Por que é tão difícil comer bem
Spoiler: não é. Mas o mercado das dietas, a exposição a padrões de corpo irreais e os charlatões das redes sociais desviam o foco do que realmente importa.
Comer bem é simples. Basta seguir três passos: coma comida de verdade, em quantidades moderadas, principalmente vegetais. Essas instruções são do jornalista americano Michael Pollan, um especialista em nutrição e seus mitos. Em 2008, ele publicou o livro Em defesa da comida: um manifesto, em que destrincha essas três regrinhas.
Pollan argumenta que uma parte razoável do que se come hoje, no Ocidente, não é bem comida, e sim algum tipo de substância comestível – uma espiga de milho se enquadra na primeira categoria, enquanto salgadinhos ultraprocessados pertencem à segunda.
Entre as comidas de verdade, dê preferência àquelas que vêm de plantas, o que garante uma ingestão mais parcimoniosa de gordura e açúcar (isso não significa, é claro, que produtos de origem animal devam ficar de fora da dieta). E use o bom senso na hora de montar as porções, para não comer além da conta.
É só isso. Não existe dieta detox ou chá misterioso que substituam o bom senso. Mesmo assim, somos mais propensos a testar soluções pontuais, panaceias sem base em evidências científicas e dicas mal-embasadas em vez de sermos saudáveis de maneira simples e eficaz.
A culpa não é (totalmente) nossa. Com a quantidade desesperadora de informação errada, imprecisa ou exagerada sobre comida disponível na internet, deixamos de lado o óbvio e passamos a acreditar em absurdos como listas de alimentos permitidos ou proibidos. Pela enésima vez: ovos fritos não são vilões – e romãs, sozinhas, não evitam câncer, artrite ou pressão alta.
Somado a isso, há uma indústria que se beneficia dos padrões de beleza irreais propagados nas redes sociais para vender métodos milagrosos de emagrecimento. Por um lado, há a banalização de Ozempic, Wegovy e afins – que comprovadamente funcionam, mas são drogas para diabetes indicadas também contra obesidade, e não cosméticos para perder alguns quilinhos.
Por outro lado, há todo tipo de método caseiro estapafúrdio – como o ricezempic, um trocadilho entre “arroz” em inglês (rice) e Ozempic. Trata-se de uma trend de TikTok que envolve beber um copo de água de arroz com limão espremido para enganar a fome e emagrecer. Não faça isso em casa.
Além de não serem duradouros a longo prazo, os métodos que prometem emagrecimento rápido têm grande potencial de destruir nossa relação com a comida. Nas próximas páginas, vamos entender por que, mesmo sabendo perfeitamente o que fazer para ser saudável de forma simples, é tão difícil seguir essas instruções.
O que fomos feitos para comer…
Durante a maior parte da História, ninguém sabia bem o que ia comer no dia seguinte. A rotina dos sapiens caçadores-coletores era acordar e procurar plantas e sementes – com sorte, um coelho; com algum trabalho em grupo, um bisão. Havia como estocar alimento, é claro, mas não muito. A possibilidade de armazenamento variava conforme a biodiversidade do local, a época do ano, a cultura e a organização social de cada grupamento humano.
Açúcar e gordura são fontes de calorias relativamente escassas na natureza. Era comum gastar um montão de energia atrás de comida e terminar o dia em déficit. O resultado disso é que nosso cérebro evoluiu para ter um bocado de prazer com frutas doces e animais gordurosos. Para não morrer de fome, era necessário encher a barriga com o máximo de açúcar e gordura sempre que possível.
Há 12 mil anos, a humanidade passou pela mudança de dieta mais drástica da História. Foi a Revolução do Neolítico: muitos grupos passaram a plantar grãos como trigo ou cevada em larga escala, o que permitiu que mais pessoas vivessem juntas em um lugar só por mais tempo. Em vez de apostar na loteria da natureza, os humanos sabiam o que iam comer naquele dia. E no dia seguinte. E no outro… O cardápio raramente mudava.
“Os caçadores-coletores eram mais bem nutridos do que aqueles que passaram pela sedentarização”, diz Tábita Hünemeier, pesquisadora da USP especializada em genética de populações. “Quando se estabeleceu a agricultura, os humanos saíram de uma nutrição diversa para uma nutrição que é 80% ou 90% baseada em um só grão, normalmente.”
