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Aborto: um caso de saúde pública

Acontece um aborto por minuto no Brasil, e 20% das mulheres fazem pelo menos um ao longo da vida. Em 78 países, as gestantes são livres para decidir se interrompem a gravidez. Mesmo assim, seguimos com uma legislação retrógrada. Entenda por que ela alimenta um problema de saúde pública.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 18 nov 2022, 11h52 - Publicado em 18 nov 2022, 11h20

Texto Maria Clara Rossini
Foto Daniel Ozana
Design Juliana Krauss
Edição Alexandre Versignassi

E“Esta revista pode te ajudar a fazer um aborto”. A frase foi estampada em letras garrafais na capa da New York Magazine, edição de maio de 2022. Era uma preparação para o que aconteceria dentro de pouco tempo. Um documento vazado da Suprema Corte americana indicava que, após cinco décadas, o aborto deixaria de ser legalizado nos EUA. Ou quase isso. Cairia a lei federal que concedia o direito à interrupção da gravidez em todo o território americano. Dali em diante, cada estado decidiria o que fazer. E a reportagem da New York mostrava quais eram os planos de cada um. 

Os 50 anos de legalização nacional do aborto nos EUA foram mérito do embate judicial travado entre Norma McCorvey, uma mãe de dois filhos que engravidou pela terceira vez e procurava abortar, e o promotor Henry Wade, que defendia a então lei antiaborto do estado do Texas. O caso chegou à Suprema Corte em 1973. O STF dos EUA, então, decidiu que proibir o acesso ao aborto feria os direitos das mulheres garantidos pela constituição. Norma usava o pseudônimo “Jane Roe”, então o processo ficou conhecido como “Roe versus Wade”.

Mas isso mudou em junho de 2022. A Suprema Corte revogou a decisão histórica, com a  justificativa de dar mais autonomia às unidades da federação. O aborto, então, tornou-se ilegal em 12 estados americanos – em 10 deles, inclusive em caso de estupro. A começar pelo conservador Texas, palco do Roe vs. Wade.

Em comparação a esses estados mais linha dura, o Brasil é até flexível. Estupro é um dos poucos casos em que é possível abortar legalmente no Brasil. O principal deles, aliás: 90% dos procedimentos legais realizados no país são decorrentes de violência sexual (1). No total, o Brasil fez 2 mil abortos legais em 2021 (2).

Mas essa é só uma fração das interrupções de gravidez que realmente ocorrem por aqui. Ao longo de 2021, o SUS realizou mais de 167 mil curetagens pós-abortamento e 185 mil aspirações manuais intrauterinas, procedimento conhecido como AMIU (3). Ambos podem servir para retirar restos embrionários que ficaram no útero após um abortamento incompleto.

Uma parte desses procedimentos foi feita após abortos espontâneos, claro. Mas outros, certamente, cuidaram de abortos induzidos. Não há uma estatística precisa, já que um dos pilares do atendimento médico é a confidencialidade do paciente: mesmo que a mulher conte que provocou o aborto, essa informação deve ficar entre ela e a equipe médica.

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Mas um levantamento realizado em 2016 chegou a um resultado que bate com a quantidade de intervenções feitas pelo SUS. Foi a Pesquisa Nacional do Aborto, feita pela Universidade de Brasília. Ele estima que 500 mil abortos sejam realizados no país a cada ano (um por minuto). Ou seja: só um em cada 270 abortos voluntários é feito dentro da lei. O estudo também diz que uma em cada cinco mulheres com mais de 40 anos já abortou no Brasil.

Metade do meio milhão de abortos por ano, de acordo com a pesquisa, resulta em hospitalização, por conta de complicações decorrentes. Ou seja: 250 mil leitos por ano (4) – e aí temos o número que se aproxima dos dados oficiais dos SUS. O Sistema Único de Saúde também aponta que 77 mulheres morrem por ano nos hospitais depois de terem passado por abortos (ainda que não especifique se eles foram espontâneos ou induzidos) (5).

