País registra cada vez mais agressões e quebras de terreiros
A cada 15 horas, uma queixa de discriminação por motivo religioso é registrada no Brasil, a maioria contra credos afro-brasileiros
Há 130 anos, os trabalhos no terreiro Axé Opô Afonjá, em São João de Meriti, na baixada do Rio de Janeiro, encerravam às 19 horas. Desde agosto, o término do culto foi antecipado em uma hora. A rotina do centro sofreu outra alteração: a líder da casa, a mãe Regina D´Yemanjá, proibiu os fiéis de andar pelas ruas usando os trajes religiosos. O motivo das mudanças: medo. São tentativas de evitar casos como o da menina Kaylane Coelho. Em 14 de junho de 2015, a garota, então com 11 anos, saía de uma festa num terreiro de candomblé, da Vila da Penha, bairro de classe média da Zona Norte do Rio, quando uma pedra atingiu sua cabeça, atirada por dois homens que estavam em um ponto de ônibus.
A dupla, de bíblia em punho, lançou ainda insultos contra um grupo formado por oito pessoas vestidas de branco e depois seguiu seu caminho, impune. O caso gerou indignação, solidariedade entre líderes de vários outros credos (inclusive evangélicos), e serviu como alerta para o acirramento dos ataques às práticas afro-brasileiras. Na ocasião, Káthia Marinho, avó de Kaylane e chefe do terreiro, resumiu: “Essa pedrada atingiu toda uma nação”.
Os números de casos de discriminação religiosa registrados pelo telefone de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, o Disque 100, são alarmantes: entre 2015 e 2017, a cada 15 horas um relato por motivo de intolerância foi relatado, de acordo com o órgão. Segundo os relatórios disponibilizados pela entidade, em 2012 foram 109 notificações em todo o País.
Em 2016, o número saltou para 759 (no primeiro semestre de 2017 foram 169 casos). Os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo são os recordistas de ocorrências. A Secretaria de Direitos Humanos fluminense recebeu, entre agosto e outubro de 2017, 42 denúncias de preconceito religioso, sendo que 91% deles contra credos de matriz africana. Um retrocesso medieval em pleno século 21. Como entramos nessa espiral de intolerância?
A Constituição de 1988 garante a liberdade de crença no País.
A partir da Constituição de 1891, a segunda da história do País e a primeira do regime republicano, o Brasil deixou de ser católico, tornando-se um Estado laico. Até então, desde que as caravelas de Cabral surgiram no litoral da Bahia, judeus tiveram de viver como cristãos-novos, sem professar seus rituais, os índios sofreram brutal opressão em nome da fé na Igreja de Roma, e os escravos africanos precisaram abandonar – ou esconder – seus rituais religiosos. Ainda que a lei já permitisse cultos de todas as fés desde 1824 (restringindo a prática a domicílios), as celebrações seguiram sendo feitas com discrição. O racismo jamais deu trégua, turbinando o preconceito contra os credos e ritos da África.
No país do “chuta que é macumba”, a liberdade, de fato, nunca foi plena. O crescimento dos segmentos evangélicos neopentecostais – em especial nas últimas quatro décadas, com a prosperidade multinacional da Igreja Universal do Reino de Deus – elevou a tensão do confronto. E os casos de intolerância não param de crescer. “Estamos assistindo à sistematização desses ataques, com mais agressões e quebra de terreiros. A conversão de traficantes, que muitas vezes se tornam evangélicos na prisão, acirrou ainda mais a violência e a demonização das religiões de matriz africana”, explica o professor e babalaô Ivanir dos Santos, doutor em História Comparada.
Desde 15 de maio de 1997, a Lei Federal 9.459 tornou crime a discriminação religiosa.
