Futebol , onze homens e um segredo
Como explicar o sucesso do futebol em todo o planeta?Porque as regras são simples, porque qualquer um pode jogar, porque o mais fraco sempre tem uma chance.
Celso Unzelte
São apenas 17 regras, todas facílimas de entender – à exceção, talvez, daquela que impede um participante de receber a bola – o famoso impedimento. Além disso, o jogo, relativamente simples, pode ser adaptado para a prática em qualquer lugar e por qualquer número de pessoas, como mostra o advento de seus irmãos futsal, soçaite e de praia (ou de areia). Também não requer equipamentos caros ou sofisticados, como as luvas, as máscaras e os tacos do beisebol, bastando ter à mão – ou aos pés – uma bola, que pode ser até feita de meia, e alguma coisa para demarcar os gols. E, o melhor de tudo, principalmente para aqueles que não nasceram craques: as chances de sucesso de um time inferior sempre existem, algo muito mais raro no basquete ou no vôlei, por exemplo.
Talvez nenhuma dessas razões, isoladamente, possa responder à questão: por que o futebol é tão popular no mundo inteiro? Mas, juntas, todas elas ajudam a explicar o fenômeno. Por causa da conjunção de fatores como esses, 250 milhões de pessoas nos cinco continentes praticam o futebol atualmente (segundo uma pesquisa mundial patrocinada recentemente pela Fifa). Enquanto o número de filiados à Organização das Nações Unidas (ONU) é de 189, os membros da Fifa chegam a 203.
Fora de campo, o futebol é um campeão de audiência. Desde 1986, quando a Argentina de Maradona derrotou a Alemanha Ocidental por 3 x 2, a cada final de Copa do Mundo é batido o recorde mundial de assistência de um evento pela televisão. Calcula-se que a final da última Copa do Mundo, entre Brasil e França, tenha sido vista por 1,3 bilhão dos 6 bilhões de terráqueos.
Principal fomentadora da popularidade do futebol nos dias atuais, a televisão entrou em campo pela primeira vez em 1936, quando a Alemanha de Hitler fez uma transmissão experimental de um empate por 2 x 2 entre as seleções alemã e italiana. Em 1958, a Copa do Mundo da Suécia foi transmitida ao vivo para a Europa. O primeiro Mundial transmitido via satélite para o mundo inteiro (inclusive o Brasil) foi o do México, em 1970.
O futebol já foi capaz de provocar uma guerra – na América Central, em julho de 1969, quando uma briga num jogo El Salvador x Honduras serviu de pretexto para tropas do primeiro atacarem o segundo – e parar outra – naquele mesmo ano, a presença de Pelé em Lagos, capital da Nigéria, provocou uma trégua na guerra civil de Biafra, só para que os dois lados pudessem ver o “Rei do Futebol” jogar pelo Santos contra a seleção nigeriana.
Talvez o fascínio pelo futebol esteja no DNA humano. Só isso para explicar por que os povos mais diferentes, nas épocas mais variadas, gostavam de dar chutes numa bola. Do tsu-chu (de tsu, lançar com o pé, e chu, bola recheada, feita de couro), praticado como treinamento militar na China durante a dinastia do imperador Huang-Ti, entre 3000 e 2500 a.C., ao harpastum dos romanos, já no ano 200 a.C., o homem, mas principalmente a elite, sempre teve um fraco para os jogos com chute e bola. Há registros de esportes assim em civilizações de todo o planeta, dos nativos da Patagônia aos esquimós do Alasca, muito antes de se falar em football, Fifa ou Copa do Mundo.
A maioria desses jogos da antigüidade, porém, era reservada às elites. O povo só entrou em cena, mesmo, depois que as conquistas romanas levaram aquelas disputas a outras regiões, a partir do ano 43. O soule, versão do harpastum trazida para a atual França, continuava sendo praticado em jardins aristocráticos, inclusive pelo próprio rei Henrique II, que tinha como companheiro de equipe Pierre Ronsard, o chamado “Príncipe dos Poetas”. Mas também chegou às ruas, na Idade Média, na Itália (com o nome de calcio fiorentino, de onde vem a palavra calcio, usada até hoje pelos italianos para definir o futebol) e na Inglaterra, onde era praticado de forma desordenada, com os habitantes das cidades saindo às ruas em dias de festa para chutar uma bola de couro. Durante a Schrovetide, espécie de terça-feira gorda, os ingleses comemoravam a expulsão dos dinamarqueses. E a bola, no caso, simbolizava a cabeça de um oficial do exército invasor, que teria dado origem ao jogo.
A partir de 1700, o jogo invade as escolas inglesas. Os jovens, aos poucos, vão deixando de lado o tiro, a esgrima, a caça e a equitação. O problema, então, passa a ser a unificação das regras (cada escola tinha a sua), que enfim acontece em 1863. Nascia o futebol contemporâneo.
