Pesadelo sem fim
Uns experimentam drogas e sobrevivem, ilesos. Outros se tornam dependentes. Para a ciência, a explicação pode estar na dopamina, a molécula do prazer.
Luciana Garbin
Pode começar com uma cervejinha inocente, ou um cigarro de maconha. Pode ser que não aconteça nem após muitos anos de uso de cocaína. A dependência é uma roleta russa: quando você experimenta uma droga, qualquer uma, dificilmente saberá se a bala está na agulha.
O disparo tem mais chance de acontecer com algumas drogas do que com outras.
A cocaína e o tabaco, por exemplo, viciam mais que a maconha e o LSD. Algumas pessoas também estão mais propensas à adicção do que outras. E isso depende até das razões que as levam à droga.
Se a bala dispara, o indivíduo perde toda a liberdade. Passa a fazer tudo pela droga. Escravo do próprio prazer, estará condenado à morte ou ao inferno da dependência. De onde só três em cada dez conseguem escapar.
O segredo é a dopamina
Os mecanismos que causam a dependência ainda são um enigma. Mas os cientistas acham que uma molécula produzida pelo cérebro pode ser a chave de tudo.
O que torna algumas pessoas mais propensas à dependência do que outras? A ciência ainda não sabe responder essa pergunta. Os fatores sociais e psicológicos, como a estabilidade familiar, o ambiente e a educação, geralmente fazem a diferença entre o dependente e o usuário ocasional de drogas. Um menino de rua, sem família e sem escola, tem muito mais chance de se viciar em crack do que um adolescente de classe média. Mas há viciados até nas melhores famílias. Por quê?
A Neurobiologia tem uma boa pista. A chave pode ser uma molécula, a dopamina, que atua no cérebro. Ela é um neurotransmissor, ou seja, um mensageiro químico, que está presente em uma parte do sistema nervoso chamada circuito de recompensa. Essa parte do cérebro coordena todas as atividades que envolvem o prazer. Graças ao circuito de recompensa, o ser humano se sente satisfeito quando come, descansa ou faz sexo. A dopamina é o principal agente desse sistema. Se uma ação qualquer provoca liberação de dopamina, você sente prazer. Nada mais óbvio, portanto, do que repetir a ação. Isso vale para coisas tão distintas quanto comer chocolate, namorar, tirar um dez na escola, marcar um gol. E, para alguns, usar drogas.
Quando o psicotrópico chega ao cérebro, estimula a liberação de uma dose extra de dopamina no circuito de recompensa. Os cientistas acham que, quanto maior o prazer provocado por uma droga, maior é a vontade de consumi-la de novo. Isso poderia explicar o poder que cada droga tem de induzir ao vício.
Como algumas substâncias psicotrópicas perturbam o cérebro
COCAÍNA
A coca “entope” os terminais da dopamina no axônio, impedindo sua reabsorção. O resultado é uma overdose do transmissor na sinapse.
CIGARRO
A nicotina estimula a liberação de um excesso de dopamina. Outras substâncias do tabaco impedem a degradação da dopamina reabsorvida.
ANFETAMINAS
Como a nicotina, as anfetaminas entram na célula estimulando a liberação excessiva de dopamina na sinapse. Outra overdose ocorre.
Como age a dopamina
1. O neurônio é um fio elétrico. Ele transmite os impulsos pela sua “cauda” (o axônio) até um outro neurônio.
2. A dopamina é um neurotransmissor. Sua função é transformar o impulso elétrico num sinal químico, que será enviado à célula vizinha (neurônio 2).
3. O axônio do neurônio 1 libera dopamina na sinapse (o espaço entre as duas células). Ela se encaixa como uma chave em fechaduras específicas, os receptores.
4. Após o encaixe, ela não fica no neurônio 2, e sim volta aos terminais de sua célula de origem.
5. Lá, ela poderá ficar estocada para uma nova comunicação ou ser degradada por uma enzima, a monoamina-oxidase (MAO).
Chegando ao fundo do poço
A síndrome de abstinência é a face mais triste da dependência. Em vez de procurar prazer na química, o viciado a usa para evitar a dor
À medida em que o uso de alguma droga vai se prolongando, o organismo do usuário tenta se ajustar a esse hábito. O cérebro adapta seu próprio metabolismo para atenuar os efeitos da droga. Cria-se, assim, uma tolerância ao tóxico. Uma dose que normalmente faria um estrago enorme torna-se inócua. O pesadelo começa quando o usuário procura a mesma sensação das doses anteriores e não acha. Aí, só há um jeito: aumentar o consumo. Fazendo isso, a tolerância cresce e torna-se necessária uma quantidade ainda maior para obter o mesmo efeito. Como numa bola de neve, a dependência se agrava.
Se o viciado decide abandonar a droga ou reduzir sua dose, seu corpo paga caro. Como o psicotrópico imita os neurotransmissores, o cérebro deixa de produzi-los. A droga se integra ao funcionamento normal do órgão. Sem o “impostor” químico, o sistema nervoso entra em parafuso.
É a síndrome de abstinência. “Os sintomas da abstinência são exatamente opostos aos efeitos da droga”, explica à SUPER o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo. Se a cocaína, por exemplo, provoca excitação, sua ausência deprime. É onde o vício mostra sua face mais cruel. Em vez de procurar o prazer na droga, o dependente procura doses cada vez maiores para evitar o sofrimento. E, uma hora, a droga acaba.