Ou seja: se a lei fosse outra, poupariam-se vidas e vagas em hospitais. O fato é que mulheres geralmente abortam quando desejam fazê-lo – com ou sem lei, de forma segura ou não. Isso faz do aborto uma questão de saúde pública. Mesmo assim, a legislação sobre o tema segue estagnada no Brasil – e nada indica que esse cenário vá mudar tão cedo. A seguir, entenda por que o tema se tornou um tabu, quais são as discussões em torno da interrupção da gravidez e como funcionam as leis ao redor do mundo.

AA Bíblia só faz uma menção, distante, a aborto provocado, em Êxodo 21:22: “Se homens estiverem brigando e ferirem uma mulher grávida, e por causa disso ela perder a criança (…), aquele que feriu será obrigado a pagar o que o marido dela exigir. Mas, se a mulher for ferida gravemente, o castigo será vida por vida, olho por olho, dente por dente”. Anacronismos à parte, o texto bíblico coloca a vida da mulher como mais importante.

E o fato é que a igreja deixou o assunto de lado por boa parte de sua história. A interrupção da gravidez não era vista com bons olhos, muito menos incentivada. Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.), um dos primeiros pensadores da religião, classificava qualquer aborto como um “homicídio antecipado”. Mesmo assim, havia tolerância.

Isso mudou em 1869. A Revolução Francesa fez com que a igreja perdesse sua influência política e militar na França. Ao mesmo tempo, o imperador Napoleão III (sobrinho do Bonaparte) via um baixo crescimento populacional no país em comparação a outras nações europeias. E isso era um problema: entendia-se que a nação precisava estimular os nascimentos para permanecer forte.

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Napoleão III, por sua vez, era católico e mantinha boas relações com a igreja (o imperador prontificou as tropas francesas para lutar pelos Estados Pontifícios, por exemplo). Deu-se uma espécie de acordo: em troca do apoio à igreja, o Papa Pio IX deveria formalizar a condenação ao aborto.

A posição fazia sentido com a doutrina da igreja. Pio IX fazia críticas ferrenhas às ideias liberais que se construíam no século 19. Mas ela não deixa de ser uma decisão articulada, que atendia aos interesses de ambas as partes. Em outubro de 1869, o Vaticano publica um documento (6) que classifica o aborto como um pecado sob pena de excomunhão – a mais grave da igreja católica.

E a igreja se manteve firme nessa posição até hoje. O cristianismo está na raiz dos valores do Ocidente. Logo, a visão de que nenhuma gravidez poderia ser voluntariamente interrompida foi impregnando a legislação de cada país, incluindo o nosso.

Fotografia de uma mão oferecendo a bíblia para uma boneca.
A igreja católica tolerou o aborto durante a maior parte de sua história. Isso mudou em 1869, por conta de um acordo entre o francês Napoleão III e o Papa Pio IX. (Design: Juliana Krauss / Foto: Studio Oz/Superinteressante)

N No Brasil, o aborto legal é permitido em três situações: em caso de risco de vida da mulher, estupro ou anencefalia do feto. Esta última exceção é a mais recente, autorizada pelo STF e incluída na Lei Penal só em 2012.

O aborto em caso de estupro é a justificativa legal mais comum. Uma nota: ao contrário do que parece, ela não começou para proteger as mulheres. A exceção foi incluída no Código Penal de 1940, elaborada pelo governo Vargas durante a ditadura do Estado Novo. Os juristas brasileiros se inspiraram em leis europeias – a começar pelas da Itália, que na época vivia o período fascista. A legislação desenvolvida sob o governo de Mussolini era bastante dura em relação ao aborto, mas abria a exceção em caso de estupro.

O motivo? Defender a honra do pai ou do marido da mulher, evitando que ela desse à luz um filho “ilegítimo” e manchasse a imagem da família. A lei também tem um pé nas ideias eugenistas da época: entendia-se que o filho de um estuprador também se tornaria um criminoso. Seja como for, o fato é que a nossa lei antiaborto permanece quase inalterada há mais de 80 anos: a mulher que interrompe a própria gestação, independentemente da fase, está sujeita a um a três anos de prisão. Qualquer pessoa que a ajude (um médico, por exemplo) pode pegar até quatro anos.