Por uma feliz coincidência, o novo jogo coincide com o auge do Império Britânico – aquele onde o sol nunca se punha. Estudantes, marinheiros, missionários e comerciantes ingleses não queriam deixar de jogar futebol onde quer que fossem. E a idéia foi se espalhando. Coube a estudantes, marinheiros, missionários e colonizadores ingleses espalhar o futebol da Grã-Bretanha para o mundo. Na Europa e em toda a América do Sul, a febre do futebol seguiu o rastro dos portos e das estradas de ferro construídas pelos britânicos. Na Ásia, a prática do pé na bola retornou depois de milhares de anos, também pela ação dos ingleses. Na África, eles estenderam o jogo “muito mais para o benefício dos colonizadores expatriados do que para o dos povos nativos”, como definiu o autor inglês Barry Baker no livro A Journal of African Football History: 1883-2000.
Os jogos entre seleções nacionais tiveram um papel importante na popularização do futebol. Sempre ganharam espaço na imprensa e criaram rivalidades que estimularam muito a evolução da qualidade do jogo. O primeiro amistoso de seleções foi um improvisado Inglaterra x Escócia, em 1872. Doze anos depois, as quatro seleções das Ilhas Britânicas – Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda (Irlanda do Norte a partir de 1924, com a independência do Eire) – começaram a disputar entre si o Home Championship, um torneio anual que só seria extinto exatos cem anos depois, em 1984. Aos poucos a idéia de montar seleções foi “pegando”. Ficaram famosos os encontros entre Bélgica e Holanda, Espanha e Portugal, Argentina e Uruguai…
A exeção: Os Estados Unidos
Mas em alguns países o futebol nunca “pegou”. A exceção mais notável são os Estados Unidos, onde o futebol sempre ficou atrás dos quatro major sports – beisebol, futebol americano, basquete e hóquei sobre gelo. Por que, se já em 1869, apenas seis anos após a unificação das regras na Inglaterra, era disputado o primeiro jogo de futebol entre duas universidades americanas (Princeton e Rutgers)?
Há quem tente explicar dizendo que o soccer é ruim para a televisão – não tem interrupções constantes que permitam intervalos comerciais. Mas o beisebol e o futebol americano já haviam suplantado o futebol muito antes da TV. Há quem diga que são os placares baixos, 0 x 0, 1 x 0, 1 x 1… mas o hóquei também tem placares baixos. A explicação mais plausível é que outro esporte inglês, o rúgbi, variante mais violenta do futebol, que pode ser jogada com as mãos, fez muito mais sucesso junto à elite universitária americana. O soccer acabou relegado a um esporte de colônias de imigrantes – primeiro europeus, depois latino-americanos – e ainda hoje tenta se libertar desse rótulo. Paradoxalmente, é nos EUA que se encontra o maior número de times de futebol federados do planeta. Segundo um levantamento da Fifa são 221 000, muito mais que o dos tradicionais campeões Alemanha (26 848), Brasil (12 890), Itália (18 529) e Argentina (3 035).
A globalização da copa
Mas o futebol só começou a ser visto realmente em termos universais, deslocando-se do eixo Europa–América do Sul para abranger os demais continentes, a partir de 1974. E por critérios mais políticos que técnicos. Foi quando o brasileiro João Havelange assumiu pela primeira vez a presidência da Fifa. Em troca dos votos que o elegeram e o manteriam no cargo por mais cinco mandatos, ele começou a trabalhar por um maior espaço para os países africanos e asiáticos na Copa do Mundo, a grande vitrine do futebol internacional que se realiza a cada quatro anos. No Mundial da Espanha, em 1982, o número de participantes na competição saltou de 16 para 24, permitindo aos africanos, donos de uma única vaga desde 1970, ter dois representantes. Em 1994, esse número aumenta para três e, em 1998 (última Copa organizada sob a presidência de Havelange, já com 32 seleções), subiu para cinco.
Os asiáticos também não têm do que reclamar: donos de uma única vaga até 1982, ganharam duas em 1986, quatro em 1998 e o direito de sediar a competição em 2002, com a divisão entre Coréia do Sul e Japão. O futebol, como a vida, torna-se cada vez mais globalizado.
Curso de inglês
Na grande maioria dos países, o futebol foi introduzido pelos britânicos – inclusive no Brasil, onde Charles Miller organizou os primeiros jogos em 1895. Mas há muitas exceções
Febre de bola
Pelo ano de filiação de cada país à Fifa, é possível ter uma idéia do gradual avanço do futebol em todo o planeta. Um dos últimos países a se filiar foi a isolada Mongólia
Frases
O soccer nunca teve, nos EUA, a popularidade do beisebol ou do basquete. Mas nenhum outro país tem tantos times de futebol registrados