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Licença-paternidade: por que precisamos dela

A licença para homens custa pouco, faz bem para pais, mães e filhos - e ainda dá um empurrão na economia do país.

Por Ana Carolina Leonardi e Karin Hueck
Atualizado em 6 Maio 2022, 11h02 - Publicado em 24 jan 2018, 16h13

Até completar 2 anos de idade, uma criança vai comer 4.530 vezes e tirar 1.995 sonecas. Vai tomar 720 banhos, trocar 1.260 vezes de roupa e usar 4.100 fraldas. Vai visitar o médico 15 vezes e tomar 22 vacinas. Nos primeiros meses de vida, um bebê não come, não dorme, não brinca, sequer segura a própria cabeça sozinho. Ele precisa de companhia 24 horas por dia, e que alguém esteja à disposição de dia, de noite, de madrugada, incansavelmente. Cuidar de uma criança pequena não é trabalho para uma pessoa só – como mostram os números da página anterior. Ainda assim, de acordo com a lei brasileira, apenas uma das pessoas que fez o bebê tem direito a licença remunerada para cuidar – e acompanhar a vida – daquele serzinho que carrega metade do seu DNA.  A outra é o pai.

A licença-paternidade no Brasil é de apenas cinco dias – que podem virar 20, se a empresa adotar uma ausência estendida. Já as mães (incluindo as desempregadas e autônomas) têm direito a quatro meses de licença remunerada pelas companhias ou pelo INSS – que podem virar seis meses. Pais autônomos, por exemplo, não recebem nenhum tipo de auxílio quando um bebê nasce. Jogar toda essa diferença na conta da amamentação não faz sentido. É só lembrar das 4.100 fraldas trocadas e 1.995 ninadas – há muita coisa para dois adultos fazerem nos primeiros meses de vida de um filho. Mas, ao definir que apenas mulheres possam tirar um longo período de licença, a lei já escolhe quem vai ser o principal cuidador da criança mesmo depois dos primeiros meses de vida: a mãe.

Essa escolha tem efeitos negativos na carreira das mulheres, na vida pessoal dos homens, no desenvolvimento dos filhos – e até na economia do país.
Sim, decidir quem vai cuidar da nova geração é um daqueles assuntos divisores de águas, com implicações em todos os setores da sociedade, principalmente o econômico. Nos EUA, por exemplo, o custo de as mulheres deixarem o mercado de trabalho para ficar com os filhos é estimado em meio trilhão de dólares ao ano. No Brasil, 48% delas são eliminadas do mercado nos três primeiros anos de vida do bebê. É um custo muito alto. Não à toa, a licença-paternidade está se espalhando rapidamente pelo mundo. Em 1997, só 41 dos países tinham algum tipo de tempo reservado para os homens. 20 anos depois, já são 81.

 

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Santo de casa faz milagre

As vantagens de ter duas pessoas criando os filhos são óbvias. Pesquisas mostram que crianças com dois pais participativos têm mais autoestima e autocontrole, e são menos impulsivas. Homens que são carinhosos e participam do dia a dia criam filhos que sofrem menos de depressão e comportamento antissocial. Aos 40 anos, essas crianças até ganham mais do que quem teve apenas um adulto trabalhando na criação.

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“Acho que o principal erro no conceito de paternidade é a ideia de que ‘eu fui criado assim e funcionou, vou criar o meu filho da mesma forma’”, diz Marcos Piangers, autor de O Papai é Pop, e uma das principais vozes no Brasil sobre paternidade. “O que era considerado um bom pai há algumas décadas não é em 2018.”

Uma das maiores lendas sobre a criação dos filhos é a que diz que mulheres são “cuidadoras natas”. Graças aos hormônios da gravidez e do pós-parto, apenas as mães teriam o instinto, programado diretamente pela evolução, de cuidar direito. Mas a paternidade também é fisiológica. A produção de oxitocina, o “hormônio do amor”, tem picos no cérebro masculino depois do contato direto, pele a pele, com um filho recém-nascido. Outras reações são ainda mais misteriosas: a prolactina, hormônio que funciona como um gatilho para a produção do leite materno, também é produzida nos homens que se tornaram papais – indicando que ela tem uma função que vai além da amamentação.