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Mas em grande parte a lei só existe no papel. Em 2020, foram abertos 467 novos processos judiciais relativos a aborto (7) – um número que some diante do meio milhão que acontecem todo ano. Por um lado, é uma amostra de bom senso. Uma perseguição ostensiva contra a prática enquadraria 20% das mulheres brasileiras. Não faria sentido, simplesmente.

Em 1997, a revista Veja publicou uma matéria de capa sob o título “Eu fiz aborto”. Nela, mulheres comuns e celebridades como Hebe Camargo, Cissa Guimarães e Elba Ramalho contam suas histórias pessoais e como realizaram o procedimento – a maioria, fora dos casos previstos em lei.

Na prática, então, o que a lei faz é impedir o acesso ao aborto seguro a quem não pode pagar por um. O valor de um clandestino, de acordo com as fontes ouvidas pela Super, começa em R$ 5 mil – e isso ainda não basta para garantir a qualidade necessária do atendimento. A partir daí, o preço sobe com a idade gestacional e as condições da clínica.

Uma maneira de não ferir qualquer legislação, de qualquer forma, é interromper a gravidez em outro país. Entre 2014 e 2018, a quantidade de brasileiras que procuram o serviço em Portugal, onde a prática é legalizada, aumentou 27,7% (8).  Para quem não pode arcar com a viagem por conta própria, há iniciativas como a ONG “Milhas pela Vida das Mulheres”, que ajuda pessoas a acessar o aborto legal em países da América Latina.

A Argentina, Uruguai, Colômbia, Cuba e alguns estados do México. Esses são os únicos lugares da América Latina nos quais as mulheres podem escolher se abortam ou não – independentemente de fatores externos.

Na Europa, acontece o oposto. O aborto por opção da gestante é livre em 41 dos 44 países do continente (incluindo os que não fazem parte da União Europeia, como Rússia e Ucrânia) – as exceções são Polônia, Reino Unido e Finlândia. Dos 38 países da OCDE, a organização que abrange, em sua larga maioria, nações desenvolvidas, a escolha da mulher é soberana em 31 (81%) – ainda que, no caso dos EUA e do México, isso não valha em todos os estados. 

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Mais: Reino Unido e Israel não entram nessa lista, mas têm restrições quase zero. Nesses países há uma formalidade: é preciso uma autorização médica atestando que a sequência da gestação seria “prejudicial à saúde mental da gestante”. Só que, para efeitos práticos, o próprio desejo de não continuar a gravidez é visto como uma justificativa válida.

Mesmo descontando esses casos, o fato é que já são 78 os países nos quais a gestante tem o direito de escolha. Isso engloba 36% das mulheres em idade reprodutiva no mundo (9).

Card com o título
Clique para abrir o infográfico. (Juliana Krauss/Maria Clara Rossini/Superinteressante)

O que varia nesses países é o tempo-limite de gestação. Na Argentina, por exemplo, a gravidez só pode ser interrompida até a 14ª semana (terceiro mês). Na Colômbia, até a 24ª (sexto mês). Na Europa, a restrição temporal é maior. A maioria dos países lá permite o aborto só até a 12ª semana. Em Portugal, até a 10ª – ou seja, bem no início do terceiro mês.

Isso acontece porque o procedimento é mais seguro e menos custoso para o sistema de saúde nas fases iniciais da gravidez. As mortes maternas consequentes de um aborto induzido até a nona  semana de gravidez são 23 vezes mais raras em comparação com a 20ª semana (10).

A proposta de legalização no Brasil apresentada ao STF em 2018 seguia essa linha: a ideia era descriminalizar o aborto a pedido da mulher até a 12ª semana de gestação. Nas audiências conduzidas na época, a representante do Ministério da Saúde informou que R$ 486 milhões foram gastos pelo SUS com hospitalizações decorrentes de complicações de abortos entre 2008 e 2017 (11).

