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A real sobre o elo entre religião e violência

De fato: disputas religiosas criam e turbinam conflitos armados, como as que vemos no Afeganistão. Mas a fé está longe de ser a principal causa das guerras ao longo da história.

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 18 set 2021, 13h33 - Publicado em 17 set 2021, 09h50

No mundo muçulmano, não existe nenhuma cerimônia que possa ser comparada ao Hajj, a gigantesca peregrinação rumo à cidade santa de Meca, na Arábia Saudita. Os fiéis se juntam a procissões com mais de 2 milhões de pessoas, dão sete voltas em torno da Kaaba (o local mais sagrado da fé islâmica) e fazem vigílias. No final das festividades, os homens devem raspar a cabeça ou, ao menos, cortar o cabelo, enquanto as mulheres aparam as pontas.

Quem se deixa guiar apenas pelos estereótipos negativos a respeito da natureza do Islã talvez veja o Hajj como uma fábrica de radicais fundamentalistas, como o povo do Talibã. Só que não. Estudos de psicologia social mostram que o efeito da peregrinação é aumentar a tolerância dos fiéis em relação a muçulmanos de grupos étnicos e religiosos diferentes dos deles.

Estranhou esse dado? Calma, a coisa fica ainda mais complicada. A frequência com que os seguidores dessa fé fazem suas orações em casa tem correlação negativa com seu apoio ao terrorismo islâmico – ou seja, o sujeito que mais reza é o que menos apoia ações armadas em nome da religião. Por outro lado, um maior número de idas a mesquitas ao longo do ano está correlacionado com maior aprovação à violência de cunho religioso.

Esse tipo de contradição está longe de ser exclusividade do Islã. No dizer do psicólogo de origem libanesa Ara Norenzayan, da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), as religiões frequentemente influenciam a guerra e a paz como se fossem um sujeito de dupla personalidade, incendiário e bombeiro ao mesmo tempo. São tanto capazes de jogar gasolina num conflito que já está pegando fogo quanto de coordenar armistícios improváveis entre inimigos jurados. O diabo – ou Deus – está nos detalhes.

A verdade é que a fé religiosa teve um papel menor na deflagração dos conflitos armados ao longo da história. Norenzayan cita dois levantamentos sobre o tema em seu livro Big Gods. Um deles, abrangendo guerras que aconteceram ao longo dos últimos 1.800 anos, estima que apenas 10% delas tiveram um componente religioso como motivo da contenda. O outro, que abrange os últimos 3.500 anos, adotou um índice mais complexo. Ele atribuía notas numa escala de 0 a 5 para cada conflito – a “nota” mais baixa ia para as guerras sem nenhuma influência religiosa (digamos, a do Peloponeso, entre os gregos antigos, no século 5 a.C.), enquanto a pontuação mais alta era dada para as guerras nas quais a religião desempenhava um papel central (caso das Cruzadas). O veredicto: havia alguma influência religiosa em 40% das disputas armadas, mas raramente a briga entre fés foi a principal motivação.

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Houve influência religiosa em 40% das disputas armadas, mas raramente ela foi a principal motivação.

Uma maneira interessante de interpretar esse conjunto de informações é recorrer ao conceito de “Deuses Grandes”, que empresta seu nome ao livro de Norenzayan. O pesquisador usa uma grande massa de dados antropológicos e experimentais para argumentar que o tipo de divindade que conhecemos bem – tanto o Deus único de judeus, cristãos e muçulmanos quanto as famílias de vários deuses em mitologias como a grega e a egípcia – é produto de um tipo específico de sociedade complexa, que apareceu há relativamente pouco tempo na nossa espécie.

Esses Deuses Grandes – por oposição aos “deuses pequenos”, com “d” minúsculo, dos bandos de caçadores-coletores – seriam entidades capazes de monitorar o comportamento humano e legislar sobre o cosmos, punindo malfeitores e recompensando os bons. Um dos motivos para o surgimento da crença neles teria sido justamente a necessidade de contar com guardiões sobrenaturais que garantissem o bom comportamento social. Isso porque, em sociedades complexas e com organização estatal, nas quais muitos membros da população não se conheciam mais pessoalmente nem tinham laços de parentesco com todo mundo, era preciso achar novas maneiras de fortalecer a cooperação e a confiança.

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Os Deuses Grandes colaboram com esse processo não apenas porque, para os crentes atuam como policiais e juízes sobrenaturais, mas também porque criam poderosos fatores de identificação entre grupos diferentes. Os seguidores de determinada fé se transformam numa nova forma de família espiritual, que pode até suplantar os laços familiares de carne e osso. Num dos primeiros documentos do cristianismo nascente, a Epístola aos Gálatas, o apóstolo Paulo praticamente desenha as implicações desse processo ao afirmar: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”. Os rituais religiosos são instrumentos de construção contínua desse tipo de identidade comum: rezar e cantar juntos, no mesmo espaço, em dias e horários específicos, cria laços entre os fiéis.

Para religiões missionárias, como o cristianismo e o Islã, a humanidade inteira é potencialmente parte de um só grupo, uma só família. O grande problema é: para que esse potencial se concretize, é preciso que os não cristãos ou não muçulmanos se convertam.

Esse processo pode acontecer de forma pacífica, dependendo do contexto. Ao que tudo indica, foi assim que o islamismo se espalhou pela África Ocidental ao longo da Idade Média – famílias muçulmanas de mercadores ganharam reputação de confiabilidade nos negócios e prosperidade, atraindo cada vez mais africanos para a nova fé. A expansão pacífica também foi a regra durante os três primeiros séculos do cristianismo no Império Romano.

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Mas a dinâmica da conversão também recorre à força bruta, conforme descobriram os indígenas do Brasil e do resto do continente americano a partir de 1492. Nesses casos, ou nas guerras religiosas que deixaram a Europa em frangalhos a partir do século 16, a coesão social trazida por um Deus Grande se transforma numa arma poderosa para competir contra grupos rivais. Outros elementos, como a identidade nacional ou ideologias políticas, podem servir de catalisadores para esse tipo de processo, mas a ideia de que determinado Deus Grande é digno de uma soberania universal sobre todos os seres humanos pode virar justificativa para formas ímpares de violência.

Talvez a maior delas, no nosso tempo, esteja ligada aos homens-bomba, um estratagema sempre ligado à motivação religiosa. Acontece que ele foi criado e empregado originalmente pelo famoso grupo insurgente Tigres do Tâmil, no Sri Lanka. E os Tigres eram uma organização… secular. Ou seja, não religiosa. E sem ligação nenhuma com o Islã. Pois é. A humanidade é sempre mais complexa do que parece à primeira vista.

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Reinaldo José Lopes é jornalista e autor do recém-lançado Homo Ferox – As origens da violência humana e o que fazer para derrotá-la.

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