Em algumas ocasiões, a seleção natural beneficiou indivíduos que conseguiam reservar mais energia e compensar o déficit nutricional causado pela agricultura. É o caso das populações do México que domesticaram o milho: até hoje eles têm uma forma específica do gene ABCA1 que resulta no acúmulo de 30% mais colesterol nas células (1).
Acontece que hoje temos bem mais acesso a comida do que os caçadores-coletores e os primeiros agricultores. Mudamos nosso habitat mais rápido do que a evolução deu conta de acompanhar. Por um lado, não gastamos mais calorias indo atrás de comida. Por outro lado, há um bocado de comida com muito mais calorias do que qualquer coisa a que os sapiens pré-históricos tinham acesso. Para compensar esses luxos, agora temos que usar um pouco do tempo livre para ir à academia.
Nosso passado caçador-coletor e agricultor explica por que nosso corpo é tão apegado às gordurinhas. E tudo bem – é uma estratégia de sobrevivência. O problema é que essas predisposições biológicas são usadas pela indústria alimentícia para enganar o cérebro e nos viciar em substâncias totalmente diferentes do que comemos ao longo da História.
… e o que não fomos feitos para comer
A primeira recomendação do Pollan (“coma comida de verdade”) não faria sentido antes dos anos 1980. Foi ali que começamos a ingerir alimentos ultraprocessados, que hoje correspondem a um quarto da dieta dos brasileiros (2).
Todos eles começam com certas matérias-primas básicas, que de fato têm origem animal ou vegetal. Um exemplo é a cana-de-açúcar, que dá origem ao chamado açúcar invertido. Outro é a soja, que fornece proteína e gordura vegetal hidrogenada. Depois, esses ingredientes são recombinados pela indústria para dar origem a uma substância alimentícia Frankenstein.
“Se a gente parasse por aqui, isso seria completamente intragável”, diz Maria Laura Louzada, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens). “É provavelmente uma massa bege, nada atraente para nós. Para finalizar o produto, é preciso dar cor, sabor e textura com aditivos.”
Esse é o pulo do gato. Textura agradável, aroma atraente e sabor intenso são cuidadosamente colocados ali para fazer você comer uma guloseima atrás da outra. Para completar, esses alimentos costumam ter pouca fibra, que dá saciedade. Em vez de mandar um sinal de “tô cheio” ao hipotálamo – a área do cérebro que nos faz parar de comer –, o que rola é um “quero mais”.
O ultraprocessamento introduz altos níveis de açúcar, gordura e sódio em um único alimento e o torna hiperpalatável (ou seja, gostoso) em um grau que é impossível de encontrar na natureza. “Com os alimentos em estado natural, temos certo controle fisiológico, eu sei quando parar […] Agora estamos expostos a essas formulações e não tivemos tempo de evoluir para lidar com elas. É um bug coletivo”, diz Louzada.
Uma evidência bem ilustrativa de que os ultraprocessados hackeiam nosso cérebro foi um estudo clínico publicado em 2019 (3). Vinte adultos de peso normal foram divididos em dois grupos: um deles recebeu uma dieta composta majoritariamente de ultraprocessados, enquanto o outro comia apenas alimentos naturais.
As duas dietas forneciam quantidades comparáveis de proteínas, carboidratos e lipídios. Os participantes podiam escolher quando estavam satisfeitos e parar de comer. No final do período, o grupo de ultraprocessados ingeriu 500 calorias a mais por dia em comparação ao segundo.
Ou seja: comer alimentos de verdade já te faz comer menos naturalmente. Acontece que os ultraprocessados são mais viciantes, baratos, duráveis e estão disponíveis em praticamente todo quarteirão de cidades grandes. Essa dinâmica está por trás do aumento do índice de obesidade da população brasileira, que saltou de 11,8% em 2006 para 24,3% em 2023. Um em cada quatro adultos (4).
Até aqui resumimos por que gostamos tanto de sabores açucarados e gordurosos – e como os produtos ao nosso redor nos fazem cair em tentação. Agora vamos à parte que parece contraditória: apesar dos índices recordes de obesidade, nunca estivemos tão expostos à magreza como ideal de beleza, graças às redes sociais. E junto disso vem uma indústria milionária que lucra com nosso eterno desejo de atingir o corpo-padrão.