Traficantes evangélicos
Na escalada de violência, novos personagens levam o terror a regiões mais pobres do Rio. Traficantes que controlam favelas são evangelizados a partir das cadeias e estendem a opressão às comunidades populares por toda a Região Metropolitana da segunda maior cidade do País. “O morro agora é de Jesus. Você vai ter de sair”, avisou um bandido a uma mãe de santo que mantinha antigo terreiro no Complexo do Lins, Zona Norte da cidade. Ele simplesmente bateu à porta dela e, acompanhado de uma quadrilha, expulsou a moradora, que foi-se embora para a Baixada Fluminense, praticamente só com a roupa do corpo.
A ocorrência, no fim do inverno de 2016, não foi fato isolado. O ato prosaico de vestir branco – cor usada por pais e mães de santo e outros fiéis das religões afro-ameríndias – tornou-se um risco em determinadas regiões. Recentemente, um vídeo captado num dos morros do bairro disseminou revolta pelas redes sociais. Homens armados ordenavam que uma líder espírita destruísse o próprio templo, no Dendê (maior favela da região), enquanto comparsas se divertiam entre insultos e piadas.
Na Baixada, foram documentados vários casos de depredação de terreiros, principalmente em Nova Iguaçu, em 2017. A polícia concluiu que o grupo de vândalos era formado por traficantes evangélicos que atuam na cidade. A ordem para os sucessivos ataques teria partido de criminosos presos, convertidos nas penitenciárias.
Em outubro foi lançado por um candomblecista carioca o aplicativo “Oro Orum – Axé eu respeito”, que busca mapear instituições de matriz afro para formar uma rede contra o preconceito. Em seus 15 primeiros dias a ferramenta teve 1,3 mil downloads e recebeu 343 cadastros de terreiros.
“Essa brutalidade é antiga. Vem desde pelo menos 1988, quando os primeiros ataques foram registrados”, relata a jornalista e pesquisadora Rosiane Rodrigues, autora do livro “Nós” do Brasil, e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (UFF). E no caldo de intolerância da segunda década do século 21, a pesquisadora enxerga mais truculência e organização na violência. “O que estamos presenciando são ataques terroristas”, adverte. Rosiane qualifica a postura de alguns grupos neopentecostais como “fundamentalismo religioso cristão”, com o objetivo principal de sufocar os movimentos de matriz africana.
Rosiane lembra ainda que os espíritas são minoria no cenário religioso do País: segundo o Censo de 2010, 1,7% dos brasileiros (ou 3,5%, se somados os kardecistas). Ela explica que, abandonada pelo poder público, a parte mais carente da população vive à espera de milagres, e que, por isso, torna-se vulnerável à oratória inflamada dos pastores. Com a entrada de traficantes na equação, a pressão fica ainda maior – o funcionamento de muitas comunidades depende da aprovação dos chefes do tráfico.
“É um dos métodos de racismo mais sofisticados do mundo”, avalia. “As igrejas neopentecostais conseguiram atingir o cerne das demandas dessa população, demonizando tudo que elas representam e apresentando um outro mundo. É uma jogada de mestre”, reconhece Rosiane.
Escalada de ataques
A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, organização fluminense, em parceria com outras entidades de direitos humanos, registra ocorrências relacionadas também a outras religiões. Como o caso de maio de 2012, quando Rafael de Araújo Teixeira, então com 19 anos, que se dizia da Igreja de Cristo, tentou quebrar a marretadas a imagem de uma santa católica instalada pela prefeitura de Águas Lindas de Goiás em uma das ruas da cidade.
Cenas de pessoas invadindo igrejas e quebrando imagens viraram notícia recorrente, ainda que com menos intensidade do que os ataques a terreiros ou a seus frequentadores.
Ivanir dos Santos, um dos responsáveis pelo relatório e integrante da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, acredita que os ataques são cada dia mais evidentes. Ele ratifica que a participação do tráfico de drogas aumentou a dose de violência, além de criar uma forma sistemática de atuação.
“A omissão do Estado, a ascensão política dos representantes desses grupos, faz as pessoas acreditarem que os ataques ficarão impunes. Isso não é religião, é crime”, define Ivanir, sublinhando que “os bons evangélicos também combatem essas práticas violentas”.
