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Seis vidas por um tio

Alpinistas brasileiros encaram - e vencem - a Trango Tower, a maior parede rochosa do mundo. Aqui a sua história de persistência, sustos e êxito.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h14 - Publicado em 30 set 2001, 22h00

Waldemar Niclevicz

A esperança de receber um dinheiro a mais fez os 86 carregadores se amontoarem em cima das pedras, após uma desgastante caminhada de 50 quilômetros feita em quatro dias até o ponto em que montaríamos o acampamento, a 4 000 metros de altitude. Estávamos ao lado de um pequeno lago. O vento forte soprava em nossos olhos um pouco da areia que circundava as águas, formando uma espécie de praia incrustada no sótão do mundo. O sol, que nos havia torrado durante toda a caminhada, com temperatura de escaldantes 44ºC, tinha sumido e todos procuravam em suas mochilas as japonas de pena de ganso para quebrar o frio. Aos carregadores baltis, os habitantes do Baltistão, a região onde estão as montanhas que enfrentaríamos, vestidos com roupas velhas e esfarrapadas, restava apenas apertarem-se uns contra os outros, evitando, com a troca de calor de seus corpos, que o vento os congelasse.

Contei rapidamente quantas rúpias ainda me restavam e dividi tudo por 86. Deu 240 rúpias para cada um deles, exatamente 4 dólares. Com a ajuda do sardar, como é chamado o chefe dos carregadores, meu inglês curitibano era traduzido para o urdu, a língua oficial do Paquistão. Assim, pude agradecer o esforço daqueles bravos homens, que haviam levado em suas costas 25 quilos cada um. Nossa carga era composta de mais de 2 toneladas de comida e equipamentos necessários à expedição. E lá foram os baltis, felizes com a recompensa, desaparecendo montanha abaixo atrás dos espessos flocos de neve que começavam a cair. A nós, que ficávamos, cabia brigar com o vento e montar logo as barracas antes que a tempestade se instalasse, a primeira de muitas outras que enfrentaríamos.

Estávamos no norte do Paquistão, no coração do Karakoram, a parte ocidental do Himalaia, considerada a cadeia de montanhas mais temível do mundo. Lá estão picos inóspitos como o K2 e a Trango Tower, a maior torre de granito do mundo, nosso objetivo ali. Era o quarto ano consecutivo que eu visitava aquelas montanhas. Estava tranqüilo. Primeiro, porque já havia vencido o K2, a “Montanha da Morte”. Depois, porque chefiava uma equipe formada pela elite do alpinismo brasileiro.

Nossa intenção era ousada. Apenas 72 alpinistas e 24 expedições haviam conseguido alcançar o topo da Trango Tower, que fica a 6 251 metros de altitude. E, segundo o Ministério do Turismo do Paquistão, nenhum latino-americano jamais realizara a façanha. Isso nos deixou ainda mais animados a superar aquele paredão vertical de 1 500 metros, simplesmente o maior e mais perigoso do planeta. Imagine uma laje pedregosa equivalente a cinco Pães de Açúcar empilhados um em cima do outro. Isso é a Trango Tower.

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Escalar um big wall – como os paredões são chamados pelos alpinistas – é complicado. É preciso dominar técnicas específicas para ficar pendurado sobre o vazio durante vários dias seguidos. O grande problema é transportar todo o equipamento lá para cima. Não apenas o material de escalada, mas também comida, água, combustível, saco de dormir, panela, enfim, tudo. Fazemos isso utilizando enormes sacolas, as hall bags, que pesavam até 60 quilos cada uma. Para não sermos surpreendidos na Trango Tower, fizemos várias escaladas de treinamento no Brasil, em paredes no Paraná, no morro do Corcovado, Rio de Janeiro, e no Parque Nacional do Yosemite, o maior centro de escaladas de big wall do mundo, que fica perto de San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos.

Na noite daquele primeiro dia, enquanto a chuva tilintava sobre o náilon da minha barraca no acampamento, no sopé da Trango Tower, eu escutava ao longe o estrondo de uma ou outra avalanche, sempre acompanhado pelo sibilar de pedras caindo. Me virava dentro do saco de dormir, suspirava aliviado por não estar lá fora, naquele momento, enfrentando a montanha. E rezava para que, quando estivéssemos lá, a natureza não fosse cruel conosco. Aquela chuva que banhava as barracas no acampamento, a 4 000 metros de altitude, transformava-se em neve acima dos 5 000 metros, congelando as encostas verticais da Trango Tower e produzindo o werglass, um tipo de gelo transparente, escorregadio e superduro.

Os primeiros dias de escalada passaram rápido, sempre com aquelas nuvens escuras sobre nossas cabeças. Foram 11 dias consecutivos de tempestades, tempo mais que suficiente para deixar a moral da equipe abalada. Ainda mais porque metade dos alpinistas sofria com os fortes sintomas da grande altitude, conhecidos como “mal da montanha”: dor de cabeça, falta de apetite, ânsia de vômito, insônia. E iam sendo derrubados um a um.