Nutrição picareta
O cérebro humano gosta de poupar energia. Se você quer perder peso, ele vai procurar a maneira mais simples e rápida de atingir esse objetivo. Isso nos torna mais suscetíveis a cair em falácias científicas e marketing desonesto. É o que nos faz acreditar que o sal do Himalaia faz perder peso rápido.
A nutrição é a ciência mais próxima do nosso dia a dia – e, não à toa, uma das que mais despertam interesse do público. Só que uma parte razoável das informações que circulam sobre a área é embasada em estudos de má qualidade, ou sequer são sustentadas por pesquisas. É um terreno fértil para a pseudociência.
Começando com um exemplo histórico: os supostos benefícios de consumir grandes doses de vitaminas. Essa ideia equivocada começou com Linus Pauling – ganhador de dois prêmios Nobel e um dos pesquisadores mais importantes da química.
No final da vida, ele passou a defender a ingestão de megadoses de vitamina C, afirmando que o nutriente preveniria doenças que vão do resfriado ao câncer. Segundo Pauling, a quantidade ideal seria 2 g por dia – vinte vezes a dose recomendada. Isso não o impediu de morrer de câncer de próstata em 1994. A ideia estava errada, mas seu currículo imponente (fica difícil discutir com um Nobel) deu força ao caô.
Pauling abriu a porta para o que viria a ser chamado “medicina ortomolecular” (que, diga-se de passagem, não é aprovada pelo Conselho Federal de Medicina). Trata-se de uma especialidade que preconiza o uso de doses homéricas de vitaminas, maiores do que encontramos em qualquer dieta equilibrada e saudável.
Os estudos clínicos sérios sobre suplementação de vitaminas apontam que elas não só não fazem diferença na prevenção de doenças como podem agravar algumas delas (5). O consumo excessivo de betacarotenos, por exemplo, está associado à maior mortalidade em pacientes com câncer de pulmão (6), e a suplementação desnecessária de vitamina C pode causar cálculos renais (7) – sem fazer cócegas nos resfriados (8).
“Há outro problema: a pessoa tem um sentimento de indulgência em relação a outros hábitos, entendendo que, ao consumir o suplemento, ela já está sendo saudável”, diz Mauro Proença, nutricionista e colaborador da revista Questão de Ciência. Se você acredita que vitaminas, por si sós, são fontes de saúde, você fica mais propenso a pular a academia ou se descuidar na dieta.
A verdade é que a suplementação só faz diferença para quem realmente não obtém um certo nutriente de sua dieta – como é frequente com a vitamina B12 em veganos – ou tem alguma deficiência devidamente diagnosticada por um médico. Caso contrário, é dinheiro jogado fora. Nossas vitaminas devem vir dos alimentos: verduras e frutas são cheias delas.
Outra balela é a dos superalimentos – um termo que não tem definição oficial por agências reguladoras nem é empregado na pesquisa científica, e está proibido desde 2007 na publicidade da União Europeia. Ele engloba comidas com supostos benefícios extraordinários para a saúde e uma grande densidade de nutrientes. Alguns exemplos famosos são as romãs, as goji berries, as sementes de chia e o mirtilo, ou blueberry. (Muitas delas custam caro no Brasil, dando a impressão infeliz de que é preciso gastar muito para ser saudável.)
Não há nada de errado com esse cardápio, claro – frutas e sementes são sempre uma boa –, mas a verdade é que é difícil encontrar e comprovar uma relação de causa e efeito sólida entre um alimento e um certo benefício à saúde. Ainda que centenas de voluntários de um estudo topassem passar anos comendo mirtilo ou não para comparar, cada um deles ainda terá uma genética, um histórico médico e uma rotina diferentes. Como considerar todas essas variáveis e isolar a responsabilidade do blueberry?
No artigo “O desafio de reformar a pesquisa epidemiológica nutricional” (9), o médico John Ioannidis, da Universidade de Stanford, cita algumas conclusões absurdas que já surgiram em estudos nutricionais: comer doze avelãs por dia aumenta a expectativa de vida em doze anos; beber três xícaras de café diariamente também estende a vida em doze anos; e uma laranja por dia lhe dá cinco anos de vida. Se fosse verdade, você garantiria 29 anos a mais com apenas três alimentos.
