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Sílvia Brandalise, uma guerreira contra o câncer

Ela é uma das brasileiras mais respeitadas no Exterior, na área médica. Com garra, criou um hospital para crianças cancerosas, cujos resultados estão entre os melhores do mundo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h30 - Publicado em 28 fev 1994, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Era o ano de 1976. A chefe da enfermaria infantil do hospital da Universidade de Campinas, no interior de São Paulo, orgulhava-se de conhecer o rosto, as manhas, os detalhes da saúde de cada um dos pacientes daqueles cinqüenta leitos. Ou quase isso. Porque, em um deles, deitava-se um garoto de seus 5 anos, que a doutora Sílvia preferia ignorar. Desconhecia até o seu nome, André. O curioso é que essa médica brigava feio com colegas de outras áreas, que arriscassem uma intromissão no seu serviço: acreditava que uma criança devia ser atendida sempre por um pediatra, o único profissional capaz de entender as peculiaridades de seu organismo. A regra só tinha uma exceção, que era o câncer. Este mal, ela deixava sem titubear para os oncologistas, médicos que tratam dos tumores. Queria distância. Por isso, passava longe de um dos leitos de sua enfermaria. André Zavarchenko, seu ocupante, era leucêmico. Ou seja, por causa de células cancerosas na medula óssea, tinha não mais que 5% de chance de sobreviver. Isso, naqueles tempos.

Dali até maio do ano passado muita coisa mudou. Foi quando o jornalista James Woods, da conhecida revista americana Newsweek se aproximou da senhora loira de óculos, 50 anos, cabelos bem penteados e maquilagem discreta, para disparar a pergunta em tom espantado: “You said 70%, doctor Brandalise?”. Em bom português, queria saber se ouvira mesmo ela dizer 70%. “Disse”, confirmou a médica em um inglês impecável. A proporção se refere às crianças leucêmicas que conseguem se curar no hospital que criou, sozinha, na cidade de Campinas. Ela, justo ela, Sílvia Brandalise, que um dia teve horror de câncer.

O índice de 70% de cura é, na verdade, semelhante ao de outros poucos, mas bons, serviços de câncer infantil no Brasil. Para surpresa do jornalista americano, isso bate com a estatística dos Estados Unidos, país com muitos mais recursos para tratar de seus doentes. O que mais chamava a atenção sobre a médica brasileira, porém, era o fato de ter construído um hospital considerado modelo no mundo inteiro, desde a concepção arquitetônica aos métodos de tratamento. Por isso e por suas pesquisas sobre o câncer, estava bem cotada para receber o título de Mulher do Ano das Ciências, dado pela publicação americana Who’s Who (Quem é Quem), que todo ano aponta o ranking de pessoas dos mais diversos setores, após uma enorme votação.

No Brasil, muitos desconhecem a história de Sílvia Brandalise. “Ela é, sem dúvida, uma das especialistas em câncer infantil mais conhecidas no Exterior, considerada a melhor da América Latina”, aponta o pediatra José Martins Filho, vice-reitor da Universidade de Campinas (Unicamp). A propósito, a pediatra ganhou mesmo o título de Mulher do Ano de 1993. Mas não sabe onde o deixou. “Guardo essas coisas no fundo de alguma gaveta e, depois, fico maluca de tanto procurar”, confessa. Na parede do consultório, instalado em uma salinha do Centro Domingos Boldrini — este é o nome de seu hospital —, Sílvia só exi-be dois “prêmios”, segundo ela, os únicos realmente importantes. Um deles, a redação emoldurada de Marcos, 16 anos, o caçula de seus quatro filhos, em que o rapaz descreve o orgulho pela mãe. “Olho para ela, sempre que o cansaço me ameaça, no final de um dia cheio”, diz ela. “Tia” Sílvia, como é chamada, não pára atrás de uma mesa. Está das 7 horas da manhã às 7 da noite, ao lado dos pacientes. Parte dessa dedicação é explicada pelo segundo dito prêmio na parede: a carta do médico alemão Albert Schweitzer, escrita em 1958, no verso de sua fotografia.

Sílvia tinha 15 anos, quando a recebeu. Qualquer garota da sua idade, nos anos 50, escrevia para os astros de Hollywood. A adolescente paulistana, no entanto, suspirava diante da figura de Schweitzer, um senhor de mais de 80 anos, que conhecera através de um artigo de jornal. Ele havia ganho o Nobel da Paz em 1952, por lutar pela saúde dos pobres africanos, na República do Gabão. “Mandei-lhe uma carta por intermédio do consulado. Não lembro das minhas palavras, mas, pelo jeito da resposta, deve ter sido uma declaração de amor”, fala rindo. O fato é que Sílvia sempre pensou em ser médica, desde criancinha. E foi a ad-miração por Schweitzer que lhe ensinou o sentido da Medicina: “A causa da minha carreira deveria ser social, jamais pessoal”, diz ela, que nunca participou de movimentos políticos. Seu tempo foi todo consumido com os estudos. Aboliu as férias, desde que entrou na Escola Paulista de Medicina, em 1962, até a formatura. Quando não estava na sala de aula, podia ser encontrada na enfermaria, aprendendo a examinar olhos ou a aplicar injeções na veia.

