Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Pela hora da morte

Aurora Bau lutou pela eutanásia de Ramón Sampedro, o tetraplégico do filme Mar Adentro. Para ela, todos nós temos o direito de escolher quando a vida acaba

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 28 fev 2005, 22h00

Érica Montenegro

Durante três anos, o marinheiro espanhol Ramón Sampedro lutou nos tribunais pelo direito de morrer. Quando jovem, ele mergulhou no mar e bateu a cabeça. A queda o deixou paralisado sobre a cama, podendo mover apenas os músculos do rosto. Após 26 anos prostrado, Ramón concluiu que era melhor morrer. Mas, como tetraplégico, não conseguia se matar. É aí que entra Aurora Bau, espanhola de 67 anos que dirige a Associação Direito a Morrer Dignamente (ADMD), uma das mais ativas ONGs mundiais pela legalização da eutanásia.

A história de Ramón ganhou fama com Mar Adentro, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano. Aurora foi consultora do roteiro e serviu de inspiração para uma das personagens, a ativista Gené. Em 1995, ela ofereceu amparo jurídico ao pedido de eutanásia do marinheiro. Com a recusa dos tribunais, passou a lhe prestar assistência psicológica enquanto ele planejava o intrincado esquema de sua morte: 14 amigos realizaram pequenos atos que não eram considerados crimes, mas levaram Ramón à morte (Aurora diz não ter participado da operação). Também se incumbiu de divulgar sua causa: a vida é um direito, e não um dever. Para ela, a eutanásia é uma questão de livre arbítrio igual a doar órgãos, ter filhos ou dirigir um carro. Na Espanha, a ativista foi uma das principais líderes do movimento que conseguiu a legalização da eutanásia passiva, que permite ao doente optar por não continuar o tratamento sem que o médico seja judicialmente acusado de negligência.

Como começou sua luta pela eutanásia?

Pode parecer esquisito, mas não sei como abracei a causa. Ainda não passei pela situação de ter um doente terminal na família. Sei que desde jovem já procurava não temer a morte. Achava que viveria com mais liberdade se não tivesse medo de partir. Também lembro de um episódio que me marcou muito: eu era criança quando um vizinho se suicidou e as pessoas do bairro ficaram em dúvida se ele deveria ter um enterro cristão ou não. Aquilo me revoltou. Imagine negar um enterro digno a alguém!

O que fazer para envolver as pessoas num debate tão delicado como este?

Continua após a publicidade

Em primeiro lugar, é preciso deixar a sociedade madura para tomar decisões. Quando for a hora, ela saberá o que fazer. Aqui na ADMD concordamos em quatro pontos: o primeiro é que o doente tenha manifestado reiteradamente o desejo de interromper a vida. O segundo é que a doença seja crônica ou grave. O terceiro, que a eutanásia seja feita por um médico. E o quarto, que a doença provoque sofrimento físico ou psíquico. Foi o caso de Ramón Sampedro que nos fez incluir este último ponto. Ramón não era um doente terminal, mas tampouco queria viver preso numa cama. Ele nos deixou a reflexão de que a vida não é apenas respirar.

Ativistas costumam tratar a eutanásia como a “boa morte”. O que é isso?

Há 20 anos conseguimos que a Espanha aprovasse uma lei que autoriza a chamada eutanásia passiva, que permite ao doente em fase terminal receber apenas remédios contra a dor. Até aquele momento, imperava o conceito de que os médicos deveriam lutar pela vida a qualquer custo e levar adiante tratamentos penosos mesmo contra a vontade dos doentes. A grandeza dessa lei é que ela poupa o doente de procedimentos invasivos e deixa que a morte o encontre num momento de paz e tranqüilidade. Morrer bem é morrer com dignidade, cercado pelas pessoas que são importantes para você. Como se a vida fosse uma barca e você a deixasse seguir seu curso natural.