É comum que um alimento específico apresente benefícios in vitro e em cobaias animais, mas esses resultados são pouco reproduzíveis em uma dieta real. Quando envolvem voluntários, as pesquisas costumam ser observacionais, baseadas em questionários sobre a alimentação dos participantes. Essa abordagem abre margem para esquecimento (você lembra o que comeu anteontem?) e enviesa os participantes em relação a certos alimentos.
Outro problema é que os resultados frequentemente são apresentados em jornais como se houvesse uma relação de causa e consequência clara – e raramente há. Não sabemos se tal pessoa viveu mais por causa da laranja ou se a maior expectativa de vida é resultado de um conjunto de hábitos saudáveis, o que inclui a laranja.
“Com mais pesquisas envolvendo grandes quantidades de dados, quase todas as variáveis nutricionais serão associadas a quase todos os resultados”, escreve Ioannidis.
Em suma: não dá para fazer um estudo em que os participantes só comem abacate durante um ano para avaliar os benefícios específicos dessa fruta. Por outro lado, não é preciso fazer isso para saber que ele é uma boa fonte de gordura. Cada comida merece sua parcela de reconhecimento e um espacinho no prato.
Isso vale até para as comidas tachadas de proibidas, como os supostos alimentos inflamatórios – uma lista descabida que vilaniza carne vermelha, açúcar, leite etc. Esse é outro caso de estudos com células in vitro ou em animais que ganharam as manchetes de maneira distorcida .
Grosso modo, existem dois tipos de inflamação. A mais comum é aguda, que nos protege contra vírus, bactérias e outros antígenos. O sistema imunológico interrompe o ataque assim que a ameaça é controlada. Mas existem inflamações crônicas, que danificam nossos órgãos e tecidos em longo prazo. Elas ocorrem quando a ameaça persiste – uma doença difícil de curar, a exposição constante a uma substância como amianto –, ou quando há um bug e o corpo passa a atacar a si próprio, que são as doenças autoimunes.
Uma possível causa de inflamação crônica é o acúmulo de gordura, que forma placas nos vasos sanguíneos. O corpo percebe que há algo de errado ali e aciona as células de defesa, que acabam entrando em um estado constante de alerta . Se você come alimentos com gordura animal e açúcar em excesso, naturalmente, as chances de acumular tecido adiposo aumentam.
Isso é muito diferente de dizer que algum alimento, ingerido uma única vez, desencadeia uma inflamação crônica – com exceção, é claro, de pessoas celíacas, com alergias ou alguma intolerância. “Se a gente for analisar, a própria lógica por trás disso não faz muito sentido: se eu como um chocolate, que é rico em açúcar e gordura, e em seguida como cúrcuma, que é anti-inflamatório, qual deles ganha?”, diz Proença.
Atentar-se à quantidade e frequência de consumo é mais importante do que tratar os alimentos como heróis ou vilões. Isso é o que alguns pesquisadores chamam de nutricionismo. “É uma visão reducionista. Em estudos […], você não encontra um alimento só associado a um poder milagroso. Isso não existe na nutrição”, diz Sophie Deram, nutricionista franco-brasileira. “Quando isso ocorre, geralmente é para te vender alguma coisa.”
Não é incomum ver ciência e marketing se misturando na nutrição. Isso é tão verdade que a bióloga e nutricionista Marion Nestle (que nada tem a ver com a fabricante do Ninho) mantém um blog em que expõe estudos financiados pela indústria alimentícia – com mais de 250 posts. As conclusões das pesquisas vão desde “amêndoa diminui rugas” (financiado por uma marca americana de amêndoas) até “queijo previne demência” (quem diria, com apoio de uma empresa de laticínios japonesa).
Isso vale até para as metas de saúde que fazem parte do imaginário popular. A ideia de que precisamos andar 10 mil passos diariamente, por exemplo, foi uma estratégia de marketing criada pela empresa Yamax, que lançou o primeiro contador de passos comercial em 1965.
O incentivo a caminhar mais e incluir certos alimentos na rotina é bem-vindo, mas essas não precisam ser regras escritas em pedra. Se você não gosta de ficar na esteira, procure um outro exercício que seja prazeroso. Odiar suco detox não te torna menos saudável – tampouco comer chocolate às vezes. Além de não condizer com evidências científicas de qualidade, o nutricionismo pode estragar nossa relação com o corpo e a comida.
