Ayahuasca: de ritual alucinógeno a item de luxo
Pacotes turísticos de R$ 10 mil, kits para fazer o chá em casa, raves de ayahuasca... O líquido alucinógeno saiu da selva e virou hype de vez.
Imagine que você e seus amigos decidem ir ao cinema sem saber o que está em cartaz. Compram o ingresso no escuro e entram na sala sem saber o que vai passar. A expectativa é um filme em 3D – IMAX, quem sabe. A tela se acende e as histórias mais terríveis e emocionantes que você consegue imaginar se desenrolam sobre ela: revelações traumáticas, romances de tirar o fôlego, a cena mais triste do mundo, memórias de amor. Tudo num filme só, criando uma experiência transcendental. Ao final, todos se sentem transformados.
É mais ou menos isso que acontece quando alguém toma ayahuasca. O ritual religioso, chamado carinhosamente de “cinema de índio”, é regado por uma pequena dose de um chá acre, espesso e terroso, feito da combinação do cipó mariri (Banisteriopsis caapi) e de um arbusto – a chacrona (Psychotria viridis) ou a videira chagropanga (Diplopterys cabrerana), todas nativas da selva amazônica. Uma mistura certeira descoberta pelos índios há séculos, que tem efeitos alucinógenos e é usada em cultos religiosos – tanto dentro da selva quanto em igrejas urbanas: nesse caso, geralmente misturada a outras crenças. No Brasil, muitas vezes lembrado como a “Amsterdã da ayahuasca”, o uso é permitido para rituais tradicionais e estudos científicos.
Não há números oficiais que contabilizam os usuários do chá ao redor do mundo, já que não há um Vaticano da ayahuasca, mas as estimativas estão na casa dos milhares. No Brasil, o Santo Daime é a mais famosa das igrejas que usam o chá em seus rituais, mas a União do Vegetal é a maior agremiação: tem 20 mil seguidores. O número, no entanto, é pequeno perto de um fenômeno que os ayahuasqueiros vêm percebendo há alguns anos. O chá anda pop.
Se antes o néctar amargo era ingerido principalmente no Brasil, no Peru e em outros países com territórios amazônicos, agora a ayahuasca é hype internacional. Virou “tendência” de Bali à Espanha, de Mapiá a Malibu, conquistando ambientalistas, andarilhos hippies, cientistas psicodélicos, devotos de diferentes fés, todos em busca de um exercício de autoconhecimento ou um caminho de cura mental. E, como não poderia deixar de ser, acabou virando a queridinha de baladeiros querendo chapar o coco.
A peruanização
“Aventuras que mudam sua vida.” É assim que a Pulse Tours, uma agência de turismo peruana, anuncia seus retiros ayahuasqueiros. Quem compra um pacote – de 7, 14 ou 21 dias – vai adquirir passeios pela selva amazônica, visitas a santuários de animais silvestres, paradas em restaurantes locais, e, se o turista assim desejar, uma esticada até Macchu Picchu. No meio dessa miscelânea de experiências “típicas”, o destaque são as cerimônias de ayahuasca, às vezes oferecidas dia sim, dia não, com acompanhamento de xamãs e curandeiros – todos especialistas em “tradições centenárias passadas de geração em geração”. Cada participante senta em um colchonete e se prepara para sua viagem particular. A Pulse Tours diz que a cerimônia “limpa traumas profundamente enraizados, padrões de pensamento negativos ou desequilíbrio espiritual”. Os pacotes podem custar mais de R$ 10 mil.
O chá também virou tema de festivais de psytrance no Peru, foi servido em galerias de arte no bairro nova-iorquino de Chelsea e em casas no Topanga Canyon, nos arredores de Los Angeles – e conquistou até famosos internacionais, como Sting, Lindsay Lohan e Jim Carrey. A cultura ayahuasqueira chegou também à África, à Ásia e à Europa – a ilha de Ibiza, por exemplo, famosa por baladas e belas praias de nudismo, hospedou a primeira Aya Conference em 2014, uma conferência internacional na qual pajés indígenas e cientistas contam suas experiências e descobertas com o alucinógeno. Para quem não quer se deslocar e deseja ter uma “genuína” experiência transcendental no conforto do seu lar, basta entrar no Soul Herbs.com e pedir, por R$ 1.500, um kit com 500 ml do chá (tempo de preparo: 10 minutos). Eles entregam para qualquer parte do mundo.
A banalização do ritual da ayahuasca tem incontáveis riscos, é claro. Os efeitos do chá no corpo são imprevisíveis. Quem ingere a mistura em poucos minutos sente torpor, tremor, tontura e forte enjoo. Vômitos e diarreia são muito comuns – assim como usuários assustados com os sintomas físicos. Só depois dessa “purga” inicial (na palavra dos próprios usuários), começa a parte alucinógena.
Não é um ritual banal. Nos últimos anos, dezenas de usuários insatisfeitos reclamaram em fóruns de internet sobre suas experiências nem tão transcendentais assim – e houve casos com finais mais dramáticos. Os incidentes de maior repercussão foram a morte do trapezista francês Fabrice Champion, em 2011, na cidade de Iquitos, e do estudante americano Kyle Nolan, em 2012, em Puerto Maldonado – ambos no Peru. Não é à toa, então, que a popularização do chá ganhou um apelido entre quem entende do assunto: “peruanização”. Como todo serviço oferecido em massa, a qualidade da cerimônia ayahuasca oscila muito por lá, onde o chá também é legalizado. “Vi centros altamente cuidadosos, sérios, que seguiam regras de segurança rígidas, embora também existam aventureiros e charlatães, aproveitadores e oportunistas”, diz a antropóloga e especialista da área Beatriz Labate, que participou de retiros em Iquitos e Tarapoto.