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“Naquela época, saía da cama para conseguir bater um papinho com ela, tarde da noite”, recorda dona Maria de Lourdes Vieira Violante, a mãe. Dela, a pediatra herdou a mania de querer tudo do bom e do melhor. “Se me diziam que o melhor ginásio de São Paulo era o Roosevelt do Parque Dom Pedro, era ali que minhas três filhas iriam estudar”, diz a determinadíssima senhora. De seu lado, Sílvia, a filha do meio, costuma pregar o seguinte: “Acho fundamental trabalhar com os mais modernos equipamentos. Primeiro eu os compro, depois vejo como irei pagar.” A energia inesgotável para o trabalho foi também lição paterna. Seu Antônio, imigrante português, dono de bar como muitos bons lusitanos, fez das tripas coração para educar as suas meninas. Rígido, nunca elogiou as notas altas de Sílvia — segundo sua cartilha, ao se sair bem na escola, a garota não fazia mais do que a obrigação. O casal Violante se mudou da capital paulista para Campinas, há dezesseis anos, quando Sílvia passou a tratar de câncer. “Viemos ajudar a criação dos netos”, explica dona Maria de Lourdes. Os filhos de Sílvia são André, 23 anos, estudante de Medicina; Fernando, 21 anos, aluno de Psicologia; Paola, 18 anos, que pretende cursar Comércio Exterior; e Marcos, autor da redação fixada na parede.

A pediatra conheceu o marido, o cirurgião Nélson Ary Brandalise, quando era sextanista de Medicina e ele, residente, vindo de Uberaba, Minas Gerais. O namoro começou por iniciativa dela: “Tímido, acabei seduzido”, ele reconhece. “Quando Sílvia mete uma idéia na cabeça, sai da frente”, é sua descrição da mulher. “Então, ajudo na medida que não atrapalho.” O doutor Brandalise já se acostumou, por exemplo, a chegar em casa, após uma longa jornada de cirurgias, e não encontrar a mulher. E muito menos o jantar pronto. “Vou para a cozinha e dou um jeito”, conforma-se. A pediatra foi parar em Campinas, recém-casada, por causa do convite que o cirurgião recebeu para ser um dos fundadores da Unicamp. Custou a se acostumar. Em 1969, aquela que hoje é uma das universidades mais modernas do país se resumia a galpões no meio do mato. Seus médicos atendiam na Santa Casa de Misericórdia da cidade. Ali, Sílvia tinha de fazer testes de sangue, sob uma escada.

Nesse espaço precário, ela atendia com tanta eficiência, que, no ano seguinte, em 1970, a Unicamp lhe cedeu um velho casarão, recém-desocupado por freiras, para montar um laboratório. “Era um local para atender crianças com problemas de coagulação sangüínea, como as hemofílicas”, conta ela. À tarde chefiava a enfermaria e, ainda, lecionava. “A partir daí, comecei a sonhar com um hospital, mas jamais para câncer. A palavra me dava arrepios.” Por isso, em 1976, ela recusou examinar o paciente André Zavarchenko, o garotinho com leucemia. “Se não for vê-lo agora, ele vai morrer”, apelou uma de suas residentes, Maria Aparecida Brenelli, hoje com 43 anos, uma das responsáveis pelo berçário do hospital da Unicamp. “A professora disse que não entendia nada daquela doença. Desesperada, caí no choro”, lembra-se Aparecida. Sílvia Brandalise não resiste às lágrimas alheias. Foi ver o menino.

“Uma série de procedimentos adotados pelo oncologista serviam muito bem para um adulto, mas estavam errados, do ponto de vista pediátrico”, rememora Sílvia. “Por isso, quando fiz pequenas correções, a saúde do André melhorou.” A família ficou tão animada com a mudança de estado do menino, que pediu a indicação de um especialista no Exterior. A pediatra recomendou-lhe o brasileiro, radicado nos Estados Unidos, João Rhomes Amin Aor. Médico do Hospital de Memphis, ele é uma autoridade mundial em leucemias. Só que, nas vésperas do embarque, a mãe do garoto encostou Sílvia contra a parede — só viajaria se ela a acompanhasse. Relutante, a médica pediu licença no trabalho e partiu com a família Zavarchenko. O paciente, infelizmente, acabou falecendo. No entanto, o período em que Sílvia acompanhou o tratamento aplicado pelo professor Rhomes serviu de aprendizado. O mestre lhe fez o primeiro apelo, para que trouxesse ao Brasil as mais avançadas técnicas de tratamento da leucemia. “Minha reação foi um choro histérico”, fala a pediatra. “Só queria voltar para casa, minhas crianças, e esquecer tudo aquilo.”

