Relâmpago: Revista em casa a partir de 9,90

Por que você deveria se preocupar com o futuro do seu prato

Mudanças climáticas e o uso ineficiente da terra devem afetar a produção de comida – e o padrão alimentar do brasileiro – nos próximos anos. Entenda.

Por Maria Clara Rossini
3 dez 2024, 14h03

A Terra é um cofre natural de átomos de carbono. Eles estão guardados nos seres vivos, que são feitos basicamente desse elemento; e no subsolo, na forma de petróleo e carvão. Sempre que esses combustíveis são queimados, o carbono sai do cofre e preenche a atmosfera na forma de gás carbônico (CO). Ele só volta ao confinamento à medida que é absorvido pela fotossíntese – virando matéria para os caules, folhas e outras estruturas celulares da vegetação. 

Atualmente, o cofre está em déficit. A humanidade não só está queimando combustíveis fósseis em excesso, mas também cortando a capacidade do planeta de rearmazenar carbono, graças às queimadas e ao desmatamento. O excesso de CO₂ e outros gases do efeito estufa acentuam a retenção de calor na atmosfera. A Terra já é 1,45 ºC mais quente do que era antes do século 18, período de industrialização em que houve um aumento das emissões de carbono.

Esse é o mecanismo mais básico por trás das mudanças climáticas. O aumento das temperaturas resulta em um desbalanço ecológico que afeta diretamente o que a humanidade coloca no prato.

Para cada 1°C de aumento na temperatura global, estima-se uma redução de 6% a 8% na produtividade de alimentos básicos, como arroz e trigo. Pode parecer pouco, mas o órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que a produção mundial de comida precisa aumentar 60% até 2050 para suprir as demandas nutricionais e mudanças de dieta de uma população crescente. E não é isso que as projeções climáticas têm indicado.

Aumento das temperaturas, desertificação do solo, redução das chuvas e aumento dos eventos climáticos extremos são só alguns dos efeitos que comprometem a produção de comida, a segurança nutricional e a distribuição justa de alimentos. Segundo a FAO, as mudanças climáticas ameaçam reverter o progresso feito nos últimos anos no combate à fome.

No Brasil não é diferente. “O comprometimento dos serviços ecossistêmicos em função das queimadas e uso inadequado do solo e da água traz uma preocupação grande porque essa é a base da agricultura”, diz Rachel Prado, pesquisadora da Embrapa Solos que coordenou um relatório temático sobre o assunto. “A gente já tem sinais claros de prejuízos econômicos, de perda agrícola e de muita seca em todas as regiões brasileiras”.

Continua após a publicidade

As mudanças climáticas não afetam as regiões e culturas agrícolas da mesma maneira. Locais que antes eram adequados para a plantação se tornaram muito quentes ou secos para algumas culturas, enquanto outras áreas ficam aptas a recebê-las. Os biomas se alteram, o que força uma mudança nas regiões de plantio das principais commodities brasileiras.

Exemplo disso é a região do Matopiba (acrônimo que se refere aos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), uma fronteira agrícola que tem sido desmatada para abrigar a produção de soja e outras monoculturas do Brasil. De acordo com projeções do Relatório Temático sobre Agricultura, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, 74% das terras agrícolas da região serão inviáveis para a produção até 2060, graças às mudanças do clima e desertificação do solo. Essas produções devem migrar para o sul do país, que terá clima mais ameno

Nada disso é novidade para o agronegócio. Um dos focos da Embrapa e empresas de biotecnologia é usar manipulação genética para criar produções resistentes a um clima cada vez mais seco e quente, e a solos mais áridos. 

O problema é que sementes geneticamente modificadas são caras e nem sempre chegam aos pequenos e médios produtores. Enquanto o agronegócio brasileiro foca principalmente na exportação, a agricultura familiar é responsável por abastecer os supermercados – e consequentemente, a sua geladeira – com verduras e legumes. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, estabelecimentos familiares produzem 59% da horticultura no país. Esses produtores estão mais vulneráveis à crise climática, assim como a produção de alimentos frescos.

Continua após a publicidade

“Os pequenos produtores ficam à mercê dessa tecnologia, do manejo e recuperação de terras, e não têm condições de investir dinheiro do próprio bolso para isso“, diz Prado. “Toda essa tecnologia tem sido usada pelos grandes produtores de commodities“.

