Choque térmico: os tipos de queimaduras e tratamentos
Uma queimadura causa muito mais problemas do que um simples ferimento. As mais graves conseguem até alterar o metabolismo do organismo.
Paula Cleto
O conteúdo escaldante da panela, por exemplo, se derrama na azarada cozinheira. À dor segue o susto e vem acompanhada de bolhas e outras reações, que tornam a queimadura uma das mais graves agressões que um corpo pode sofrer. Um recente simpósio realizado em São Paulo, há quase dois meses, trouxe especialistas estrangeiros com novas tecnologias para melhorar o atendimento dos queimados. Afinal, cuidar de um ferimento no dedo pode ser fácil, mas quando a queimadura atinge mais de 20% da superfície corporal, a vida está em perigo.
Quem apenas encostou na panela quente e quem sobreviveu a um incêndio sofrem o mesmo mal: as células da pele morrem porque suas proteínas foram destruídas. O agente culpado mais comum é o calor — o de líquidos e objetos aquecidos, o que resulta de um choque elétrico ou, enfim, o do fogo propriamente dito. No entanto, alguns componentes químicos, como os ácidos, também podem arrasar as proteínas; assim como a radiação, cujo quadro típico é o das queimaduras de sol.
“A gravidade de uma queimadura vai depender tanto da sua extensão como da sua profundidade”, explica o cirurgião plástico Marcus Castro Ferreira, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Uma queimadura simples atinge até 15% do corpo e, em geral, não causa grandes problemas. As mais sérias atingem entre 15 e 35% da superfície corporal. Já uma lesão profunda que supera essa área é considerada gravíssima.’’ É como se os médicos esticassem a pele do corpo e dividissem a área total em cem pedacinhos iguais. Para os leigos, um braço inteiro parece conter uma grande extensão de pele; mas os especialistas sabem que, em uma pessoa adulta, ali só cabem sete porções, isto é, 7%. Nessa linha de raciocínio, uma queimadura de tórax representa um estrago de 13% do corpo; idem, uma nas costas. As duas pernas, por sua vez, equivalem a 33% da área corporal.
Há uma hierarquia também para a profundidade da destruição das proteínas. Uma queimadura de 1º grau devasta apenas a epiderme, a camada mais superficial da pele. Seus efeitos podem ser notados após um banho de sol prolongado: o inchaço, o ardor e a vermelhidão; finalmente, a pele morta descasca. A queimadura de 2º grau, porém, é o tipo mais comum de lesão e implica nas desagradáveis bolhas. Estas, mesmo quando são pequenas, jamais devem ser estouradas. Caso contrário, seu interior fica exposto — trata-se de um local quente, úmido e desprotegido, onde as bactérias adoram se instalar. Enfim, quando a epiderme e a derme são destroçadas, a queimadura é de 3º grau: “Embora seja a mais grave, ela não dói”, revela o cirurgião plástico Walter Soares Pinto, do Hospital das Clínicas de São Paulo. “As lesões superficiais ardem, porque irritam os nervos. Já as de 3º grau, por serem profundas, liqüidam as terminações nervosas, que disparariam a mensagem dolorosa ao cérebro. ”
Uma queimadura pode desencadear mudanças no organismo. Elas começam nos microvasos sangüíneos, os capilares: as tramas celulares, que formam as suas paredes, se afastam. Pelos vãos passa o plasma — a parte líquida do sangue — que se espalha entre os tecidos. E atenção: isso, às vezes, não acontece apenas na área queimada. Na verdade, quem se queima tende a ficar todo inchado. Além disso a descarga de calor prolongada em uma região qualquer do corpo — a do Sol na praia, por hipótese — simplesmente desestabiliza o sistema nervoso. O cérebro perde a noção da temperatura correta do organismo, em torno de 36ºC e, daí, o corpo se aquece da cabeça aos pés. O resultado é a dilatação dos vasos, uma das causas da vermelhidão e do ardor. Se o plasma, que escapa pelos vasos dilatados, penetra entre a epiderme e a derme da região ferida, aparece a bolha.
Segundo o médico, uma pessoa bastante queimada pode perder mais de três litros de líquido dos vasos para os tecidos. O sistema circulatório desse paciente sente o déficit, que provoca queda violenta da pressão arterial. Essa baixa é capaz de colocá-lo em estado de choque, a principal causa de morte nas primeiras horas depois do acidente. Para repor o líquido perdido, a equipe médica administra grandes volumes de soro. Além disso, o paciente recebe uma solução de nutrientes. Pois o gasto de energia e de matéria-prima — proteínas e gorduras — para reconstruir a pele é tanto, que alguém com queimaduras sérias pode emagrecer 20 quilos facilmente.