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Não é só a segurança do procedimento que conta. Em alguns lugares, entende-se que o limite é o da “viabilidade fetal” – o ponto a partir do qual o feto é capaz de sobreviver fora do corpo da mãe. É o caso da Califórnia, que, como a Colômbia, permite o aborto até 24ª semana.   

O período entre 22 e 26 semanas, vale observar, é chamado de área cinza – na qual as chances de sobrevivência fora do útero variam dependendo das características do feto e do tratamento oferecido após o parto prematuro. Com 22 semanas, as chances são 5,1%. Com 24, 55%. Às 26 semanas, saltam para 81% (12).

Fotografia de vários objetos de bebe e mãos manipulando-os.
Os países com leis mais liberais permitem o aborto a pedido da mulher até a 24a semana – período no qual a chance de sobrevivência fora do útero é de, em média, 55%. (Design: Juliana Krauss / Foto: Studio Oz/Superinteressante)

“Depois de 22 semanas, o feto passa a ter chances de sobrevida fora do útero. O problema ético é você induzir o aborto e o feto nascer vivo. O que você faz? É por isso que se limita, para que não haja esse questionamento moral”, diz o obstetra Olímpio Moraes, professor da Faculdade Estadual de Pernambuco. Ele ressalta que isso não vale quando a vida da mulher corre risco, é claro: nesse caso, a gestante deve ser priorizada em qualquer estágio da gravidez, como a própria lei brasileira diz.

O Brasil não especifica o limite gestacional para o aborto nos casos previstos em lei – embora o Ministério da Saúde recomende que se realize o procedimento, em caso de estupro, até a 22ª semana (13). Essa falta de clareza na legislação causou uma das maiores polêmicas recentes envolvendo violência sexual.

Em junho deste ano, uma menina de 11 anos foi impedida de fazer um aborto legal após ser estuprada. Isso aconteceu porque a família procurou o serviço na 22ª semana de gravidez. O hospital designado afirmou que só fazia o procedimento até a 20ª semana, e depois disso precisaria de uma decisão judicial. Inicialmente a juíza não concedeu a autorização, mas a menina conseguiu fazer o procedimento após uma revisão da sentença.

Alguns estados dos EUA são completamente pró-escolha. É o caso do Oregon, do Alasca e de Nova Jersey: não há limite. A lei, nesse caso, entende que o bebê é parte do corpo da mãe enquanto a gestação durar. Mas os abortos tardios são extremamente raros. Apenas 1% das interrupções acontecem após a 21ª semana (14). Um estudo publicado neste ano entrevistou 28 mulheres que fizeram o procedimento após a 24ª semana. Os motivos incluem a descoberta de uma anomalia fetal, de uma condição de saúde da mãe ou na própria gravidez. Outra razão foi a necessidade de se deslocar para um estado onde poderia abortar legalmente, o que atrasa o procedimento (15).

A autora do estudo defende que as restrições com base em idade gestacional dificultam o acesso de quem que se encaixa em casos excepcionais – seja alguém que descobre uma informação crítica de saúde ou menores de idade que dependem da família e de decisões judiciais. Em 2019, 92% dos abortos nos EUA foram realizados antes da 13ª semana de gestação – e 79% feitos antes mesmo da 9ª semana.

Numeralha com dados do aborto no mundo.
(Juliana Krauss/Superinteressante)

E Em Portugal, a taxa total de abortos no país caiu 21% desde a legalização, em 2007. E essa não é uma exceção lusitana: a França, que descriminalizou o aborto em 1975, viu uma redução de 21% desde então (16). Na Romênia foi ainda mais drástico: uma redução de 83% (17).

Ou seja, a descriminalização tende a diminuir a taxa de abortos no longo prazo. E há uma razão clara para isso. A mudança na lei costuma vir acompanhada de apoio psicológico à mulher que opta por abortar – além de educação sexual e planejamento familiar. Em nenhum país o aborto se tornou um “método contraceptivo”. Ele seguiu como o que sempre foi: uma medida de último recurso. E com uma orientação melhor o número de gestações involuntárias cai.

