Inimigo íntimo
Uma bactéria infernal que mora na pele e resiste aos mais poderosos antibióticos está se alastrando por hospitais brasileiros. Inofensiva na epiderme, ela vira o demônio ao entrar no corpo.
Flavia Natércia
Você já ouviu falar da bactéria Staphylococcus aureus? Ela é uma das milhares que moram sobre a pele. Não faz mal e até alimenta-se de impurezas. Pode ser uma hóspede inofensiva, desde que não penetre no corpo de pacientes debilitados. Pois esse micróbio insignificante, vulgar e inócuo virou um monstrengo infeccioso. Ele se reproduz tanto, e tão rápido, que, se cair no sangue, alastrando infecções pelo organismo, pode matar em 24 horas. Mas a pior notícia vem agora: uma linhagem brasileira do aureus tornou-se resistente aos mais fortes antibióticos e está flagelando hospitais. Só a vancomicina, a droga mais poderosa do mundo, ainda dá cabo dela. Porém, nos Estados Unidos, uma variedade do aureus já venceu até a vancomicina. A superbactéria está ganhando a guerra final contra os antibióticos.
Relação superficial
A superbactéria costuma morar sobre a pele.
O Staphylococcus aureus gruda nas células da superfície da pele, alimentando-se de detritos e impurezas. É uma comensal, não uma parasita. Desde que não invada o corpo, é pacífica.
O ataque das drogas
Os antibióticos têm três estratégias para combater uma infecção.
Sabotagem
Algumas drogas, como a tetraciclina, entram na bactéria e emperram o funcionamento das usinas que fabricam proteínas. Ela pára de se reproduzir.
Demolição
Remédios como a penicilina atrapalham a construção da parede da célula da bactéria. Quando ela se reproduz, dividindo-se em duas, a parede se rompe e ela morre.
Corte pela raiz
Alguns antibióticos vão diretamente ao alvo. Grudam nas enzimas que fazem as cópias do DNA, o código genético da bactéria, e bloqueiam sua reprodução.
Adversário quase invulnerável
Ele é implacável. A linhagem assassina do Staphylococcus aureus não dá tempo para os antibióticos fazerem efeito. Um reles corte na pele pode gerar septicemia (infecção generalizada). “A morte pode vir em menos de 24 horas”, disse à SUPER o infectologista Marcos Boulos, da Universidade de São Paulo.
O problema é que o bicho vence todas as drogas. O histórico de resistência do aureus no mundo causa calafrios. Ele criou táticas para tapear os antibióticos à medida que foram usados para combatê-lo (veja os infográficos acima). Segundo o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, em 1950, sete anos após a introdução da penicilina, 50% das linhagens já resistiam. Em 1960 surgiu o antibótico meticilina, mas, em 1961, o micróbio já o tinha vencido na Inglaterra. A ineficiência da meticilina pulou de 2% em 1975 para 35% em 1996, nos Estados Unidos. Mais de 100 antibióticos foram desenvolvidos dos anos 50 até hoje e todos, um a um, foram derrotados. Diante da ameaça, a vancomicina, inventada em 1958, mas abandonada por sua alta toxicidade, foi recuperada, purificada e lançada no mercado nos anos 80.
Foi um breque. A vancomicina parecia invencível. E, felizmente para nós, ela ainda extermina a linhagem brasileira do estafilococo. Mas outro alarme já foi dado. Em março de 1998, registrou-se o primeiro caso fatal de infecção por um Staphylococcus aureus resistente à vancomicina, em Nova York. Ou seja, a bactéria que ameaça os hospitais brasileiros já derrotou seu inimigo número 1 nos Estados Unidos.
Uma droga nova, capaz de liquidar o aureus, demorará oito a dez anos. Os laboratórios também foram surpreendidos. Quando a vancomicina surgiu, foi tida como imbatível. Muitas indústrias suspenderam os investimentos em antibióticos, já que o mercado estava saturado. “Foi uma visão arrogante”, admite o diretor de pesquisas clínicas do laboratório Schering-Plough, Jacques Garaud. “Na verdade, as bactérias foram mais criativas.”
O contra-ataque
O Staphylococcus aureus dispõe de vários mecanismos de resistência.
Metamorfose
A bactéria refaz a estrutura das enzimas que são alvo do antibiótico. Cria enzimas novas ou modifica as originais até desorientar o remédio.