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Outras pesquisas mostram que só é um bom pai/mãe quem bota a mão na massa. O psiquiatra Kyle Pruett, da Universidade Yale, decidiu observar o que acontece quando um bebê tem o pai como cuidador primário. Seu estudo durou 12 anos e acompanhou 18 famílias de diferentes etnias e condições sociais. Nos primeiros dez dias sozinhos no papel de cuidadores, sempre que aparecia um novo desafio –, como um bebê que não parava de chorar –, a primeira coisa que esses pais pensavam era: “O que a minha mulher faria?”. Mas, a partir do 11º dia, os voluntários abandonaram a ideia de imitar as mães: começaram a criar as próprias estratégias. Ou seja, aprendiam fazendo. E o mais fofinho: o apego dos filhos cresceu imediatamente. Um dos participantes, que cuidava da filha de 4 meses, notou que, de uma hora para a outra, a menininha se recusou a comer e a dormir e só chorava. A “greve” durou mais de dois dias, até o pai entender qual era o problema quando um vizinho não o reconheceu no elevador. Ele tinha raspado a barba no mesmo dia em que o chororô começou. A doença da filha era saudade do pai que ela conhecia. Pai é realmente quem cria.

Milagre econômico

Se a licença-maternidade é essencial para a saúde do bebê e da mãe, a paternidade cuida da economia. É óbvio que toda mulher precisa de um tempo para se recuperar da gravidez e se dedicar à amamentação – o problema está no que acontece depois desse tempo. Um estudo da FGV mostrou que, do quarto para o quinto mês após o parto (justamente quanto a mulher está voltando da licença), seu risco de demissão duplica. Três anos depois do nascimento do filho, quase metade dessas brasileiras sai do mercado formal. E pior, o salário das mulheres também é afetado: diminui 7% para cada filho que nasce, enquanto que o dos homens sobe 10% por filho. Isso porque um pai é considerado um funcionário mais “responsável”, mas mães se tornam “descomprometidas”. As consequências são aquelas que todo mundo conhece: empregadores que preferem não contratar mulheres, desemprego maior entre elas e, claro, a diferença salarial entre gêneros, que não foi eliminada em nenhuma sociedade do mundo. Os especialistas chamam esse fenômeno de “penalidade materna”.

O que pouca gente sabe é que existe também uma “penalidade econômica”. Quando metade da força de trabalho é colocada em risco no longo prazo, a economia de um país inteiro sofre. Um quarto das brasileiras, por exemplo, não trabalha porque precisa ficar cuidando de um membro da família. Um estudo americano mostrou que, a cada ano que uma mulher fica fora do mercado de trabalho, o quádruplo do salário anual dela vai pelo ralo . É dinheiro que não entra na economia – e imposto que deixa de ser arrecadado. No Brasil, por exemplo, 64% dos homens e 45% das mulheres trabalham. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, se o número de mulheres no mercado subisse para 55%, o PIB brasileiro cresceria 0,8% a mais ao ano. Em todos os países, aliás, haveria um aumento significativo. O ex-presidente dos EUA Barack Obama resumiu bem a questão quando, em 2015, permitiu que todos os funcionários do governo – homens ou mulheres – tirassem seis semanas no nascimento de um bebê: “É hora de parar de tratar a criação dos filhos como um problema de mulher e começar a enxergá-la como prioridade econômica nacional”.

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É seguindo esse raciocínio que 52 países do mundo resolveram implementar um outro tipo de incentivo: a licença-parental, que é quando o tempo de afastamento se torna unissex – ou seja, os pais podem decidir quantos meses cada um vai ficar em casa. Se a licença total é de um ano, por exemplo, a mãe poderia tirar os seis meses iniciais e o pai ficaria com o resto. A ideia é aproximar os homens dos filhos, permitir que as mulheres voltem logo a trabalhar, e o principal: difundir a noção de que criar filhos não é coisa de mulher, o que impossibilitaria a discriminação do mercado de trabalho. Na Suécia, por exemplo, pais e mães podem dividir dez meses. Na Nova Zelândia, 12 meses. Na Lituânia, são incríveis dois anos.