Como se não bastasse, a pele queimada costuma grudar no corpo, formando aquilo que os médicos chamam de escaras. Estas liberam toxinas que interferem no metabolismo. O paciente tem, então, alterações no sistema respiratório, cardíaco, e também no de defesa. “A pessoa muito queimada reage como um imunodeprimido’’, conta o cirurgião plástico Carlos Fontana, do Hospital das Clínicas. “Não se compara à Aids, mas a capacidade de o organismo lutar contra micróbios cai bastante.”
Daí que as infecções são a maior ameaça à sobrevivência desse doente. As bactérias mais insidiosas são aquelas moradoras da superfície da pele, que aproveitam a ferida como brecha para a sua invasão. “Por isso, os únicos medicamentos que se aplicam no ferimento são antimicrobianos. Ao contrário do que as pessoas pensam, não existe remédio específico para queimadura’’, garante Fontana. Nas lesões de 2º grau, o organismo consegue se recuperar sozinho. A epiderme renasce novinha em folha, a partir das bordas da lesão, das glândulas e dos folículos em que nascem os pêlos. “Mas a pele restaurada tem uma cor diferente da original”, lamenta Soares Pinto.
A diminuição dos melanócitos — células que contêm moléculas de pigmento — desenha uma mancha mais clara. Tudo se complica nas lesões de 3º grau, em que a derme também foi arrasada. “Assim como não dá laranja em pé de limão, não nasce pele da gordura subcutânea”, compara Soares Pinto. “A única solução é fazer um enxerto.”
A pele enxertada tem de vir do próprio paciente, senão o organismo rejeita o tecido doado. Por isso, para cobrir a área despelada pela queimadura, os cirurgiões retiram uma lâmina, abrangendo a epiderme e parte da derme, de uma área sã do paciente. Essa lâmina é deixada sobre a região queimada, sem necessitar de sutura e nem sequer de medicamento. É como plantar grama num jardim: a placa de pele acaba pegando no tecido mais profundo. Em menos de cinco dias, vasos sanguíneos recém-formados enraízam o bloco enxertado e a epiderme, na fronteira da placa e da ferida, cresce até se unir. A região doadora se recupera como se tivesse sofrido uma queimadura de 2º grau.
Contudo, nem sempre o queimado tem uma extensão de pele boa tão grande como a lesada. Nesses casos, pode-se fazer o chamado enxerto em malha. Uma máquina perfura a lâmina doada, esticando-a até o triplo do tamanho original. Em outro truque, o do selo, os médicos recortam a placa em quadradinhos, que espalham no local queimado. Espera-se, tanto na técnica da malha como na do selo, que a epiderme cresça das bordas e feche toda a superfície. “Do ponto de vista estético, o resultado é ruim, por causa daquela diferença de cor da cicatrização. Ninguém quer ficar com uma pele xadrez”, reconhece Soares Pinto. Existem, ainda, peles substitutas, usadas para tampar temporariamente a ferida, como curativos que protegem contra a entrada de bactérias. Elas podem ser sintéticas, animais — em geral, de porco ou de rã — ou de cadáveres, que é a melhor alternativa. Para evitar a rejeição, o enxerto é trocado a cada dois ou três dias, antes de completar o prazo para o corpo produzir anticorpos.
As pesquisas, porém, concentram-se, na cultura de epiderme em laboratório. Segundo o especialista Gregory Gallico, dos Estados Unidos, participante do Simpósio de Queimaduras realizado em São Paulo, é possível obter extensões razoavelmente grandes de epitélio a partir de 1 centímetro quadrado doado pelo paciente. “As células desse pedacinho são debulhadas, como uma espiga de milho, e semeadas num meio propício”, explica o cientista americano. “Elas se replicam, estimuladas por um coquetel, cujos ingredientes tentam imitar o ambiente em que a célula vivia no organismo.” Se a receita dá certo, depois de duas ou três semanas surge, dentro do tubo de ensaio, uma folha de epiderme com até oito camadas de células. A equipe do Hospital das Clínicas paulistano começou a cultivar epiderme no ano passado e pretende conjugá-la com a derme retirada de cadáveres.
