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Quem quer viver para sempre?

Após alguns séculos de vida, nada mais é novidade, nenhum acontecimento é raro o suficiente para ser especial. “Não há coisa que não esteja como que perdida entre incansáveis espelhos."

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
14 nov 2024, 12h00

Esta é a carta ao leitor da edição 469 da Super, de novembro de 2024.

O legionário romano Marco Flamínio Rufo – estacionado na guarnição de Tebas, no Egito – está passando uma madrugada insone e deprê quando um cavaleiro ferido de morte se aproxima na escuridão. Ele pergunta sobre um rio que dá vida eterna a quem bebe de suas águas; Rufo responde que, naquelas redondezas, só existe o Nilo. 

O moribundo conta que vem de uma terra asiática distante, depois do Ganges. De acordo com seus conterrâneos, o tal córrego da imortalidade fica na direção em que o Sol se põe, além da Mauritânia, onde acaba o mundo conhecido. Incapaz de cruzar o Saara a pé rumo ao oeste, o homem morre antes do crepúsculo.

Rufo decide terminar a jornada do oriental ferido. Após semanas de fome, sede e violência no deserto, chega ao riacho e dá uns bons goles no elixir. Em suas margens, a coisa não é lá muito idílica: há uma cidadela abandonada e uma gente miserável vivendo no sopé de suas muralhas – selvagens nus e encardidos, que almoçam carne de cobra e são incapazes de articular qualquer palavra.

O legionário vira amigo de um deles e o batiza de Argos, nome do cãozinho de Ulisses no enredo da Odisseia, de Homero. Um dia, cai uma chuva bonita. Argos chora de emoção e, pela primeira vez, diz alguma coisa: “Argos, cão de Ulisses”. Rufo se choca ao ver que o troglodita sacou a referência, e pergunta o que mais ele sabe sobre o poema. Ele responde: “Muito pouco. Já terão passado mil e cem anos desde que o inventei”. 

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Plot twist: calhou que Argos era o próprio Homero. Como muitos outros, ele havia encontrado o riacho, bebido de suas águas e se tornado imortal. Com o tempo, porém, ele e seus companheiros descobriram que não havia a menor graça na eternidade, e padeceram no niilismo e na letargia.

Após alguns séculos de vida, nada mais é novidade, nenhum acontecimento é raro o suficiente para ser especial. “Não há coisa que não esteja como que perdida entre incansáveis espelhos. Nada pode acontecer uma única vez, nada é preciosamente precário.” Se você passar a eternidade batendo com a cabeça no teclado, você acaba digitando a Odisseia sem querer. É uma obrigação estatística.

Esse é meu resumo deselegante do conto O imortal, de Jorge Luis Borges. Dizem que todo filme-catástrofe começa com um cientista avisando que as coisas vão dar errado. As ideias mirabolantes do Vale do Silício são parecidas: todas começam com algum escritor de cem anos atrás que já via o lado distópico de uma utopia. 

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Na matéria de capa desta edição, o repórter Rafael Battaglia conta os esforços de bilionários do setor tech para viverem para sempre – que incluem um pai injetando plasma sanguíneo de seu próprio filho. Devaneios assim vão na contramão de pesquisas que põem em xeque a possibilidade (e a necessidade) de estender nossa vida arbitrariamente. Será que o foco não deve ser qualidade em vez de quantidade?

A facilidade com que caímos no caô da longevidade é uma demonstração óbvia do quanto é difícil se entender com a morte. Mas a verdade é que bom mesmo é ser mortal. Na contramão do tédio repetitivo que acomete os selvagens eternos de Borges, há um montão de coisas na sua vida que só ocorrerão uma ou duas vezes.

Ainda bem: é ótimo ter pelo que ansiar. Nossas memórias especiais só são especiais porque são únicas. Da minha parte, é um prazer dividir meu lugarzinho no espaço e no tempo com a equipe da Super. Sei que essa combinação de pessoas não vai se repetir tão cedo no Universo.

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Bruno Vaiano
Editor-chefe
brunoalmeidavaiano@abril.com.br

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