Atração vertical
Eles não podem ver uma corda e já querem descer.São os loucos por rapel, técnica utilizada tanto para explorar cânions e cavernas como para limpar chaminés
Katia Calsavara
Nada de se jogar atrás de uma bolacha que caiu lá de cima de um despenha-deiro, como num comercial de TV. Se você é daqueles que olham uma cacho-eira, um penhasco ou mesmo um via-duto e têm vontade de desafiar a lei da gravidade, saiba que é necessário ter o total domínio das técnicas verticais, utilizadas não só por esportistas como também por estudiosos e pessoas que trabalham em resgates e manutenção de ambientes elevados. Canionismo, exploração de cavernas, escalada, mon-tanhismo. Todos esses esportes utilizam as técnicas verticais, mas cada um pos-sui métodos específicos, muitas vezes adquiridos só na prática e com profissio-nais experientes. O rapel, ao contrário do que muita gente imagina, é apenas mais uma das técnicas utilizadas em ambientes verticais e não deve ser con-siderado um esporte autônomo.
Se você quer descer uma cortina de águas bravas, o que procura é o can-yoning, ou canionismo. Conhecido co-mo o esporte da exploração de cânions – acidentes geográficos provocados pe-la ação das águas e que formam profun-dos sulcos no leito das rochas -, o can-yoning também é responsável pela do-cumentação e preservação de rios e ca-choeiras. Uma das vertentes desse es-porte é o cascading, ou rapel em cacho-eiras, em que há busca não só de adre-nalina como também de lugares dignos de cartões-postais. O cascading é um ti-po de canyoning pontual, praticado em uma única queda-d·água. Ou seja, con-siste em subir e descer a mesma cacho-eira diversas vezes. Hoje, com cerca de 2 mil praticantes no Brasil, o cascading é a porta de entrada para o vasto mun-do da exploração dos cânions.
Dentre os paraísos de águas es-palhados pelo Brasil e destacados como os melhores pelos praticantes do canyo-ning estão a chapada Diamantina, na Bahia, a chapada dos Veadeiros, em Goiás, e as escarpas da serra do Mar, em São Paulo e no Paraná, e da serra Geral, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Na Europa, a região dos Alpes e dos Pireneus atraem os franceses, co-nhecidamente os praticantes mais assí-duos do continente, seguidos dos espa-nhóis, alemães, suíços e italianos.
Como atividade esportiva, o canyoning surgiu no final dos anos 70 com a evolução dos esportes de águas bravas, como o rafting e a canoagem, e também com o desenvolvimento das técnicas de exploração vertical. No Brasil, o canyoning foi introduzido em 1989, com o trabalho da equipe H20mem, coordenada por Carlos Zaith, 44 anos. Responsável pela do-cumentação de centenas de cavernas calcárias do país, Zaith começou a car-reira como fotógrafo. Foi membro da Sociedade Brasileira de Espeleologia e hoje é o principal mentor de canyo-ning no Brasil.
Mesmo com toda a experiência, é preciso estar de olhos bem abertos. Zaith conta que sua mulher, Marisa Góes, já escorregou num rio e sumiu entre as pedras durante uma aventura na chapada dos Veadeiros. “A sorte foi que ela conseguiu se segurar e retornar depois com as águas”, diz Zaith. “Nu-ma hora dessas não se pode tentar aju-dar de qualquer maneira, para não colo-car a vida de outras pessoas em risco.”
HOMEM DAS CAVERNAS
Outra prática que, como o canyoning, requer o domínio das técnicas verticais é a exploração de cavernas, ou espeleo-logia. Para sair em busca de galerias, sa-lões e corredores de grutas e abismos, não bastam uma pochete e a vontade de entrar em lugares pouco ou nunca co-nhecidos pelo homem. Uma vez dentro da caverna, é preciso estar preparado para mergulhar, pensar em alternativas de como sair ou entrar em um buraco aparentemente inacessível ou o que fa-zer se ficar sem luz em ambientes escu-ros. Nada de pensar em algo do tipo: “Como sou experiente, consigo sair bem de qualquer situação”.
Apretensão ou a sede de desco-berta pode fazer com que o praticante deixe de checar devidamente seus equi-pamentos, aumentando o risco de depa-rar com situações quase irreversíveis, como a que ocorreu com o explorador de cavernas Luiz Spinelli, 38, hoje com mais de 20 anos de experiência na ex-ploração de abismos e grutas. No começo da carreira, quando tinha na baga-gem pouco mais do que um curso sim-ples de escalada em rocha, Spinelli foi convidado por um amigo fotógrafo pa-ra descer o abismo de Furnas, na região do Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo. A caverna tem cerca de 60 metros de profundidade e é considerada uma tarefa simples para grande parte dos exploradores.
O amigo instalou a corda, desceu primeiro e pediu que Spinelli levasse a mochila dele, pesadíssima, onde estavam os equipamentos fotográficos.
Como eu estava um pouco tenso, acabei esquecendo de levar a mochila e, quando cheguei lá embaixo, quis voltar rápido para pegá-la. Normalmente, teria gasto uns 20 minutos para subir até lá, mas como já estava cansado devido à descida, fiz o percurso em uma hora” conta Spinelli. “Peguei a mochila fora da caverna e comecei a descer em seguida, sem parar para descansar. O peso era tanto que imaginei que fosse virar de ponta-cabeça a qualquer momento.”
