Ninguém nasce ruim em matemática – o que precisamos é mudar como ela é ensinada
Atire a primeira pedra quem nunca teve medo de uma equação ou suou em uma prova de matemática.

Poucas disciplinas despertam sentimentos tão contraditórios quanto a matemática. Ao mesmo tempo em que é considerada fundamental para a ciência, a tecnologia e a vida cotidiana, carrega a fama de ser difícil, inacessível e destinada apenas a “pessoas talentosas”. O resultado é que grande parte dos estudantes cresce acreditando “não ter nascido” para os números.
Esse foi o ponto de partida de um debate que reuniu vozes importantes do ensino e da pesquisa em matemática. Na última quarta-feira (20), em São Paulo, o painel “Como a Matemática vai incluir o Brasil na economia digital” colocou lado a lado a pesquisadora britânica Jo Boaler, professora da Universidade de Stanford, e o matemático Marcelo Viana, diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
O evento foi organizado pelo Instituto Sidarta, responsável pelo programa “Mentalidades Matemáticas”, em parceria com a B3 Social, a Fundação Itaú e o Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional).
À Super, Boaler destacou que a crença de que apenas alguns têm “dom” para a disciplina não encontra respaldo científico. “A neurociência mostra que todos podem aprender matemática em alto nível. O cérebro é plástico, capaz de mudar com a experiência. O que falta é oportunidade e a forma certa de ensino”, disse.
O professor Vitor de Oliveira Ferreira, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, que não participou do evento, compartilha da mesma visão: “Acredito que qualquer um consegue aprender bem matemática, assim como aprende a ler e a escrever; todos têm condição de serem letrados nesse campo. Afirmações do tipo ‘não nasci para a matemática’, em vez de serem recebidas com naturalidade, deveriam causar perplexidade.”
O papel do erro
Para Boaler, uma das raízes dessa percepção negativa está na forma como escolas e professores lidam com os erros. “Quando erramos, nosso cérebro cria novas conexões. O erro não é sinal de fracasso, mas de aprendizado em andamento”, afirmou durante o painel. “O melhor momento para o cérebro é quando você está sendo desafiado. É quando as conexões estão sendo fortalecidas e formadas.”
Ela critica a cultura de punição que ainda persiste em muitas salas de aula: “Temos gerações de pessoas que têm medo de cometer erros em matemática, que são punidas por isso. Essa é a razão pela qual acabam se afastando da disciplina: não querem ser expostos, não querem errar em público.”
As falas da especialista encontram respaldo nos dados divulgados em novembro de 2024 pela principal pesquisa internacional sobre educação. Realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), ela aponta que os estudantes estão cada vez mais desenvolvendo uma postura negativa em relação à matemática.
O Pisa (Programa para a Avaliação Internacional dos Estudantes, na sigla em inglês) de 2022, aplicado em 81 países pouco após o fim da pandemia de Covid-19, revelou que 65% dos alunos da média dos países avaliados relatam ansiedade com suas notas. Cerca de 40% se sentem nervosos, tensos ou desamparados ao resolver problemas matemáticos. No Brasil, os números são ainda mais altos: 79,5% e 62,3%, respectivamente.
Segundo Boaler, o impacto é imediato quando os estudantes são expostos a uma abordagem diferente: “Eu compartilho com os alunos: eu quero que vocês cometam erros. Essa é a melhor hora do seu cérebro. E eles mudam quando ouvem essa mensagem.”
Ferreira, que leciona na graduação, também nota transformações quando o aprendizado é encarado como um processo coletivo. “A experiência mais recompensadora para um professor é, depois de um diálogo engajado com um aluno inseguro sobre sua capacidade, ver surgir encantamento, um brilho nos olhos e um comentário do tipo: ‘Ah! Agora entendi’.”
Outro ponto discutido pelos especialistas é o que deve ou não estar no currículo escolar. Ferreira argumenta que a base clássica não pode ser abandonada: “O conhecimento matemático, ao contrário do que ocorre com as outras ciências, é cumulativo. Os teoremas dos Elementos, de Euclides, escritos há mais de 2 mil anos, continuam válidos hoje. Na matemática, não ocorre a substituição de uma área por outra mais avançada ou mais correta. O que há é alargamento e aprofundamento do campo do conhecimento.”
Para ele, temas como estatística e algoritmos são indispensáveis atualmente, mas devem ser incluídos junto de conteúdos como aritmética, álgebra e geometria. “Essas são as ferramentas necessárias para incursões em assuntos mais avançados.”
Boaler, no entanto, defende cortes mais drásticos. “Nos EUA e provavelmente em todo o mundo, continuamos ensinando tópicos que foram estabelecidos há mais de 100 anos. Passamos muitas, muitas horas praticando métodos que hoje podem ser feitos por computadores, e que ninguém irá resolver manualmente fora da escola”, disse ela.
Viana concorda com a necessidade de atualização e vê no Brasil um conservadorismo ainda maior. “O pecado original dos nossos currículos no passado foi a seguinte atitude: ‘a matemática é um problema. Vamos resolvê-lo nos livrando dele’. Então, os currículos foram extremamente empobrecidos ao longo do tempo.”
“Nosso ensino médio nos moldes tradicionais é considerado catastrófico. A ênfase que colocamos na equação de segundo grau é um belo exemplo de algo que não precisaria estar no currículo. Ninguém, na prática, resolve uma equação desse jeito na vida real”, afirmou durante o painel.
Ferreira aponta ainda para um desafio que vai além do currículo: a queda no engajamento dos estudantes. “Hoje, ainda sentimos reflexos da pandemia de Covid na educação dos jovens. Temo que as consequências dos longos meses de ensino não presencial perdurarão por muito tempo”, afirma.
Um estudo divulgado em abril pelo Todos Pela Educação mostra que o a aprendizagem no país ainda não conseguiu retomar os patamares de 2019. Além disso, as desigualdades que já estavam presentes foram acentuadas.
Em 2023, apenas 43,5% dos alunos do 5º ano do ensino fundamental apresentavam aprendizagem adequada em matemática, ante 46,7% em 2019. No 9º ano, o índice caiu de 18,4% para 16,5% no mesmo período. No ensino médio, apenas 5,2% dos estudantes atingiram esse patamar em 2023, frente a 6,9% antes da pandemia.
Segundo o professor do IME, o fenômeno pode estar ligado às incertezas em relação ao futuro, tanto pela rápida transformação no mercado de trabalho quanto pelas perspectivas negativas sobre o planeta. “Para reverter esse quadro, é preciso um trabalho profundo no sentido de convencer as novas gerações de que será por meio do desenvolvimento da criatividade, do conhecimento em geral e das ciências em particular – a matemática incluída – que se encontrarão saídas para essas crises”, resume.
Os especialistas concordam que a disciplina é essencial não apenas para carreiras em ciência e tecnologia, mas para a própria vida democrática.
“Num mundo em que computadores – que, é bom lembrar, são objetos matemáticos – estão totalmente inseridos em quase todas as atividades humanas, especialmente no mundo do trabalho, o conhecimento, o desenvolvimento do raciocínio lógico e a competência no tratamento de questões quantitativas são não apenas desejáveis, mas condições mínimas essenciais para a atuação de qualquer cidadão consciente de seu papel na busca de uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais democrática”, conclui Ferreira.