As mudanças climáticas não afetam apenas a quantidade, mas também a qualidade dos alimentos produzidos. “Ao alterarem o clima, temperatura, ventos etc, as mudanças climáticas acabam alterando também o solo”, diz Taís Alpino, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Fiocruz. “Os alimentos passam a ser produzidos com menor quantidade de zinco e ferro […] Eles perdem os componentes que são essenciais e fundamentais na nutrição”.

Taís Alpino pesquisa os efeitos das mudanças climáticas na segurança alimentar e nutricional dos brasileiros. Para além dos impactos na produção, ela explica que as mudanças climáticas prejudicam o acesso aos alimentos – e podem ser um motor para a desigualdade social.

Pegue a seca extrema de um rio como exemplo. Esse fenômeno diminui não só a disponibilidade de peixes para a alimentação, mas também a renda da população ribeirinha que depende deles. As comunidades locais ficam sem peixe, e os pescadores ficam sem dinheiro para acessar outras comidas. 

Continua após a publicidade

(Retro)alimentação

Paradoxalmente, o principal responsável pelas mudanças climáticas no Brasil é justamente a produção de comida. Segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), o sistema alimentar brasileiro foi responsável por 73,7% das emissões de gases de efeito estufa no país em 2021. Nessa conta entra o custo carbônico do refrigeramento, transporte, desperdício de alimentos e, principalmente, do desmatamento de biomas que dão lugar à monocultura e à pecuária.

O padrão alimentar preconizado por parte do agro está longe de ser saudável ou nutritivo. As monoculturas de milho, soja e trigo servem de base para a produção de alimentos ultraprocessados. A maior revisão de estudos sobre o tema mostra que o consumo desses produtos está associado a 32 problemas de saúde, como obesidade e diversos tipos de câncer. 

Ao dar prioridade para a monocultura, o uso da terra compromete não só a saúde do planeta, mas também o valor nutricional da alimentação brasileira. Uma pesquisa do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) mostra que 25% das calorias diárias consumidas pelos brasileiros vêm de ultraprocessados. Já o consumo de arroz, feijão e farinha caiu 46% nos últimos 15 anos, de acordo com o IBGE.

Compartilhe essa matéria via:
Continua após a publicidade

Essa relação bizarra entre mudanças climáticas e alimentação está por trás de uma sindemia global – um conceito que nasceu da união das palavras “sinergia” e “epidemia”. O termo surgiu em 2019 para descrever as crises mutuamente agravantes de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas. 

“Essa é a grande discussão hoje. As mudanças climáticas favorecem a insegurança alimentar porque impactam os sistemas alimentares”, diz Alpino. “E por outro lado você tem os sistemas alimentares favorecendo as mudanças climáticas. É um ciclo vicioso”.

Proteger o ambiente garantiria a adaptação que a gente precisa para continuar produzindo num planeta mais quente“, diz Aline Soterroni, que participou do relatório e trabalhou com o modelo matemático GLOBIOM-Brazil. Ele leva em conta mudanças do clima, solo e demanda alimentar para fazer projeções. “Nossos estudos mostram que é possível encontrar alternativas viáveis […] continuar exportando e atender a demanda nacional”.

Mas isso não deve ocorrer sem uma mudança no nosso padrão de consumo de proteínas. No Brasil, 45% das áreas cultivadas são destinadas ao pasto, que visa abastecer principalmente o mercado interno de carne bovina. “A carne é o principal vetor do desmatamento da Amazônia. Continuar o consumo de carne como o que a gente tem é insustentável”, diz Soterroni.

Continua após a publicidade

As mudanças desse padrão alimentar são pensadas em diferentes frentes. Há quem aposte que as carnes cultivadas em laboratório, se alcançarem escala, vão ajudar a mitigar o impacto ambiental da criação de gado. Outros pesquisadores se concentram em pesquisas com proteínas análogas à carne, feitas de vegetais ou fungos. Um terceiro caminho que está sendo percorrido são fazendas verticais, que produzem plantas comestíveis dentro da cidade em ambientes controlados.

As dietas, os sistemas alimentares e as mudanças climáticas são todos faces da mesma moeda. A maneira como produzimos e o que comemos têm influência sobre a crise climática – e vice-versa.

Agradecimentos: Matheus Ferreira, jornalista.

Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 5,99/mês
DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
A partir de 10,99/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.