O peso da mochila, somado ao cansaço das subidas e descidas sucessivas, fizeram com que Spinelli tivesse de descer em alta velocidade corda abaixo. O amigo, que estava lá embaixo, percebeu que o outro descia rapidamente, inclusive batendo a cabeça nas paredes do buraco, e o ajudou a chegar ao chão com vida. “Eu queria descer rápido porque estava apavorado. Essa imprudência e a falta de preparo poderiam ter me custado a vida” afirma Spinelli. “Fui arrogante por achar que poderia qualquer coisa.”
Spinelli faz parte hoje do projeto Half Dome de Exploração de Cavernas, que tem como objetivo explorar o Abismo do Juvenal, um dos maiores do Brasil, com 241 metros de profundidade, localizado na região do Lageado, no município paulista de Iporanga. Ele e sua equipe encontraram fósseis e outros abismos por lá, que estão sendo catalogados e pesquisados pelo Museu de Zoologia da USP.
PENDURADO NO COPAN
As técnicas verticais são aplicadas nas mais diferentes situações numa cidade como São Paulo, e não só por esporte. O edifício Copan, um dos mais altos da capital paulista (161 metros), já foi palco de uma aventura para o escalador e montanhista Pedro Ivo Bruder, 25 anos. Ele ajudou um explorador que estava gravando um programa de TV a se prender e a instalar etriers (espécie de escadas de náilon) em alguns andares do prédio. “Levei muitos equipamentos extras e homologados. Eu não conhecia as condições do prédio, mas sabia como usar tudo o que levei”, disse Bruder A descida foi tranqüila e considerada por ele como um de seus maiores desafios. “Mas não aconselho ninguém sem técnica a fazer isso sozinho.”
Já o artista de teatro e circo Fernando Matsumoto, 39 anos, utiliza técnicas verticais na manutenção de chaminés, algumas delas com mais de 100 metros de altura. Começou a fazer escalada com cordas em 1986, quando entrou para uma escola de circo e se apaixonou pelo trapézio. Não imaginava que, anos depois, iria ser requisitado para trabalhar na manutenção de chaminés. “Precisavam de alguém que soubesse lidar com cordas e pudesse instalar algumas peças dentro de uma chaminé”, conta Matsumoto. “Acho arriscado, mas é um trabalho muito lógico, matemático.”
As técnicas verticais também são utilizadas em resgates de vítimas. O tenente Renato Natale, 33 anos, do 4º Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros de São Paulo, já tirou um suicida de cima de uma torre de 48 metros. “Passei horas conversando com o rapaz e não havia meio de ele desistir da idéia”, diz Natale. “Depois de um tempo, consegui convencê-lo. Levei duas cadeirinhas, das utilizadas no rapel, peguei-o e descemos juntos”, conta.
Serviço
SAIBA MAIS
Há vários sites na internet que trazem informações sobre as técnicas verticais. Alguns deles:
https://www.montanhismus.com.br
EQUIPAMENTOS BÁSICOS
Para comprar um bom equipamento para técnicas verticais, gasta-se em média R$ 1 mil, incluindo as cordas. As marcas mais conhecidas no mercado brasileiro são Petzl, Kailash, Black Diamond, Simond, Dmm, Lucky.
DICAS DE ALIMENTAÇÃO
Se você for fazer o passeio pela manhã, tome o café normalmente, com frutas, leite e pães. Não deixe de se hidratar o tempo todo. Leve água ou suco em uma garrafa. Em alguns casos, dependendo de quantos dias vai durar o passeio, carregue cloro ativo para purificar a água (encontrado em farmácias). Leve também barras de cereais, frutas frescas e secas.
OUTRAS DICAS
Alguns cuidados básicos: dê preferência a lugares mapeados e freqüentados; avise amigos e familiares sobre seu destino e previsão de volta; use sempre equipamentos certificados; programe seus horários e prefira voltar de montanhas, cachoeiras, grutas e abismos antes do anoitecer; tenha sempre um kit de primeiros socorros; certifique-se de seus limites físicos, não dando tudo de si na ida, pois precisará de energia para a volta.
Rapel na porta de casa
Uma rápida – e arriscada – aventura no viaduto da avenidaDoutor Arnaldo, em São Paulo
Em um sábado no mês de outubro, a reportagem da revista Radical X esteve no viaduto da avenida Doutor Arnaldo, no bairro do Sumaré, em São Paulo. Ali, dezenas de aventureiros instalam suas cordas para ganhar dinheiro auxiliando as pessoas que estacionam seus carros na calçada e cismam em “rapelar” o viaduto. Fernanda Gonçalves, 16 anos, que chegou ao local acompanhada pela avó, se preparava para mais uma descida. “_ muito bom ter essa sensação de liberdade”, disse a menina, sem capacete e com os pés fincados no viaduto. “Você não quer descer? É só 10 reais”, perguntou um garoto que se dizia instrutor. Com a recusa da oferta, ele rapidamente sumiu, descendo a ponte em direção aos carros que passavam na movimentada avenida Sumaré. “Desde que a descida seja feita com equipes especializadas, não há problema algum. O perigo é confiar em grupos que compram alguns metros de corda, a cadeirinha e um mosquetão e já se dizem profissionais”, diz Marco Aurélio Cardoso Benfeito, 24 anos, da equipe Fitz Roy.