A verdade sobre o glutamato monossódico
Ele não é inerte. Mas também não é o vilão que se imagina. Veja o que a ciência tem a dizer sobre esse composto, usado como tempero na cozinha chinesa – e bem comum nos alimentos industrializados.
T“Tenho experimentado uma síndrome estranha sempre que vou a um restaurante chinês, especialmente os que servem comida do norte da China. Geralmente começa 15 a 20 minutos após o primeiro prato, e dura cerca de duas horas. Os sintomas mais evidentes são dormência na parte de trás do pescoço, que se irradia para os braços, fraqueza e palpitações cardíacas”, dizia a carta escrita por Robert Ho Man Kwok, cientista da National Biomedical Research Foundation, e publicada na edição de 4 de abril de 1968 do New England Journal of Medicine.
A causa, segundo ele, poderia ser “o tempero de glutamato monossódico usado nos restaurantes chineses”. Vários médicos enviaram cartas comentando o caso e relatando sintomas similares. Nascia ali a chamada “síndrome do restaurante chinês”, condição de saúde causada pelo glutamato.
Em 2017, a pesquisadora americana Jennifer Lin, que é de origem asiática, resolveu investigar o caso, que lhe pareceu um caso de sinofobia. Encontrou uma história e tanto: Robert Kwok teria sido um pseudônimo inventado por Howard Steel, cirurgião ortopédico e professor da Temple University (Filadélfia).
O suposto objetivo era ganhar uma aposta – para provocá-lo, um amigo havia dito que a ortopedia era banal, e Steel jamais emplacaria um texto no prestigioso New England. Emplacou. Em 2017, Steel confirmou tudo. Disse que tentou alertar a New England sobre a brincadeira na época, mas não conseguiu. Ou seja, o glutamato era inocente. A polêmica em torno dele não passava de um trote. Mas ainda haveria mais uma reviravolta.
Steel morreu em 2019, aos 97 anos. Alguns meses depois, um podcast da National Public Radio (NPR) americana descobriu que, na verdade, ele é que estava mentindo. Robert Kwok existiu, trabalhou na National Biomedical Research Foundation – e segundo sua filha e um colega de trabalho dele, entrevistados pela emissora, realmente escreveu a tal carta, da qual se orgulhava.
Ela foi o pontapé inicial, o marco zero da controvérsia envolvendo o glutamato monossódico (GMS). Muita gente acredita que a substância, usada como tempero na culinária chinesa e em alimentos industrializados (como salgadinhos, bolachas, sopas e macarrão instantâneo), faz mal.
Dizem que pode até viciar, agindo nos neurônios para fazer você comer mais – nas redes sociais, há diversos vídeos especulando que isso acontece porque a substância imita a função do glutamato natural, presente no cérebro.
Mas não é isso o que a ciência mostra. Há estudos apontando que o GMS não é inerte, e pode ter consequências negativas. Mas só em situações altamente específicas – que não têm nada a ver com o uso alimentar pela maioria das pessoas.
Injetar não é comer
Os primeiros estudos com o GMS, feitos em ratos de laboratório, apontaram efeitos nocivos: altas doses do composto, aplicadas direto na corrente sanguínea dos animais, causavam sequelas variadas.
Em 1969, um cientista da Universidade de Washington publicou os resultados de uma experiência na qual injetou glutamato (1) em ratos recém-nascidos: eles ficaram com o esqueleto atrofiado e desenvolveram obesidade quando adultos.
Em outro teste (2), realizado pela Universidade de Illinois em 1977, o GMS provocou distúrbios reprodutivos em camundongos machos e fêmeas.
Esses estudos tinham duas coisas em comum: eles foram publicados numa revista importante, a Science, e seu método estava errado – ou, no mínimo, levava a conclusões equivocadas.Porque injetar glutamato monossódico no sangue é completamente diferente de ingeri-lo com a comida.
“Quando o ingerimos, ele passa pelo estômago e pelo intestino, que utiliza o glutamato para gerar energia para suas próprias células”, diz a bioquímica Hellen Maluly, que é doutora em ciência dos alimentos pela Unicamp. Segundo ela, a quantidade de GMS que cai na corrente sanguínea é muito baixa.
Maluly é consultora da Ajinomoto, a maior fabricante de glutamato monossódico. Mas o que ela está dizendo foi comprovado por estudos independentes.
Um deles, publicado em 2018 pela Universidade de Pittsburgh, revelou que mesmo após consumir muito glutamato monossódico (100 mg por kg de peso corporal, o equivalente a 6 gramas para uma pessoa de 60 kg), os níveis da substância praticamente não se alteram (3). “A ingestão de GMS não produz aumentos apreciáveis na concentração de glutamato no sangue”, concluíram os autores.
Tanto é assim que a OMS não estipula um nível máximo diário para o consumo de glutamato monossódico. Já a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA), mais cautelosa, estabelece um: 30 mg por kg de peso corporal.