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Não deu para esquecer. Um ano mais tarde, o filho de uma amiga apresentou sinais de leucemia. Era outro André, este de sobrenome Macluf. Sílvia chegou a encaminhá-lo para um professor em São Paulo. Mas acompanhava o seu caso de longe. Assim, desconfiou que algumas medidas tomadas pelo colegas estavam ultrapassadas. Ligou para Rhomes Aor, nos Estados Unidos, para confirmar a suspeita. Este, porém, lhe deu a maior bronca: “Ou você assume o caso ou fique totalmente de fora”, gritou no outro lado da linha. Ficaria de fora, decidiu no ato. Isto é, ficaria, se o menino não lhe fizesse uma visita e, aos prantos, pedisse que a “tia” cuidasse de sua saúde. Como se sabe, Sílvia Brandalise se desmancha diante de um choro. Em menos de 24 horas, desligou-se da função de chefe da enfermaria, para tratar do garoto — hoje um saudável estudante de Odontologia. Na mesma semana, alugou uma casa, com dinheiro do próprio bolso. “Passei a estudar os tratamentos de câncer a todo o vapor”, ela diz. Nascia o embrião do Centro Domingos Boldrini, nome que homenageia um pediatra falecido, famoso na cidade.

No início, Sílvia fazia tudo sozinha: atendia telefones, preenchia fichas, dava consultas, aplicava sessões de quimioterapia para destruir tumores. Não havia móveis, fora uma maca. “Quando um pai perguntava como poderia me pagar, eu pedia um móvel usado ou uma caixa de seringas”, exemplifica. “Um deles me trouxe cadeiras de bar. Outro doou uma mesa, cuja madeira eu mesma tratei, porque estava cheia de cupins. Tenho essa mesa até hoje. Aliás, outro pai de paciente, que era marceneiro, lhe fez um belo revestimento de courvim.” Nesse esquema, cada um dando o que podia, o hospital foi crescendo e mudando de endereço para espaços maiores. Hoje, ocupa um moderno prédio de 1 300 metros quadrados, doado pela Fundação Bosh. Por ele, já passaram mais de 7 000 pacientes. São oitocentos casos novos por ano, cerca de 30% deles de vítimas de câncer — os outros são pacientes de doenças hematológicas, como a hemofilia. Mais de 90% dos cancerosos não pagam um tostão pelo tratamento.

O hospital sobrevive com a ajuda única e exclusiva da sociedade, que organiza festas e campanhas. As mães de pacientes contribuem fazendo objetos ou reformando roupas, vendidas na loja batizada Instantes. Com esse dinheiro, Sílvia segue seu projeto de expansão. Tem, na ponta da língua, uma agenda repleta. Neste semestre, inaugura outros 1 500 metros quadrados de hospital. No início de 1995, abre as portas de outra ala, do mesmo tamanho. “Mais uma vez, vamos mobiliar tudo, de doação em doação”, explica. Para o ano de 1996, quer construir uma praça com chafariz para os pacientes: “Vai alegrar mais o ambiente”, justifica. Nos dois anos seguintes, deve erguer prédios para tratar, por exemplo, os casos de ane-mias graves e abrigar médicos residentes. Onde? No terreno vizinho, do qual está fazendo usucapião. Até 2003, ela equipará essas novas instalações. Daí, garante, sossega. Irá trabalhar como voluntária e, quem sabe, ter tempo para aprontar, com o capricho merecido, o jantar do doutor Brandalise.

Para saber mais:

Um gene contra o câncer

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(SUPER número 7, ano 3)

Boas novas sobre o câncer

(SUPER número 7, ano 7)

A vida depois do câncer

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(SUPER número 1, ano 8)

A trajetória de um hospital

Durante um jantar na casa de um amigo da família, Sílvia Brandalise conheceu o executivo alemão Franz Reimer,então presidente da indústria multinacional de equipamentos eletrônicos Bosh. Ela lhe contou como seria o hospital de seus sonhos. Foi a semente de um acordo entre a pediatra e a Fundação Bosh. Esta construiu um terço do Centro Boldrini, obra que custou cerca de 1,5 milhão de dólares. O projeto, elogiadíssimo no Exterior, saiu da cabeça da própria Sílvia.

Os dez quartos para internação — neste semestre, serão oitenta — circundam a enfermaria central, com paredes de vidro. Assim, é sempre possível ver o paciente, que conta com uma TV e, o mais importante, um intercomunicador para falar com a mãe, instalada no quarto vizinho, também com parede de vidro. Explica-se: os pacientes internados são os que ficaram imunodeprimidos por causa do tratamento para eliminar o tumor. Precisam ficar isolados para evitar o risco de infecções. Quando a criança chama pela mãe, ela pode ir à enfermaria central, desinfectar as mãos, colocar máscara no rosto e entrar no quarto do filho. Outros visitantes de qualquer idade são sempre bem-vindos, todo dia, até às 10 horas da noite. Ficam no quarto vizinho e conversam com o doente pelo intercomunicador. Para os doentes não internados, Sílvia criou hotéis, nas duas últimas casas que sediaram o hospital, no passado.

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