Mente sã, corpo são
Antes de formular as três regrinhas que abrem este texto, Pollan publicou o best-seller O dilema do onívoro, em que investiga a cadeia produtiva da indústria alimentícia e dá detalhes sobre ingredientes do dia a dia.
Após a publicação, o jornalista descobriu que algumas pessoas estavam com medo de ler o livro. O motivo? “Cada vez que eu viro a página, tem algo que eu não posso mais comer”, diziam os leitores . “Tenho medo de que, ao chegar no final do livro, eu esteja passando fome.”
O fato é que ter informações demais sobre comida pode nos deixar com ansiedade. Talvez você tenha essa sensação ao ler notícias sobre um novo estudo nutricional ou ouvir as dicas de emagrecimento de algum influencer.
Em casos extremos, pensar demais no que se come pode ser gatilho de transtornos alimentares ou atrapalhar o tratamento deles. “Isso gera uma culpa enorme […] Na internet as informações são apenas recortes, e não algo aprofundado. As pessoas estão se tornando experts em como o corpo digere cada alimento, e não é nada disso.”
A fala é de Thaís Ricci, psicóloga especializada em tratamento de transtornos alimentares. No início da carreira, ela costumava atender adultos. Depois, surgiram adolescentes de 15 e 16 anos. Agora, Ricci tem pacientes de 11 e 12 anos. “Há relatos sofridos de pacientes minhas que, com sete anos de idade, já pensavam em perder peso”, diz ela.
A exposição a padrões de beleza irreais é tão antiga quanto a existência de meios de comunicação de massa, mas nunca foi tão frequente quanto hoje: segundo levantamento de 2023, os brasileiros passam mais de nove horas por dia no celular . Em sua rotina no Ambulatório de Transtornos Alimentares da USP, Ricci vê uma piora em casos de imagem corporal distorcida relacionada ao uso de redes sociais. O mesmo é constatado por inúmeros estudos, principalmente em mulheres (14).
Com a exposição excessiva a barrigas muito, muito chapadas – e a dietas absurdas que supostamente permitiriam alcançá-las –, o saudável começa a se confundir com a doença. “O peso saudável não é necessariamente o peso dos sonhos”, diz Deram. “O corpo tem um equilíbrio de peso, mas as pessoas não estão satisfeitas com ele. E aí elas buscam emagrecimento achando que vão ganhar saúde.”
No desespero para perder peso rápido, as pessoas aderem a uma alimentação restritiva radical que é insustentável a longo prazo e tira o prazer em comer, que é uma parte fundamental da vida pessoal e social. Correr atrás de dietas da moda e métodos da internet sem orientação de um bom nutricionista ou médico dificilmente será algo saudável.
Mas, então, o que é?
De volta ao básico
Milênios de seleção natural, corantes, aromatizantes e rótulos da indústria alimentícia, pesquisas científicas malfeitas e mal-explicadas, promessas de emagrecimento rápido por métodos estapafúrdios e as pressões estéticas das redes sociais são todos obstáculos para quem quer ter uma alimentação saudável e não sabe por onde começar.
O primeiro passo é não ser enganado nos supermercados: as prateleiras estão cheias de produtos ultraprocessados que se vendem como saudáveis – mas têm os mesmos problemas dos outros. “Em 90% dos alimentos a gente não precisa ler o rótulo para saber que eles não são ultraprocessados. Macarrão, feijão, carnes frescas do açougue, verduras – nada disso é processado”, diz Maria Laura Louzada.
“A coisa complica numa parte específica de produtos, como panificados, iogurtes e bolachas. Nesse caso, a grande dica é olhar a lista de ingredientes da embalagem. Os dois sinais de alerta são a presença de aditivos cosméticos (edulcorantes, aromatizantes, texturizantes etc.) e de substâncias com nomes esquisitos, que não usamos para cozinhar em casa (açúcar invertido, isolado proteico, entre outros). Esses são os maiores indicadores de alimentos ultraprocessados.” Além de terem poucos nutrientes, eles dificilmente te deixarão de barriga cheia.
