte de onde poderia ser produzido em grandes quantidades – melões podres.

Por causa dos melões , uma funcionária do laboratório Northern Regional Research foi considerada excêntrica pelos quitandeiros da cidade de Peoria, em Illinois, estados Unidos. Ela sempre procurava as frutas mais velhas e estragadas das quitandas com infelizmente para os vendedores, depois de alguns meses a funcionária deixou de procurá-los: os laboratórios já não precisavam de melões, pois estocavam o Penicillium notatum em grandes tanques de fermentação, de onde extraiu o medicamento em quantidade suficiente para que os Aliados ganhassem a guerra também contra as infecções. Hoje, os métodos se aperfeiçoaram muito mais: já existem seis variedades de penicilina sintética fabricada em laboratório.

Novas descobertas não tardaram. Ainda durante a guerra, em 1944, o bioquímico russo naturalizado norte- americano Selman Waksman (1888-1973) anunciou a descoberta da estreptomicina, antibiótico que age, entre outras moléstias, contra a tuberculose. Em 1952, Waksman também ganhou o Prêmio Nobel de medicina. Foi ele, por sinal, quem cunhou a palavra antibiótico, do latim “contrário” e do grego “vida”, para designar os medicamentos fabricados a partir de substancias vivas que combatem outras substancias vivas . existem hoje centenas deles. O sanitarista Oswaldo Camargo, superintendente da Fundação para o Remédio Popular, de São Paulo, calcula que haja trezentos antibióticos em uso – o que não quer dizer que outros mais não tenham sido isolados. No Brasil, estão em três de cada dez receitas médicas.

Os antibióticos, porém, tem os defeitos de suas virtudes. Podem destruir, junto com as bactérias indesejáveis, a flora intestinal do paciente. Também podem provocar alergias, atacar os rins, perturbar o fígado, o aparelho digestivo e a composição do sangue. Quando administrado a crianças, os antibióticos da família das tetracilinas costumam enfraquecer os ossos e manchar o esmalte dentário. Consumidos por gestantes, tendem a provocar má-formação dos embriões.

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O uso indisciplinado de antibióticos tem outro lado nocivo – induz um aumento no número de bactérias resistentes. Como numa guerra interminável, os cientistas criam armas cada vez mais destrutivas, enquanto os microorganismos fazem armaduras cada vez mais resistentes. Numa população de bilhões de bactérias, sempre existirão aquelas capazes de resistência a antibióticos. Quando se usa o remédio, as bactérias vulneráveis morrem, enquanto as resistentes se multiplicam, passando às novas gerações a imunidade adquirida aos antibióticos.

Até a década de 60, os cientistas acreditavam que a resistência ocorria apenas por causa de mecanismos de seleção genética. Atualmente se conhece outro mecanismo muito mais importante, que consiste na transferência de fatores de resistência de uma bactéria para outra da mesma geração. O papel-chave nesta operação é representado pelos plasmídeos, partículas de DNA ( ácido desoxirribonucléico) situadas no citoplasma das células bacterianas. Os plasmídeos carregam informações genéticas de um microorganismo a outro e são responsáveis pela produção, em determinados casos, de enzimas especiais que bloqueiam a ação do antibiótico.

Esta descoberta permitiu melhorar as novas gerações de antibióticos. Mas não eliminou o círculo vicioso. Enquanto os cientistas tratam de superar as resistências dos plasmídeos, as bactérias acumulam forças para se defender dos novos atacantes.

A medicina não ficou parada desde a época em que Fleming, falecido em 1955 aos 74 anos, procurava objetos mofados para extrair fungos em quantidade suficiente para fabricar penicilina. Os laboratórios descobriram novos antibióticos e souberam produzi-los em grande quantidade. Diante da resistência das bactérias, criaram remédios ainda mais espertos. A mais recente geração, em vez de matar a bactéria inibe as enzimas que lhe dão condições de resistir ao antibiótico. A medicina está em vantagem na batalha contra as doenças infecciosas. Mas a guerra ainda não está ganha.

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