O Peru é o maior responsável pela banalização do ritual. Mas não ficamos tão atrás: já dá para comprar o cipó no Mercado Livre, por exemplo.
No Brasil, a ayahuasca-raiz
Num sábado de novembro, viajei para um sítio na estrada Mogi-Bertioga, em São Paulo. Quer dizer, viajei em um sítio na estrada Mogi-Bertioga. Esperava encontrar hipsters plugados na última tendência de drogas psicodélicas, confesso. Mas, não. Ali, num sobradinho simples, decorado com flores, mobílias de madeira, beliches e armarinhos coloridos, encontrei 25 adultos e sete crianças para um almoço de estrogonofe de inhame por volta das 12h. Entre entrevistas e cafés, o dia passou na Rosa de Luz, vertente da União do Vegetal (UDV) fundada pelo psiquiatra paulistano Wilson Gonzaga. Era um encontro de famílias inteiras. Num clima amigável, os participantes passaram a tarde toda conversando e cuidando da “horta” de chacrona e mariri, os ingredientes da ayahuasca. Às 19h30, um casal acompanhou as crianças para uma casa vizinha enquanto os outros começavam os preparativos para o ritual: vestes brancas, mantas para os calafrios e um tira-gosto (uvas e outras frutinhas) para aliviar os paladares mais sensíveis ao amargor do chá. Às 20h começou o ritual, com 70 participantes. Diante de um retrato de Jesus, todos rezaram o Pai-Nosso. Num pequeno altar estava um galão do líquido marrom. A sessão, que dura quatro horas, foi dirigida por uma senhorinha de ascendência chinesa, com intervenções de sua filha e atual mestre da agremiação, Anna Mey. O cerimonial foi regido por cânticos à capela e músicas programadas num notebook, do instrumental a Milton Nascimento. À meia-noite, o ritual terminou.
No Brasil, o chá ainda não virou carne de vaca. Ao contrário do Peru, onde os próprios indígenas espalharam o ritual para todo o país como um recurso medicinal, por aqui, foi o “homem da cidade grande” que distribuiu a ayahuasca – só que em forma de religião. Na década de 1930, durante o ciclo da borracha, o ex-soldado e seringueiro negro Raimundo Irineu Serra entrou em contato com pajés amazônicos no Acre, conheceu o ritual e fundou o Santo Daime. Por volta de 1945, também em Rio Branco, o frei Daniel Pereira de Mattos fundou a Barquinha, outra agremiação. E, nos anos 1960, José Gabriel Costa formou a UDV. Até a década de 1970, o alucinógeno era consumido apenas dentro dessas três religiões.
Até hoje – com dezenas de grupos novos, urbanos e independentes –, as principais igrejas ayahuasqueiras valorizam a sustentabilidade. Como o chá faz parte de um ritual religioso, os integrantes dos movimentos acreditam que manusear o cipó e a folha já são atos espirituais. Nos dois endereços que visitei, a Rosa de Luz, que narrei acima, e a Ecovila São José, em Santa Catarina, o cultivo e o preparo do chá é feito in loco para consumo próprio. Na Rosa de Luz, por exemplo, os integrantes contribuem com uma mensalidade de R$ 90 para manter o sítio e a plantação – um valor muito diferente dos R$ 1.200 que cobram por uma única sessão no Peru. “Houve, sim, uma explosão. Não temos ideia de quantos grupos existem, mas observo que a maioria faz parte de um circuito comum de substâncias, símbolos e saberes. No Brasil, é interessante que a ayahuasca se expandiu sempre associada a ritos”, diz Labate, que também é autora de A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos.
Isso não quer dizer, é claro, que passamos batidos pelo hype. Também é possível encontrar ofertas de todo tipo por aqui: invites para roda xamânica, newsletters com promessas de nirvana, mudas de mariri à venda no Mercado Livre ou kits amadores para preparo do chá por R$ 900 no Facebook. “O Brasil está seguindo o Peru a passos largos. Há muita gente lucrando e produzindo ayahuasca para o turismo, com propaganda nas redes sociais, e a promessa de uma experiência espiritual exótica a qualquer hora. Mas culturas não são transportadas em garrafas”, diz o procurador de justiça Cosmo Lima de Souza, integrante da Câmara Temática das Culturas Ayahuasqueiras no Acre. De fato, ingerir o chá longe dos ambientes tradicionais bota em risco seu maior atrativo: a transcendência, o contato com o sagrado, a viagem de impacto duradouro. O cinema de índio, pelo jeito, está cada vez mais distante das florestas – e mais perto dos shoppings.
Mas é droga-droga?
Os adeptos no Brasil não gostam da expressão “alucinógeno”, pois acreditam que a palavra menospreza o caráter religioso. Eles preferem chamar de “enteógeno”: um elemento para “despertar o divino dentro de si”. Semântica à parte, a ayahuasca é uma droga alucinógena, sim. Após a ingestão, a dimetiltriptamina das folhas de chacrona chega ao cérebro e desregula áreas que controlam emoção, percepção visual e memória. “É uma substância psicoativa não necessária para a sobrevivência do organismo, usada justamente para alterá-lo”, diz o biólogo Rafael Guimarães, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.