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No 12º dia nossas preces finalmente foram atendidas pelos deuses das montanhas. A pressão atmosférica começou a subir, sinal de que o tempo iria melhorar. Então, tivemos seis dias de bom tempo, quando fizemos uma verdadeira corrida rumo ao cume. Dávamos o máximo de cordadas – como os alpinistas chamam cada trecho da escalada – por dia que podíamos. Sabíamos que o céu azul que emoldurava a Trango Tower podia voltar a ser açoitado por tempestades a qualquer momento.

Com a equipe reduzida pela metade, em razão dos efeitos do ar rarefeito, a escalada se tornou muito difícil. Apenas eu e outros dois alpinistas ainda reuníamos condições físicas para continuar subindo. Os outros ajudavam transportando equipamentos até a base da parede. O sol batia cedo na face leste da Trango Tower, onde estávamos. Às 5 horas já tínhamos despertado e partido para a escalada. Depois das 14 horas, no entanto, uma sombra gelada nos envolvia e congelava as mãos e os pés. Nunca senti tanto frio em minha vida. Tremíamos até os ossos. Mais: até a alma. O maior perigo de escalar a Trango Tower são as pedras que despencam lá de cima sem aviso prévio. De quando em vez, lascas de rocha passavam ao nosso lado como meteoritos. Os pedaços de gelo que caíam também representavam grande perigo. O único jeito de escapar desses mísseis arremessados pela torre é ficar na posição vertical, oferecendo o capacete como escudo, e abraçar o próprio corpo para diminuir a área de impacto dos projéteis.

Às vezes, demorávamos mais de três horas para vencer 30 ou 40 metros de escalada, pois as fendas e as fissuras da pedra, onde entalávamos mãos e pés para progredir, estavam cheias de um gelo tão duro quanto a própria rocha. Então, era preciso desfechar violentos golpes com o piolet, a famosa picareta dos alpinistas, para conseguirmos limpar o gelo das fendas, fixar o equipamento de proteção e lentamente nos arrastarmos alguns centímetros rocha acima. E aí repetir a operação mais uma vez. A neve acumulada nos platôs de rocha e o gelo que sela as fendas atrapalhavam tanto que ficávamos muito felizes nos trechos em negativo – encontramos vários deles mais perto do cume –, que é quando o alpinista fica literalmente pendurado na rocha, sem nada embaixo dele que não a força da gravidade.

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Quando chegávamos em um lugar aparentemente seguro, batíamos dois ou três grampos – pinças que são cravadas na rocha e que ajudam a prender o alpinista a ela – e içávamos pelas cordas, com a ajuda de polias, todo o material necessário para o pernoite na parede. Esses períodos de suposto descanso eram terríveis. Dormíamos espremidos, os três, dentro de apenas um “porta-ledge”, uma espécie de maca suspensa que fica bailando sobre o vazio enquanto tentávamos relaxar. O único conforto era a visão panorâmica – ímpar, formidável, indescritível.

A sublime contemplação, no entanto, ia por água abaixo – ou melhor, montanha abaixo – quando era preciso ir ao banheiro. Primeiro porque estávamos enrolados por cordas até o pescoço e abaixar as calças nos deixava bastante vulneráveis a possíveis quedas. Depois porque tínhamos a difícil missão de acertar a boca de um pacote de papel biodegradável que era imediatamente fechado e depositado com delicadeza – nessas horas toda delicadeza é pouca – no fundo de um reforçado tubo de plástico duro que chamávamos de shit tube (uma expressão um pouco mais rude do que “tubo de cocô”).

Quando, depois de seis dias de escalada, finalmente chegamos ao topo da Trango Tower – e como éramos os primeiros latino-americanos a fazê-lo –, alguém da equipe deu a idéia de vender aqueles pacotes congelados para os turistas. Afinal, eram relíquias de uma conquista. E relíquias personalizadas! Por uma questão de modéstia e contrição, no entanto, pensamos e achamos mais elegante simplesmente depositar tudo em um buraco na base da parede.

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A imagem que fica desta aventura, sem nenhuma patriotada, é a bandeira do Brasil fincada no alto da Trango Tower. Eram 16h50 do dia 30 de junho de 2000 quando pusemos o pendão brasileiro no cume da torre. Foi muito emocionante. Havíamos vencido um dos maiores desafios do alpinismo mundial. Ao contemplar a paisagem lá de cima, eu não via apenas um belíssimo mar de montanhas e névoa nos rodeando, mas sim a recompensa de três anos de planejamento e de seis meses de treinamento intensivo. Trabalho duro, paciente e obstinado. E o objetivo alcançado. Há poucas sensações tão boas na vida.

Agora nos restava a descida. O que é uma outra história…

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