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Aids :Devastação da áfrica

Aids está destruindo a África. A boa é que o Brasil tem uma idéia que pode funcionar - desde que a indústria farmacêutica abra mão de parte dos seus lucros.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h36 - Publicado em 31 Maio 2001, 22h00

Lucia Martins

A Aids está destruindo a África. Já matou 17 milhões de pessoas. A má notícia é que não há saída fácil para a tragédia. A boa é que o Brasil tem uma idéia que pode funcionar – desde que a indústria farmacêutica abra mão de parte dos seus lucros

Tem um continente inteiro morrendo de Aids. A doença já ceifou 17 milhões de africanos, um quinto deles crianças. Em alguns países, como Botsuana, mais de um terço da população adulta está infectada pelo vírus HIV. Como a população produtiva está morrendo, esses países, antes miseráveis, estão ficando ainda mais pobres. Sete em cada dez ocorrências de Aids no mundo se concentram no continente africano – especialmente na metade sul. Pior: a tendência é que a doença continue avançando. Não há tratamento médico que faça frente à epidemia, nem remédios para tratar os doentes, nem esperança para aliviar o sofrimento de quem fica.

Também não há solução fácil para a tragédia que, aos poucos, vai se delineando aos olhos do mundo. Mas existe um país não-desenvolvido no mundo que desenvolveu um programa-modelo de combate à Aids. Um programa aplicável em rincões sem recursos, como os da África. Esse país é o Brasil.

O programa brasileiro é simples. Ele prevê a produção de remédios localmente, sem a paga de royalties para os laboratórios multinacionais que detêm as fórmulas. Com isso, barateiam-se os preços e pode-se distribuir remédios de graça à população.

A estratégia brasileira surgiu em 1994, quando o governo federal, aproveitando-se do fato de não haver ainda uma lei de patentes no país, copiou a fórmula dos medicamentos anti-HIV e começou a produzi-los em casa. O programa de drogas gratuitas teve ótimos resultados. Muitos pacientes, antes alijados de qualquer tipo de tratamento, começaram a ter acesso a medicamentos – até os que vivem nas ruas. O número de mortes causadas pela Aids caiu pela metade, a taxa de novos casos se estabilizou, a propagação do vírus foi estancada. O mal passou a ser visto de uma nova forma: como uma doença crônica e não como uma sentença de morte. Hoje, dos 12 remédios que fazem parte do coquetel anti-HIV, sete são feitos no Brasil.

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O problema é que os laboratórios alegam que precisam dos royalties para continuar desenvolvendo novas drogas. As entidades que representam doentes acusam as empresas de estarem interessadas só nos lucros e de serem responsáveis diretas pela morte de milhões de pessoas ao redor do mundo – e especialmente na África. Nas palavras da organização não-governamental inglesa Oxfam: “A existência das patentes, que dão às empresas que inventaram o remédio o monopólio de exploração do produto por 20 anos, é responsável pelo genocídio dos doentes”.

As indústrias respondem alegando que, sem patentes, seria impossível fazer o investimento bilionário para a pesquisa de novos remédios. Gerar medicamentos é um negócio caro. Estima-se que, de cada 250 estudos clínicos para testar novas drogas, só um seja aprovado e chegue à fase de comercialização. Os outros 249 vão para o lixo e jamais geram um centavo para os laboratórios. Um remédio leva até 15 anos para ser pesquisado e desenvolvido, a um custo médio, segundo os laboratórios, de 500 milhões de dólares. As empresas afirmam ainda que, apesar de a patente valer por 20 anos, na prática elas se beneficiam dos royalties por menos de uma década. É que o prazo começa a correr no momento do registro do produto, o que geralmente ocorre antes mesmo do início das pesquisas.

“Sem a renda da venda das drogas, simplesmente não existiriam remédios”, afirma o advogado Otto Licks, especialista em direito de propriedade intelectual e consultor da Interfarma, uma entidade internacional que reúne 26 grandes laboratórios. “Esse é um negócio completamente dependente das patentes. Pegar uma receita pronta e fabricar uma pílula genérica é um procedimento industrial simples. O difícil é descobrir a fórmula correta”, garante ele.

É por isso que, nos Estados Unidos, o coquetel anti-HIV custa anualmente cerca de 10 000 dólares por paciente. No Brasil, com os genéricos (drogas que não pagam royalties), ele sai por menos da metade.

O governo americano saiu em defesa da indústria e está fazendo tudo para evitar que a solução brasileira seja aplicada na África. Fácil entender: os Estados Unidos são o país de origem da maioria dos laboratórios. Em abril, o Brasil aprovou, na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a proposta de transformar “o acesso a drogas para doentes de Aids” em um “direito humano”. Os Estados Unidos foram o único país, dos 50 presentes à reunião, a não endossar a proposta. Votaram em branco. Esse voto saiu caro: ele tem sido apontado como um dos motivos da derrota americana, no começo de maio, na reeleição para uma vaga na Comissão de Direitos Humanos – desde a criação do órgão, em 1947, os Estados Unidos nunca haviam ficado de fora.

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Na esteira da experiência brasileira, países como a Índia e a África do Sul também nacionalizaram a produção de drogas contra a Aids. Mas nenhum deles supre os remédios gratuitamente. A Índia, que, ao contrário do Brasil, até hoje não tem uma lei de patentes, não pode ser processada por quebrá-las. O país, um dos mais afetados pela doença na Ásia, é hoje também um dos maiores produtores mundiais de genéricos para a Aids e exporta para outros países pobres. Para reagir à oferta de medicamentos genéricos indianos, a indústria farmacêutica já anunciou que pretende fornecer, com lucro zero, drogas para alguns países africanos.