Campo de força
O micróbio também sabe alterar as moléculas das paredes em que o medicamento se encaixa. Aí, a droga perde o alvo.
Míssil teleguiado
Contra a penicilina, o aureus lança enzimas que alteram ou destroem o antibiótico quando ele se aproxima.
Prevenção é a arma mais eficaz
Além de poderoso, o aureus dissemina-se como uma praga. O bicho já foi encontrado em hospitais de Porto Alegre a Manaus e até cruzou fronteiras, para Portugal e para o Leste Europeu. “A linhagem brasileira tem uma impressionante velocidade de propagação”, disse à SUPER Alexander Tomasz, chefe do Laboratório de Microbiologia da Universidade Rockefeller, em Nova York. Tomasz é o responsável por um projeto de rastreamento, uma verdadeira caçada empreendida em três continentes – América, Europa e Ásia –, em parceria com a Universidade Nova de Lisboa e com a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tanto esforço não é à toa. “No Hospital São Paulo, 45% dos pacientes com Staphylococcus aureus no sangue, em 1997, morreram”, disse à SUPER o infectologista Antônio Carlos Pignatari, da Universidade Federal de São Paulo. “Não existem dados confiáveis, mas está claro que as mortes causadas por bactérias multirresistentes estão aumentando.” No Brasil, as Comissões de Controle de Infecção Hospitalar, tornadas obrigatórias por lei em 1998, nem se formaram em muitos hospitais. “E as que existem”, diz o infectologista Nilton Cavalcante, do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, “nem sempre atendem às condições exigidas pela lei.”
Exterminar o monstrengo é difícil. “A idéia de uma vitória final é uma ilusão”, diz Tomasz. “Os micróbios vão continuar sendo nossos companheiros neste planeta e nada vai impedir o contínuo surgimento de microrganismos capazes de se defender dos antibióticos.” As soluções, portanto, são preventivas. Uma delas, a mais trivial, está literalmente nas mãos dos médicos. “Lavar as mãos é a medida mais simples e barata contra infecções hospitalares”, afirma Pignatari. Parece absurdo – e realmente é –, mas o fato é que o desrespeito a esse procedimento elementar de higiene é muito comum em todo o mundo.
Os médicos também têm outra responsabilidade. Muitos receitam drogas ou doses inadequadas, quando não prescrevem medicamentos de última geração para tratar de infecções leves. Pacientes que se automedicam ou desrespeitam dosagens também colaboram para que o aureus sobreviva dentro deles e se reproduza (veja quadro).
O Staphylococcus aureus está arrastando o homem numa viagem no tempo para mais de cinqüenta anos atrás, antes da descoberta da penicilina, quando as infecções reinavam. “Não teremos solução a curto prazo”, lamenta Marcos Boulos. “Viramos reféns de bactérias.” É hora de impor um cerco a esses seqüestradores.
Para saber mais
The Antibiotic Paradox: How Miracle Drugs Are Destroying the Miracle. S. B. Levy. Plenum Publishers, Nova York, 1992.
Na Internet: https://www.cdc.gov
Rede de intrigas
As instruções para a resistência aos antibióticos são transmitidas de uma bactéria para outra.
Herança perversa
Mesmo quando explode, o aureus ainda espalha seu código genético, que pode ser herdado até por uma outra espécie.
União genética
Os vírus que parasitam a bactéria juntam seu próprio código genético a pedaços do DNA do micróbio. Ao invadir outras células, eles repassam as receitas do estafilococo para o contra-ataque aos antibióticos.
Canal de informações
Parece sexo, mas se chama conjugação. Por meio de um canal formado entre duas bactérias que se aproximam, elas trocam material genético com as informações de resistência.
Manual de sobrevivência
O que você pode fazer para ajudar os antibióticos.
Não beba
O álcool atrapalha todo tratamento, pois causa um aumento na eliminação de substâncias pelos rins. Parte do antibiótico vai junto. Aí o remédio não faz efeito e, ainda por cima, ajuda a bactéria.
Não tome remédio sem receita
Apenas os médicos podem escolher o melhor remédio. Antibióticos só fazem efeito contra bactérias, nunca contra vírus. Não adianta tomar um contra a gripe, por exemplo.
Não interrompa o tratamento
Se você está fazendo um tratamento e se esquece de tomar a droga no horário correto, ou pára antes de completar o período recomendado, está ajudando os micróbios. O remédio mata alguns, mas não os resistentes, que se multiplicam sem concorrência.