“Procura-se entender por que ela teve uma gravidez não planejada. Ela tinha acesso aos métodos adequados? Ou achava que estava usando bem os métodos quando na verdade não estava?”, diz Gabriela Rondon, doutora em Direito pela Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto de Bioética Anis. “Ou, às vezes, ela estava em uma situação de violência dentro do relacionamento que nem ela percebeu.”

Tudo isso é identificado por um psicólogo ou assistente social que acompanha a mulher ao longo do processo – e pode tirá-la de uma situação de vulnerabilidade. Já o médico instrui sobre métodos contraceptivos para que ela não necessite de um segundo ou terceiro aborto. “Uma pessoa que aborta na clandestinidade tem um risco duas vezes maior de abortar novamente, na mesma situação, do que uma mulher que tem acesso à informação e métodos seguros”, diz Moraes.

Duas fotografias representando cenas diferentes: a primeira sendo um carrinho de bebe e mãos manipulando ele. Na segunda, uma cesta vazia e caída com uma toalha manchada de sangue saindo dela.
O aborto com
acompanhamento médico é acessível para as mulheres que
podem pagar. As que não podem recorrem a métodos caseiros, muitas vezes perigosos. (Design: Juliana Krauss / Foto: Studio Oz/Superinteressante)

Em Portugal, 92,6% das mulheres que realizam o procedimento já saem do hospital com algum método anticoncepcional (18). “O sistema também pode usar essas informações coletadas para melhorar as políticas de saúde, de modo que outras mulheres e meninas nem venham a precisar do primeiro aborto”, diz Rondon.

Mas essa redução não ocorre de uma hora para outra. “É esperado que no início da implementação da lei haja um aumento no número de abortos – porque você vai finalmente começar a registrar e porque as pessoas passam a ter acesso ao serviço seguro e à informação.” Após a decisão “Roe vs. Wade”, nos EUA, a taxa de abortos a cada mil mulheres aumentou de 16,3 em 1973 para 29,3 em 1980. Em 2020, essa taxa já tinha caído para 14,4 (19).

SSe você é mulher, é provável que use algum método contraceptivo – 58% de chance de que seja a pílula anticoncepcional (20). Nesse caso, há duas possibilidades: ou você faz o uso ideal, tomando a pílula religiosamente todos os dias, no mesmo horário e fazendo as pausas corretamente; ou faz o “uso real”, ou seja, aquele em que esquece de tomar o comprimido de vez em quando e nem sempre fica atenta ao horário. Quem nunca?

Difícil manter a primeira rotina por anos a fio. É por isso que 3% das mulheres que tomam pílula engravidam a cada ano (21). Segundo uma pesquisa feita pela farmacêutica Bayer, mais de 60% das gestações não são planejadas no Brasil. A porcentagem está acima da média mundial, que é de 40%.

A Pesquisa Nacional do Aborto mostra que 65% das mulheres que já abortaram são casadas ou estão em união estável, enquanto 67% têm filhos. O perfil religioso é semelhante ao da população brasileira no geral: 56% são católicas e 25% são evangélicas.

A opção por fazer um aborto não faz distinção entre etnias, mas o fato é que mulheres negras passam mais pela experiência. Na Pesquisa Nacional, 71% das respondentes que já interromperam uma gravidez se autodeclararam pretas ou pardas – enquanto esse extrato corresponde a 55% da população. As brancas representaram 23%, e são 43% das brasileiras.

A questão aí está no menor acesso a métodos contraceptivos e a uma orientação adequada entre as mulheres mais pobres, que em sua maioria são pretas e pardas.

Mas a maior diferença está nas condições de como esses diferentes perfis de mulheres abortam.