Mas nem tudo se resolve tão fácil assim. Quando a Suécia inventou sua licença-parental, em 1974, acreditou que em alguns anos haveria um equilíbrio entre os gêneros. Não foi o que aconteceu: quase 90% da licença continuava sendo usada pelas mulheres. Em 1995, então, o governo sueco criou 30 dias intransferíveis para os pais. Se eles não tirassem (pelo menos) esse mês, o tempo seria perdido. Em 2002, passaram a ser 60 dias. Com isso, 25% dos dias já estavam sendo tirados pelos homens. Em 2017, tornaram-se 90 dias compulsórios – e, mesmo assim, a igualdade só deve ser atingida em 2035.

Tornar os dias paternos intransferíveis é o que tem funcionado ao redor do mundo. No Estado do Quebec, no Canadá, a política é similar à da Suécia. Da licença total, cinco semanas podem ser tiradas apenas pelo pai. Por lá, deu muito certo: se, em 2001, só 10% dos pais tiravam a licença, o número saltou para 80% em 2010. “É indescritível o que um pai perde sem esse tempo. Ele já começa a relação com o bebê quase como um tio: perde o momento inicial de conexão, que leva tempo para surgir, no qual o filho realmente se entrega”, diz Luli Radfahrer, professor de comunicação da USP. Assim como todos os pais brasileiros que resolvem ficar um tempo em casa, sua licença-paternidade foi particular: ele mesmo tirou um semestre sabático para cuidar do filho recém-nascido.

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Para combater a penalidade materna e o impacto econômico das mulheres que saem do mercado, diversos países do mundo estão sendo criativos em seus incentivos. Na Finlândia, por exemplo, o governo paga um bônus de R$ 1.750 se ambos os pais trabalharem meio período, em vez de um ficar em casa e outro no escritório. A ideia é não afastar ninguém do mercado. Em outros países, o foco é garantir estabilidade no emprego para as mães – na Moldávia, a proteção dura até a criança completar 6 anos. Até no nosso Senado corre um projeto de lei que tenta criar a licença- parental. Ele não altera a duração das licenças maternidade ou paternidade, mas permite um acordo entre pai e mãe para que os meses da gestante possam ser divididos entre os dois, em períodos alternados. Desde outubro de 2017, a PEC está pronta para entrar na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Na verdade, ninguém conhece ainda a solução para o problema. Justamente por ser um assunto tão cheio de implicações, governos ao redor do mundo ainda estão testando saídas – não só por uma questão política, mas econômica também.

Vai custar quanto?

Esses exemplos de países gélidos e ultrarricos podem parecer distantes para a realidade brasileira, mas dá para aprender outra lição com eles. Não é caro dar licença para todos. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, países ricos gastam de 0,3% a 0,7% do PIB em licenças remuneradas para a população, dependendo do tempo de afastamento. 0,7% do PIB é metade do que perdemos todo ano no Brasil com corrupção.

Na Alemanha, o governo gastou R$ 22,6 bilhões com licença-parental em 2015 – mas recuperou 100% do valor com os impostos pagos pelas mães que voltaram a trabalhar. Até no Brasil não seria criminoso aumentar a licença-paternidade. Segundo um estudo da FEA-USP, se todos os pais brasileiros passassem a tirar os 20 dias optativos de afastamento, o custo seria de R$ 100 milhões ao ano – o mesmo que Michel Temer gastou em publicidade para a reforma da previdência, em apenas seis meses.

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“Quando vem uma criança, você tem dois caminhos: ou se atém ao papel que foi incentivado durante toda a vida ou nega o que aprendeu. A pressão social é para não sentir, não trocar fralda, não colocar o filho acima da própria profissão, não faltar no trabalho quando ele tem febre. Mas dá para quebrar esse ciclo”, diz Marcos Piangers. Olhando para todos esse números, não faltam argumentos econômicos e racionais para justificar a licença paga para os homens. Mas o que pesa mesmo deveria ser outro motivo. Um serzinho que não dorme, não come nem segura a cabeça sozinho. Precisa de ajuda para tudo. Carrega metade do seu DNA – e vai ser mais feliz, saudável e ajustado se puder conviver com os dois pais no começo da vida.

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