Isso equivale a 1,8 grama, ou meia colher de chá, para uma pessoa de 60 kg. Em geral, os alimentos contêm quantidades bem pequenas de glutamato monossódico. O shoyu (4), um dos campeões, tem 0,1 grama de GMS a cada 10 ml (uma colher de sobremesa).
As sopas industrializadas também são ricas nessa substância – mesmo assim, após tomar um pratão de 300 ml, você terá ingerido apenas 0,8 grama dela (5). Segundo a Food & Drug Administration (equivalente americano da Anvisa), as pessoas ingerem em média 0,5 g de glutamato monossódico por dia. Bem abaixo, portanto, do nível máximo recomendado.
Ao longo dos anos, muitos estudos testaram os efeitos dessa substância sobre o corpo humano – e nunca deram resultados parecidos com aqueles obtidos em ratos.
Em 1995, a FDA publicou uma análise (6) de todas as pesquisas sobre o tema realizadas até então. Concluiu que, tirando casos de alergia ao GMS, a substância não fazia mal. Era segura.
Mas a polêmica persistiu, e com ela vieram mais análises. Na China, cientistas mergulharam nos dados de uma grande pesquisa, a Jiangsu Nutrition Study (JIN), para verificar a saúde de pessoas que consumiam altas doses de GMS.
Após comparar dados nutricionais de 2002 e de 2007 de um grupo de 1,2 mil voluntários, os cientistas notaram uma associação entre o GMS e hipertensão arterial, principalmente em mulheres e em quem tomava remédios para controlar essa doença (7).
Mas uma revisão (8) feita em 2013 confrontou esses resultados com os de outras pesquisas, que também incluíram “grupos de controle”, ou seja, pessoas que não consumiam GMS. A conclusão foi que, na verdade, ele não afeta a pressão arterial.
O aditivo, que é usado para realçar o sabor de alimentos salgados, tem 13,6% de sódio. Bem menos que os 40% presentes no sal de cozinha – este, sim, um inimigo declarado da pressão.
Sete anos depois, mais uma vez, cientistas voltaram a revisar os estudos já feitos sobre o GMS e seus supostos malefícios. O trabalho (9) demonstrou que os problemas de saúde desenvolvidos por ratos de laboratório expostos ao glutamato não podiam ser transpostos a humanos.
Houve até investigações sobre supostos efeitos cognitivos, pois existia a crença que o GMS pudesse ser viciante ou fazer a pessoa comer mais. Não encontraram nada do tipo. Pelo contrário, até: em 2018, um estudo publicado pela Universidade Harvard observou que o GMS tinha efeito positivo sobre o controle do apetite (10).
Os pesquisadores serviram canja de galinha a 30 mulheres, em dois dias. No primeiro, a sopa veio temperada com GMS; no outro, não. Após cada uma dessas refeições, as voluntárias tiveram a atividade cerebral monitorada enquanto escolhiam, numa tela, alimentos que gostariam de comer.
Resultado: após tomar a sopa com glutamato, houve maior ativação do córtex pré-frontal esquerdo, uma área do cérebro associada ao autocontrole, e as voluntárias optaram por pratos mais leves (do que após tomar a sopa sem GMS). E esse efeito moderador foi especialmente intenso nas voluntárias mais compulsivas – aquelas que, sem o GMS, selecionavam os alimentos mais calóricos.
Os cientistas ainda não sabem explicar os resultados, já que o glutamato ingerido nos alimentos (e a quantidade ínfima que cai na corrente sanguínea) não é capaz de penetrar no cérebro (11) – pois não atravessa a barreira hematoencefálica, que envolve e protege o órgão.
Como ele poderia influir, então, no apetite? Para os autores do estudo, uma hipótese é que a presença de glutamato no sistema digestivo seja detectada pelo nervo vago, que vai do intestino até o cérebro. Talvez o glutamato faça com que esse nervo envie um sinal específico (ou mais intenso) ao cérebro, brecando a vontade de comer.
Foi um estudo pequeno, com 30 pessoas; mas seus resultados ajudaram a afastar mais um pouco a suposta vilania do GMS. Inclusive porque o glutamato também está presente, de forma natural e em quantidade bem maior, em alimentos comuns, como tomate, carnes e ervilhas.
O glutamato no corpo
O glutamato monossódico é um composto produzido industrialmente, através da fermentação de algas, beterraba, cana-de-açúcar ou mandioca. Mas também existe o glutamato natural, que está presente em alimentos proteicos como carnes, cogumelos, tomates, ervilhas e queijos maturados.
Lembra daquela estimativa da FDA, de que cada pessoa consome em média 0,5 grama de glutamato monossódico por dia? A agência também calculou o consumo de glutamato natural, e ele é exponencialmente maior: 13 gramas diários.