A África do Sul, recordista africana em números absolutos de casos de Aids, com 4,2 milhões de infectados, também começou a produzir os seus próprios remédios. Além disso, compra genéricos de outros países. É claro que a indústria farmacêutica não gostou: 39 empresas entraram, em março, na Justiça contra o governo sul-africano. Mas a opinião pública chiou e forçou os laboratórios a voltar atrás e a retirar o processo. O problema é tão sério – e caro – na África do Sul que o governo chegou a patrocinar, em meados do ano passado, uma discussão mundial que levantava a hipótese de que os remédios seriam desnecessários porque a Aids não seria causada pelo vírus.

O Brasil lidera uma corrente que tenta achar uma saída negociada para o impasse. O Ministério da Saúde quer descontos nas drogas do coquetel que comprar dos laboratórios. A avaliação do governo é que, sem a ajuda da indústria, será impossível manter em funcionamento seu programa-modelo de combate à Aids. É que a legislação brasileira exige que novos remédios sejam incorporados ao coquetel à medida que são desenvolvidos. E não é possível reaplicá-los todos em genéricos porque, desde 1997, há uma lei de patentes vigorando no Brasil, coisa que não existia quando o país começou a produzir seus próprios medicamentos.

Em resumo: o governo não pode simplesmente começar a fabricar cada novo remédio inventado sem com isso quebrar patentes. Se o país quiser evitar processos judiciais, terá que comprar os medicamentos dos laboratórios. Portanto, é fundamental chegar a um meio-termo com a indústria farmacêutica. A conta tende a subir na medida em que as drogas feitas em casa forem ficando obsoletas. Hoje o programa anti-Aids já custa 3% de toda a verba do Ministério da Saúde, nada menos que 444 milhões de dólares.

Um dos culpados pelos altos custos é o Nelfinavir, uma droga recentemente inventada que é protegida por patente. Ele, sozinho, consome 28% de todo o dinheiro gasto com remédios para Aids no Brasil. O governo está pressionando o laboratório suíço Roche a baixar o preço do medicamento, mas, até agora, nenhum acordo foi fechado.

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Com med

o de que o Brasil quebre as patentes e comece a produzir os novos remédios por conta própria, sem pagar nada às empresas, o governo americano entrou, em fevereiro, na Organização Mundial do Comércio (OMC), com um pedido de abertura de painel para investigar a lei de patentes brasileira. Os americanos estão especialmente preocupados com um artigo da nossa lei, nunca posto em prática, que permite quebrar a patente quando o produto não for produzido no Brasil.

Ou seja, o governo poderia usar a legislação nacional para credenciar um laboratório e produzir um genérico localmente substituindo o Nelfinavir, por exemplo. Mas o Brasil evita o confronto direto. “Não queremos quebrar patentes. Queremos mais compreensão dos laboratórios”, afirma Rosimeire Munhoz, coordenadora-adjunta do Programa Nacional de Aids. A saída conciliatória defendida pelo governo brasileiro é a criação de um programa de preços especiais para os países pobres. “Os laboratórios e os países ricos têm que entender que a Aids é um problema de saúde pública gravíssimo. E saúde pública tem que ser tratada de forma diferente”, diz Rosimeire.

A indústria farmacêutica sempre esteve voltada para os países ricos. É para lá que os remédios são produzidos, já que dois terços das vendas mundiais ocorrem no mundo desenvolvido. Enquanto isso, a África e a Ásia subdesenvolvida – que têm 70% da população mundial e 90% dos casos de Aids – contribuem com 5% dessas vendas. À África corresponde apenas 1% do faturamento dos laboratórios. Os preços das drogas são fixados, então, tendo em vista o cidadão médio americano, europeu ou japonês. Acontece que, nos Estados Unidos, a renda média é de 35 000 dólares por pessoa, enquanto em muitos países africanos o rendimento per capita não ultrapassa 500 dólares, equivalente ao gasto anual com um único remédio do coquetel.

As indústrias farmacêuticas sempre resistiram a baixar os preços nesses países miseráveis, ainda que isso tivesse pouquíssimo custo. Elas temiam que a redução levasse os consumidores dos países ricos a também reivindicarem descontos. Mas, mesmo muito atrasados e à custa da pressão de organizações ativistas e de governos, os grandes laboratórios estão começando a entender que a regra de preços não pode se aplicar a todos os países da mesma forma.

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Alguns sinais alentadores começam a surgir. Recentemente, o Brasil conseguiu um acordo com o laboratório americano Merck e obteve cortes de 59% e 64% no preço de dois medicamentos – a Merck está dando bons descontos também para Uganda, Ruanda e Senegal. “Isso é um avanço e não teria ocorrido há alguns anos”, comemora Rosimeire. Outra empresa que está fazendo preços especiais é a americana Brystol-Myers Squibb, que vende mais barato para Botsuana, Namíbia e Lesoto. Mesmo a Roche, fabricante do Nelfinavir, está ficando mais flexível e começou a negociar a redução do preço do remédio no Brasil.

Não é o suficiente para estancar a calamidade africana. Mas a disposição para negociar dá pelo menos uma esperança de dias melhores. Só resta torcer para que as discussões não demorem muito – afinal, a cada minuto, mais uma criança africana é contaminada pelo HIV.

Botsuana

Porcentagem da população adulta contaminada – 36%

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Total de doentes de Aids – 290 000

Suazilândia

Porcentagem da população adulta contaminada – 25%

Total de doentes de Aids – 130 000

Zimbábue

Porcentagem da população adulta contaminada – 25%

Total de doentes de Aids – 1,5 milhão

Lesoto

Porcentagem da população adulta contaminada – 24%

Total de doentes de Aids – 240 000

África do Sul

Porcentagem da população adulta contaminada – 20%

Total de doentes de Aids – 4,2 milhões

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