Fotografia de 3 bonecas distintas alinhadas de pé.
(Design: Juliana Krauss / Foto: Studio Oz/Superinteressante)

C Camila* descobriu que estava grávida com duas semanas de gestação. Após sua menstruação atrasar quatro dias, ela fez um teste de farmácia e lá estava o resultado. A estudante morava longe da família, não tinha emprego, relação estável ou vontade de engravidar naquele momento. A camisinha do parceiro rompeu durante a relação. A jovem entrou no site do sistema único de saúde e preencheu um formulário marcando a primeira consulta. Fez uma série de exames de sangue, incluindo o da confirmação da gravidez.

Primeiro, se abriu com a assistente social do hospital. Durante uma hora, a profissional fez perguntas pessoais: se a relação foi consentida e se Camila estava sendo coagida a fazer o aborto. Após o parecer da psicóloga, um médico explicou à paciente exatamente como seria feito o procedimento.

A primeira pílula ingerida é a mifepristona. Ela bloqueia a atividade da progesterona, o hormônio necessário para manter a gravidez. Sem ele, o embrião não tem como se desenvolver e o colo do útero amolece. Um dia depois, Camila tomou o misoprostol (princípio ativo mais conhecido pelo seu nome comercial, Cytotec – uma marca da Pfizer). Esse estimula as contrações uterinas para a interrupção da gravidez.

As duas sessões para tomar os medicamentos foram feitas dentro do hospital, em dosagens compatíveis com o tempo de gravidez, além da supervisão médica e administração de remédio para aliviar a cólica. Após o procedimento, a jovem ainda voltou duas vezes para fazer ultrassons e garantir que o aborto tinha sido completo. (Caso não fosse, o médico faria a curetagem ou AMIU.)

Camila é brasileira, mas tudo aconteceu na Europa. Se estivesse no Brasil, teria duas opções. A primeira, endividar-se para pagar o procedimento em uma clínica ou hospital clandestinamente.

A segunda opção é comprar o Cytotec no mercado paralelo e procurar instruções para fazer o procedimento em casa. Metade das mulheres usa esse método. Camila dificilmente conseguiria comprar a mifepristona por aqui, já que o medicamento não é autorizado no Brasil (mesmo para os casos previstos em lei).

O aborto famacológico usando apenas misoprostol não precisa de outras intervenções em 90% das vezes. Atualmente, no Brasil, ele é vendido apenas para hospitais – que também o utilizam para indução do parto e contenção de hemorragia pós-parto, por exemplo.

O Cytotec, aliás, já esteve disponível sem restrições nas farmácias brasileiras entre 1984 e 1991. O medicamento foi aprovado pela Anvisa para o tratamento de úlceras de estômago e intestino. Não demorou muito para que as mulheres brasileiras descobrissem suas propriedades abortivas, e passassem a usá-lo para este fim. Em 1991 ele passou a ser vendido apenas com receita médica. Em 1998, só para os hospitais e clínicas.

Uma cartela chega a custar entre R$ 1.000 e R$ 2.000 no mercado paralelo – contra o equivalente a R$ 160 nos EUA. Além do valor, outro problema é a incerteza da procedência, validade e dosagem do medicamento. Com o Cytotec em mãos, as instruções de como fazer o procedimento vêm do traficante, de amigas ou da internet.

Fotografia de uma lixeira caída de boneca e cabide, pílula, colher e toalha manchada de sangue saindo dela. Várias mãos tentando alcancar os objetos.
Cabides, agulhas de tricô e medicação contrabandeada são alguns dos itens usados pelas mulheres para induzir o aborto sozinhas. Metade delas acaba hospitalizada. (Design: Juliana Krauss / Foto: Studio Oz/Superinteressante)

“Eu já vi mulher chegando no pronto-socorro com nove comprimidos enfiados na vagina”, diz Júlia*, que trabalhou como médica obstetra na Santa Casa. Uma quantidade excessiva de misoprostol pode estimular contrações e romper o útero. Ela também atende mulheres que introduziram objetos perfurantes na vagina para induzir o aborto: os mais comuns são alça de cabide, agulha de costura e colher. “Outra mulher viajou mais de 200 km sangrando para o hospital. Por onde ela passava, parecia o massacre da serra elétrica.”