O glutamato, seja natural ou artificial, provoca uma sensação de gosto específico: o umami, termo cunhado pelo químico japonês Kikunae Ikeda que significa “saboroso e agradável”. Mas a história do GMS começou um pouco antes dele.
Foi em 1866, quando o químico alemão Karl Ritthausen misturou glúten de trigo com ácido sulfúrico, e obteve glutamato. Em 1907 Ikeda começou a pesquisar, na Universidade de Tóquio, qual era a substância responsável pelo sabor único das sopas japonesas.
Descobriu que o motivo eram as algas: elas continham aquele mesmo aminoácido, o glutamato, encontrado anos antes por Ritthausen. Ikeda extraiu glutamato puro de algas (assim como Ritthausen havia realizado com glúten), fez uma reação química com água e chegou ao sal glutâmico, ou glutamato monossódico.
Esse processo se chama hidrólise – e é similar ao que acontece no nosso corpo quando comemos um alimento naturalmente rico em glutamato.
“O ácido do estômago quebra as proteínas e libera peptídeos e aminoácidos, incluindo o glutamato”, explica Maluly. O GMS e o glutamato natural são quimicamente idênticos (12). A diferença é que, ao comer a versão artificial, você está ingerindo o glutamato já hidrolisado.
Em 1909, Ikeda montou uma empresa para fabricar e vender GMS, como tempero. Ele a batizou de Aji-no-moto (“essência do sabor”, em japonês). No começo, o processo usava algas. Depois, o glutamato passou a ser extraído do glúten e, na década de 1950, a partir da fermentação de cana, mandioca e beterraba.
A primeira fábrica no Brasil foi inaugurada em 1977 em Limeira, SP. Atualmente, os países asiáticos importam grande parte do glutamato que consomem, e um dos principais exportadores é o Brasil.
O cérebro produz seu próprio glutamato – e não deixa entrar o que vem de fora, por meio dos alimentos e do GMS. Com uma exceção: crianças de até dois anos. Nelas a barreira hematoencefálica ainda não está totalmente formada, e não é bom consumir glutamato monossódico.
“Em roedores, a neurotoxicidade do GMS é maior entre os recém-nascidos. Isso acontece porque, em algumas das etapas de desenvolvimento do sistema nervoso central, o cérebro fica mais sensível a esse tipo de substância”, diz Cristina Nogueira, bioquímica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e autora de estudos sobre o glutamato monossódico em animais.
O curioso é que o leite materno é rico em glutamato natural – mas numa concentração segura para as crianças em fase de amamentação.
Em suma: o glutamato monossódico não é inofensivo, mas também não é o vilão que dizem por aí. Ele é um ingrediente comum em alimentos industrializados, nada saudáveis; mas também está presente em comidas naturais e receitas sofisticadas (como no restaurante novaiorquino Bonnie’s, que está no Guia Michelin, e usa GMS em praticamente todos os pratos).
O paladar humano é muito sensível ao sabor umami: nossa língua tem quatro tipos diferentes de receptor para as moléculas de glutamato. Isso significa que os alimentos ricos nele são importantes para o organismo.
Não é o fim do mundo consumir um pouquinho disso em versão artificial. Desde que acompanhado de outros dois temperos, os mais importantes que existem: moderação e bom senso.
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Fontes (1) Brain Lesions, Obesity, and Other Disturbances in Mice Treated with Monosodium Glutamate. J Olney, 1969. (2) Monosodium Glutamate Administration to the Newborn Reduces Reproductive Ability in Female and Male Mice. W Pizzi e J Barnhart, 1977. (3) Monosodium Glutamate in the Diet Does Not Raise Brain Glutamate Concentrations or Disrupt Brain Functions. J Fernstrom, 2018. (4) Monosodium Glutamate – A Safety Assessment. Food Standards Australia, 2003.
(5) Estimativa do teor de fenilalanina em sopas desidratadas instantâneas. CP Guimarães e outros, 2005. (6) Executive Summary from the Report: Analysis of Adverse Reactions to Monosodium Glutamate (MSG). D Raiten e outros, 1995. (7) Monosodium glutamate is related to a higher increase in blood pressure over 5 years: findings from the Jiangsu Nutrition Study of Chinese adults. Z Shi e outros, 2011. (8) Epidemiological Studies of Monosodium Glutamate and Health. A Wakita e outros, 2013.
(9) A review of the alleged health hazards of monosodium glutamate. A Zanfirescu e outros, 2019. (10) Neurocognitive effects of umami: association with eating behavior and food choice. M Alonso-Alonso e outros, 2018. (11) Monosodium Glutamate in the Diet Does Not Raise Brain Glutamate Concentrations or Disrupt Brain Functions. J Fernstrom, 2018. (12) Questions and Answers on Monosodium glutamate (MSG). FDA, 2012.