A eutanásia é uma decisão tomada em momentos de angústia. Como evitar que doentes decidam morrer motivados, por exemplo, por uma crise de dor?

Continua após a publicidade

Liberdade pressupõe responsabilidade. Durante a vida, tomamos decisões das quais não podemos voltar atrás. Ter filhos é uma delas. Mesmo nos casos em que se pode voltar atrás, sempre será preciso arcar com as responsabilidades. Para mim, o direito de morrer funciona com as mesmas premissas. Não existe nada mais sério do que a vida, então é preciso pensar bastante sobre como dispor dela. Se você tomar a decisão errada, arcará com as conseqüências. Este é o preço de ser livre.

Doentes terminais muitas vezes não gozam de faculdades mentais para optar pela interrupção da vida. Nesses casos, a família pode decidir pela morte?

Só quem pode decidir é o proprietário da vida. Porém, existem mecanismos para garantir que essa opção seja feita antes do estado crítico. Aqui na Espanha, há o que chamamos de “testamento vital”. É um documento, endereçado ao médico, em que o doente determina o que quer e o que não quer que seja feito em caso de enfermidade grave. O testamento vital formaliza os limites que cada um julga adequados ao seu tratamento e protege igualmente o doente e o médico. Temos de lembrar que o avanço da medicina produziu o paradoxo de as pessoas serem mantidas vivas artificialmente. Todos temos o direito de decidir se queremos isso ou não. Na Espanha, o testamento vital é a pauta que norteia o tratamento e o médico é obrigado a cumpri-lo.

O que você acha das punições recebidas por médicos que aplicam substâncias letais em seus pacientes?

Continua após a publicidade

A lei entende que na eutanásia uma pessoa tira a vida de outra. Como ninguém tem esse direito, o ordenamento jurídico associa eutanásia com homicídio. Mas pedir para morrer é muito diferente de ser assassinado. Se cada um é dono da própria vida, então a mesma regra vale para a morte. Nossa causa defende que, uma vez incapacitado de tirar a própria vida, você possa pedir ajuda de alguém. Se quero morrer, o suicídio é uma solução. Mas se estou preso a uma cama e não tenho como me matar, posso pedir a ajuda de alguém.

A eutanásia, então, é o mesmo que suicídio?

Não. Se alguém quer acabar com a própria vida, comete o suicídio e esta decisão precisa ser respeitada. Mas a eutanásia não é um suicídio, não é simplesmente um jeito de encurtar a vida. Em alguns casos, a eutanásia poderia até servir para prolongar a vida. Imagine uma pessoa que descobre hoje que tem uma doença degenerativa, uma doença que vai levá-la a um estado vegetativo. Esta pessoa pode querer se matar agora, enquanto tem forças para fazê-lo. Se a eutanásia fosse legalizada, ela poderia escolher até que ponto da doença quer viver, poderia decidir a hora de se despedir da vida.

Até hoje, a Holanda é o único país que legalizou a eutanásia ativa. Por que esta é uma questão tão espinhosa para a maioria das sociedades?

Continua após a publicidade

A morte é um tabu cercado de amarras religiosas, morais e jurídicas – todas muito fortes. Para nossa sociedade judaico-cristã, impera a visão de que foi Deus que nos deu a vida e que, portanto, só Ele pode tirá-la. Mesmo aqui na ADMD, temos entre nossos membros sacerdotes e padres. Para eles, Deus não gostaria de nos ver submetidos a sofrimentos. Enfim, esta é uma questão de crenças. Mas crenças devem ser respeitadas, jamais impostas.

Aurora Bau

Continua após a publicidade

• Pratica esportes quatro vezes por semana. Faz tai chi chuan e natação

• Não gosta de cozinhar, mas é boa de garfo. Adora pratos agridoces e sorvete de chocolate

• Trabalha quatro dias por semana. Tira folga de sexta a domingo

• Além de defender a eutanásia, é engajada na luta pela preservação do Patrimônio Histórico Mundial

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.