Já Melania Amorim, médica ginecologista e professora da Universidade Federal de Campina Grande, chegou a atender uma jovem com um buraco na vagina após ter introduzido permanganato de potássio na tentativa de provocar um aborto. “Os principais riscos do aborto inseguro são hemorragia, infecção, perfuração de órgãos, lesão cáustica. E morte.”

É por isso que metade dos abortos realizados clandestinamente no Brasil acaba em internação hospitalar. E não importa se o aborto foi acidental ou voluntário: o hospital não pode negar atendimento. As mulheres não são obrigadas a contar, mas conhecer o método utilizado ajuda os médicos a tratar melhor as consequências. “Eu sempre digo: ‘Moça, eu não sou policial pra te prender, estou aqui pra te ajudar’”, diz Júlia.

Há ainda quem nem procure o atendimento médico, com medo de serem denunciadas. Não se sabe ao certo quantas mulheres morrem por ano em decorrência do aborto. A Organização Mundial da Saúde estima que entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas ao redor do mundo são consequência de abortos (22). Em países em desenvolvimento, como o Brasil, são 220 mortes para cada 100 mil abortos inseguros.

No final, o que temos é quase uma lei censitária: o aborto seguro só é proibido de fato para quem não pode pagar por ele. E não é só no Brasil. Metade dos abortos realizados ao redor do mundo é feita de maneira insegura – desses, 97% ocorrem em países em desenvolvimento.

Justamente por isso, a Organização Mundial da Saúde recomenda que o aborto seguro seja descriminalizado e acessível em todos os países.

Também não há evidências ou dados mostrando que a criminalização reduza o número de abortos (23) – como vimos antes, costuma ser exatamente o contrário. Como resume Olímpio Moraes: “Alguém é a favor do aborto? Não, ninguém. O que estamos discutindo é como enfrentar o problema do abortamento que existe. Aí tem dois caminhos: o da moral e das crenças e o da ciência, que é como [o assunto] deve ser encarado para minimizar danos para a sociedade. Como sou médico, me baseio na ciência”.

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*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.

Fontes: (1) Artigo “Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional”; (2) Ministério da Saúde – DataSUS; (3) Ministério da Saúde – DataSUS; (4) Artigo “Pesquisa Nacional do Aborto 2016”; (5) Artigo “Mortalidade por aborto no Brasil: Perfil e evolução de 2000 a 2020” e Artigo “Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?”; (6) Documento “Acta Sanctae Sedis: In Compendium Opportune Redacta Et Illustrata”; (7) Artigo Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres”; (8) Direção-Geral da Saúde de Portugal; (9) Center for Reproductive Rights; (10) Artigo “​​Risk Factors for Legal Induced Abortion–Related Mortality in the United States”; (11) Declaração apresentada em 3 de agosto de 2018; (12) Artigo “Between-Hospital Variation in Treatment and Outcomes in Extremely Preterm Infants”; (13) Cartilha “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”; (14) Relatório “Abortion Surveillance — United States, 2019”; (15) Artigo “Is third-trimester abortion exceptional? Two pathways to abortion after 24 weeks of pregnancy in the United States”; (16) Artigo “Avortements: evolution du nombre d’avortements et des annonces annuels”; (17) Guttmacher Institute; (18) Reportagem “Abortos caem 4% em Portugal, mas aumentam 28% entre brasileiras no país”; (19) Guttmacher Institute; (20) Instituto Ipsos; (21) Manual Febrasgo; (22) Artigo “Global causes of maternal death: a WHO systematic analysis”; (23) Organização Mundial da Saúde

Agradecimentos: Maria José Rosado, socióloga e fundadora da ONG “Católicas pelo Direito de Decidir”; Alexandre Chaves, professor e pesquisador de estudos da religião; Débora Diniz, antropóloga e professora da Universidade de Brasília.

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