Ele aponta, como forma eficaz de combate, uma atuação maior do governo, a criminalização desses atos e mais educação. “A Caminhada da Intolerância Religiosa mostra que juntos somos mais fortes”, constata ele, referindo-se à manifestação que lotou a Praia de Copacabana, no ensolarado domingo de 20 de setembro. “Lá, reunimos todas as religiões que professam a paz. Precisamos nos unir contra esses ataques que crescem a cada dia. Só com muita educação vamos conseguir reverter esse quadro”, aponta.
No Estado do Rio, a Ceplir (Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos) é responsável pela assistência às vítimas de intolerância religiosa, por meio de registro de denúncias, além de apoios jurídico, psicológico e social. De julho de 2012 a dezembro de 2014, foram totalizados 948 atendimentos a 582 usuários, sendo que as denúncias de seguidores das religiões afro-brasileiras representaram 71,15% dos casos. Em 2015, o número de registros no Centro chegou a 512 – 71% deles produzindo vítimas entre os fiéis do candomblé e da umbanda.
Criada em meados de 2017, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos do Rio de Janeiro registrou 12 casos, todos contra religiões de matriz africana, 11 deles de invasão e atentado a casas de santo só na Baixada Fluminense. Juntam-se a esses crimes a difamação, agressão verbal, entre outros problemas. O deputado Átila Alexandre Nunes, à frente do órgão, garante que os números de casos no Rio vêm crescendo e são muito maiores do que os registrados. “É um fenômeno nacional mais evidenciado no nosso Estado”, diz.
“Os ataques têm como alvo principal os frequentadores de terreiros. O discurso de demonização que teve início entre as décadas de 1980 e 1990 está se refletindo hoje.” O secretário atribui também ao uso maciço das redes sociais a exacerbação de pensamentos totalitários, com o aumento de mensagens racistas e de demonstrações de fanatismo religioso.
Nunes pondera que a sensação de impunidade aumenta a agressividade do movimento evangelizador – muitos seguidores apostam no combate a outras religiões como forma de expandir os domínios da sua fé. É a lógica dos traficantes. “O Rio enfrenta uma particularidade em relação a outros Estados, com facções criminosas impondo uma agenda que chamam de evangélica para o controle do território”, explica o secretário. “Não os considero evangélicos porque não vejo religiosidade na inscrição ‘Só Jesus salva’ em um fuzil”, comenta o secretário. Nunes acredita que só o combate aos crimes de ódio e as denúncias por parte das vítimas poderão mudar o cenário.
Exemplo ancestral da propagação do ódio contra as religiões de matriz africana é o livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, do líder da Igreja Universal, Edir Macedo, lançado em 1987. A obra é uma declaração de guerra ao espiritismo. “Os exus, os pretos velhos, os espíritos das crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem nesse mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo”, escreve o autor.
O preconceito não para por aí: “Existem casos em que, por força das circunstâncias, eles chegam a possuir animais para cumprir seus intentos perversos. (…) Na nossa igreja, temos centenas de pais de santo e mães de santo, que foram enganados por espíritos malignos durante anos a fio”, continua a declaração de intolerância.
O bispo-chefe da Universal chega a dizer que a pombagira é uma entidade causadora, em muitas mulheres, de “câncer no útero e de ovário, entre outras doenças”. O fundador da Universal liga ainda a fé afro-brasileira a problemas mentais. “Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno.”
Textos como esse semeiam o ódio e o desrespeito entre evangélicos neopentecostais. O livro continua à venda e é uma das obras do bispo que discorrem de forma difamatória sobre o espiritismo. Essa pequena amostra de discurso revela muito sobre o que leva mais e mais evangélicos a se armar para combater religiões de matriz africana.
DENÚNCIAS
O número de reclamações de preconceito religioso por meio do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, vem se multiplicando desde 2011.