Os enxertos, na realidade, não evitam apenas as infecções. Eles atenuam outro problema: sob a ferida, forma-se um tecido fibroso, capaz de se retrair bastante, numa tentativa de colar as bordas do machucado. Esse processo não respeita a anatomia do corpo — e daí surgem terríveis deformações. Por isso, durante o tratamento, o paciente queimado permanece imobilizado em posição estirada e tem de recorrer à fisioterapia, logo que possível. Infelizmente, a recuperação de queimaduras sempre envolve dor e desconforto. Um novo curativo, criado nos Estados Unidos, procura aliviar esse sofrimento. A novidade foi trazida para o simpósio brasileiro na bagagem do médico americano Michel Hermans: “Trata-se de um polímero inerte, que adere à pele sã, e uma camada de partículas hidroativas”, ele descreve. “Essas partículas reagem com o líquido eliminado pela própria ferida, formando um gel, que não gruda no machucado. Co-mo sua superfície é impermeável, o paciente pode tomar banho normalmente”, diz Hermans. Mas a grande vantagem do curativo, que deverá ser testado no Brasil nos próximos meses, seria diminuir o tempo de cicatrização.
Com essa mesma finalidade, há a sugestão de outro especialista americano, Eric Kindwall, que propõe o uso da câmara hiperbárica, aquela encarregada de despressurizar mergulhadores. Dentro de um aparelho desses, a pessoa respira 100% de oxigênio, submetida a uma pressão de duas a três atmosferas, durante duas horas por dia. O oxigênio alcança uma diluição no sangue até 20 vezes maior que a normal. Isso acelera a cicatrização. “No quinto dia, observamos 16% de decréscimo da área queimada”, afirma Kindwall.
Se as novas técnicas de tratamento são caras, os antibióticos e os dias de internação também não saem barato. “O atendimento de uma pessoa com queimaduras graves custa, no mínimo, 10 mil dólares”, avalia Soares Pinto. “A situação é terrível, porque a maioria dos queimados vem das classes menos favorecidas.” Queimar-se, muitas vezes, é conseqüência de viver em casas de um único cômodo, com ligações elétricas clandestinas. Independentemente do nível econômico, estima-se que 60% das vítimas sejam crianças, sobretudo na faixa entre 1 e 5 anos de idade. Em geral, as queimaduras ocorrem dentro de casa. Pequenos cuidados evitam grandes acidentes: crianças fora da cozinha, cigarros apagados quando se mexe com produtos inflamáveis, fios elétricos encapados e instalações conservadas. Quando conselhos como esses foram divulgados em comerciais de televisão no Espírito Santo, o número anual de queimaduras do Estado despencou para um quinto da incidência anterior. Prevenir queimaduras é fácil. Porém, quando acontecem, por mais que os médicos se esforcem, é impossível impedir seqüelas.
Idéias para serem queimadas
No desespero de aliviar o ardor, muita gente faz coisas erradas, que só pioram a situação:
Clara de ovo e manteiga aliviam a dor
Em compensação, esses e outros produtos encontrados na cozinha, como o vinagre, podem contaminar a área lesada. É bom não arriscar.
Deve-se cobrir a lesão com um curativo
Estão proibidos os band-aids, esparadrapos e algodão. Eles grudam na ferida e provocam dor ao serem removidos. Se é necessário o socorro de um hospital, cubra o machucado apenas com um plástico ou pano bem limpos.
Mergulhar a queimadura na água cria bolhas
Mentira, porque isso é a melhor coisa que a vítima pode fazer. A água fria libera calor do local lesado, reduz a dor e as bactérias. As bolhas, se tiverem de aparecer, surgirão com ou sem esse banho.
É certo usar mercurocromo
Remédios coloridos como mercurocromo, violeta genciana e azul de metileno não ajudam, nem refrescam.
Há pomadas próprias para esses casos
Não existe nenhum produto capaz de curar ou mesmo acelerar a recuperação de uma queimadura. Ainda por cima, as pomadas mais comuns são a base de picrato de butesin, substância tóxica para o fígado.
Passar pasta de dente é ótimo
No início, o frescor do creme até alivia a dor, mas alguns de seus componentes, como o mentol, irritam o ferimento. E o pior é que, mais tarde, vai doer para limpar a pasta do local.
Gelo ajuda a sarar rápido
Ele pode anestesiar o lugar. Mas, também, fecha os vasos sanguíneos e destrói a pele saudável ao redor da queimadura. Com isso, dificulta a recuperação.