“Trafiquei armas em troca de pó”
Se não estivesse numa clínica, internada pela sexta vez, S., de 25 anos, bonita, olhos escuros, poderia muito bem estar nas páginas uma revista de moda. Ninguém diria que ela já roubou a própria mãe para comprar drogas. Hoje, só tem uma meta: se recuperar para poder cuidar do filho, de 5 anos. “Meu pai e minha mãe eram dependentes de remédios. Com sete anos, bebi pela primeira vez. Aos 12, com a desculpa de emagrecer, comecei a usar anfetaminas. Depois, passei para cocaína, crack e LSD. Com 15 anos, me internei pela primeira vez. Percebi que não conseguia mais me controlar. Em algumas ocasiões, andava de cadeira de rodas, de tão debilitada pelas drogas. As internações atrapalhavam meus estudos, trabalho, meu estágio num grande banco. Por um tempo, trabalhei traficando armas e recebendo o pagamento em pó. Contraí o vírus HIV de meu ex-marido, que tomava drogas injetáveis e saía com prostitutas. Tenho fé que tudo vai dar certo.”
A montanha-russa do vício
O mergulho nas drogas, assim como a recuperação, segue um roteiro que, apesar de não ser igual para todo mundo, tem “estações” comuns.
PARAÍSO ARTIFICIAL
Uso “social”, em festas e reuniões com amigos.
DESPENCANDO NO ABISMO
A droga começa a interferir na percepção do cotidiano e nas relações pessoais.
A LOUCURA
Obsessão com a droga e perda do interesse por tudo o mais. O prazer químico é a melhor coisa da vida.
NO BURACO
Deterioração completa da vida pessoal e profissional. Faz-se tudo pela droga. Muitos morrem aqui. Poucos irão sobreviver.
PEDINDO CORRO
A consciência do mal que se está causando a si mesmo e aos outros se afirma. Procura-se ajuda.
LUZ NO FIM DO TÚNEL
Diminuição ou abandono do consumo. O encontro com outros dependentes em recuperação estimula a cura.
OUTROS HORIZONTES
Descoberta de fontes de prazer não relacionadas com a droga. Terapia para evitar recaídas.
Caminho da cura
AMBULATÓRIO – O tratamento ambulatorial é indicado para a maior parte dos casos de dependência. Grupos como o Proad, na Universidade Federal de São Paulo, e o Grea, na USP, oferecem auxílio médico e psiquiátrico sem necessidade de internação.
CLÍNICAS – Recomendada apenas para casos de psicose, intoxicação aguda ou síndrome de abstinência intensa, a internação em clínicas começa com uma desintoxicação. Os sintomas da abstinência são combatidos com medicamentos.
GRUPOS DE TERAPIA – Grupos como os Narcóticos Anônimos difundem a troca de experiências e apoio mútuo. Em reuniões diárias, os participantes discutem suas vivências durante a dependência.
“Eu me identificava com a droga”
M., 24, ri das “loucuras” que fez. Agora que está internado para se livrar da cocaína, já tem motivos para rir. Até engordou uns quilos. Mas há poucos anos, quando tentou suicício, não achava graça nenhuma no vício.“Conheci as drogas dentro de casa, por causa do meu pai. Ele era alcólatra. Comecei a beber com 16 anos. Com 17, passei a fumar maconha e usar cocaína com os amigos da rua. Da minha turma de oito ou nove que usavam drogas, só eu me tornei um dependente. Fui o sorteado. Tenho predisposição. No início, pensava em cheirar só nos fins de semana. Depois, comecei a me identificar com a droga. Com ela, conseguia fugir de uma realidade da qual eu não gostava. Tentei suicídio mais de uma vez. Numa delas, bebi uma caixa de cerveja, cheirei cocaína e subi num prédio. Não conseguia me atirar. Pus a mão no bolso e encontrei dois reais. Gastei numa pinga e subi de novo. Não conseguia cair. Desisti. Por causa da droga, perdi mulheres que eu amava, empregos e projetos de vida. Um dia, meperguntei: se eu ganhar 100 mil reais, o que posso fazer com o dinheiro? Não encontrei resposta. Não tinha planos.”
O barato sem drogas
Algumas atividades proporcionam, de forma natural, um prazer semelhante ao dos tóxicos.
“Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.” Os versos do poeta brasileiro Manuel Bandeira (1886-1968), escritos há mais de cinqüenta anos, estão sendo confirmados pelo que há de mais moderno nas pesquisas científicas. Hoje, sabe-se que a mesma enxurrada de neurotransmissores liberada pela ação das drogas também é deflagrada por algumas atividades e alimentos específicos. Em alguns casos podem até alterar a consciência. Elas também estimulam o circuito de recompensa, criando dependência. O efeito, é claro, não é tão intenso como o dos psicotrópicos. Em compensação, você não vira um trapo humano.
Praticando esportes pelo menos uma hora por dia, seu corpo passa a liberar mais endorfina – o mesmo neurotransmissor que provoca o êxtase nos usuários de heroína. A endorfina aumenta o bem-estar e diminui o cansaço. Ela também reduz a sensação de dor. Por essa razão, alguns atletas, quando machucados, não sentem a pancada na hora. Esportes como o pára-quedismo são uma descarga de adrenalina pura, parecida com o estímulo provocado pela cocaína.
Doce dopamina
Alimentos como o chocolate contêm moléculas que interagem com os neurotransmissores e mexem com o circuito de recompensa, liberando mais dopamina no cérebro. É por isso que você fica feliz quando come chocolate – é claro, desde que sem excessos.
O sexo é, ao mesmo tempo, narcótico, estimulante e alucinógeno. Uma relação sexual aumenta a dopamina no circuito de recompensa, causando euforia; mexe nos níveis de serotonina, potencializando os sentidos e causando sensação de bem-estar; e libera endorfinas.
Claro, não se trata de trocar uma droga por outra, ou por outras. Mas há prazeres naturais menos destrutivos, que têm a mesma origem fisiológica daqueles provocados pelos psicotrópicos. Como Manuel Bandeira, tome alegria.