Além disso, tenha senso crítico quando encontrar uma nova informação nutricional. Se ela atribui resultados extraordinários a apenas um alimento ou comportamento, desconfie – provavelmente é bobagem. O mesmo vale para dietas que prometem mexer com o pH do sangue, alterar o DNA ou qualquer absurdo do tipo.
“A primeira coisa que eu procuro fazer é ver se aquela informação é condizente com o que a gente sabe sobre o assunto até agora”, diz Mauro Proença. Se de repente surge um influencer falando que sua dieta deve ser baseada principalmente em gordura animal, confira outras evidências, fale com um nutricionista e, é claro, use o bom senso: em que lua de Júpiter seria uma boa trocar salada por pele de frango?
Assim como não há alimento ou método milagroso, dificilmente um único estudo é suficiente para justificar uma mudança drástica na dieta. Verifique se resultados semelhantes são encontrados em pesquisas que utilizam metodologias diferentes – por exemplo, um estudo que aplica um questionário a uma grande população, uma pesquisa em laboratório com cobaias animais e, principalmente, estudos clínicos controlados com centenas de indivíduos, que são o padrão-ouro de qualidade.
Todo o objetivo deste texto, porém, é justamente explicar que você não precisa mergulhar em estudos para ser saudável. Na dúvida, volte ao primeiro parágrafo. “É só pensar na comida de vó. É arroz, feijão, carne, verduras e legumes. Além disso, encontre uma atividade física que você goste e pratique duas ou três vezes por semana”, diz Thaís Ricci. Essas recomendações óbvias sempre darão certo.
Um passo importante nessa direção foi a mudança da cesta básica, por meio de um decreto assinado em março deste ano. A nova lista de itens exclui ultraprocessados, como bolachas e achocolatados, e dá espaço a mais alimentos in natura, como leguminosas, frutas, verduras e raízes. Comidas que fazem parte da cesta têm redução de impostos, o que deve facilitar o acesso à alimentação saudável.
A nutricionista Sophie Deram defende que não existe o “comer perfeito”. Não somos algoritmos programados para ingerir nutrientes sem se preocupar com o sabor do alimento. Cada pessoa tem suas preferências alimentares, e uma boa dieta deve levar isso em conta para se sustentar em longo prazo.
Afinal, a comida não é só uma junção de proteínas, carboidratos e lipídios. Ela também é cultura e memória afetiva. Isso inclui comer brigadeiro em um aniversário ou amassar um hambúrguer com amigos. Desde que aprecie com moderação, não é preciso viver o luto de nunca mais comer algo que você ama. Nem preciso, nem recomendável.
“Claro que o que você come é importante – mas como e por que você come também é”, diz Deram. “O prazer em comer não é opcional. Ele é necessário para manter a saúde física e mental.” Medo, culpa e estresse à mesa não fazem parte de uma vida saudável.
Fontes: (1) Artigo A functional ABCA1 gene variant is associated with low HDL-cholesterol levels and shows evidence of positive selection in Native Americans; (2) Artigo ”Consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil: distribuição e evolução temporal 2008–2018”; (3) Artigo Ultra-Processed Diets Cause Excess Calorie Intake and Weight Gain: An Inpatient Randomized Controlled Trial of Ad Libitum Food Intake; (4) Vigilância de Fatores de Risco de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico, do Ministério da Saúde; (5) Artigo Antioxidant supplements for prevention of mortality in healthy participants and patients with various diseases; (6) Artigo Association between β-carotene supplementation and risk of cancer: a meta-analysis of randomized controlled trials; (7) Artigo Ascorbic Acid Supplements and Kidney Stone Incidence Among Men: A Prospective Study; (8) Artigo Vitamin C for preventing and treating the common cold; (9) Artigo The Challenge of Reforming Nutritional Epidemiologic Research; (10) Artigo Development and Validation of an Empirical Dietary Inflammatory Index; (11) Artigo Apolipoprotein C3 induces inflammation and organ damage by alternative inflammasome activation; (12) Palestra In defense of food with Michael Pollan, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara; (13) Digital 2023: Global Overview Report; (14) Artigo TikTok use and body dissatisfaction: Examining direct, indirect, and moderated relations
Referências: Livro A Grain of Salt: The Science and Pseudoscience of What We Eat; Instituto Questão de Ciência.