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Um vazio no rock

Pacifista armado, idealista ganancioso, moralista drogado? Kurt Cobain se conhecia bem demais para amar a si mesmo

Por Pedro Só, Revista Bizz
Atualizado em 5 abr 2019, 18h00 - Publicado em 5 abr 2019, 18h00

Em março de 1996, a morte de Kurt Cobain estava prestes a completar 2 anos. A reportagem de capa da revista Bizz, escrita por Pedro Só, trouxe a história de toda a trajetória do vocalista do Nirvana – com todos os seus obstáculos e contradições. Leia o texto abaixo na íntegra.


Em 5 de abril 94, Kurt Donald Cobain, 27 anos, trancou-se no quarto de cima da garagem de sua mansão Seattle e estourou a cabeça com um tiro. No sangue do líder do Nirvana havia heroína suficiente para matá-lo três outras vezes. Dia 8 de abril, quando um eletricista encarregado de armar um sistema de alarma na casa encontrou o corpo, Wendy, a mãe de Kurt, esbravajou, misturando raiva e tristeza:”Eu disse a ele para não se juntar àquele clube estúpido!”

Ela se referia à triste confraria de ídolos que morreram jovens. Se autodestruíram no turbilhão de armadilhas do glamourizado estilo de vida rock & roll. Elvis Presley, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, John Bonham, Keith Moon, Bon Scott, Sid Vicious, Johnny Thunders, Gram Parsons… A lista vai longe.

Kurt é indiscutivelmente o mito de sua geração. Assim como se dizia antigamente a respeito do rei do tango Carlos Gardel, o finado Kurt está cantando cada vez melhor do que nunca.

Morreu por quê? Viveu pra quê? Uma das biografias de Kurt Cobain, escrita pelo jornalista Christopher Sandford, tenta ajudar a explicar a vida e a morte do líder do Nirvana. Rico em investigação e pesquisa junto a familiares do cantor, o livro não destrói o mito, mas conta a história de um artista muito talentoso e igualmente frágil, patologicamente deprimido desde menino.

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Assim como a biografia que Ruy Castro fez de Garrincha expôs o alcoolismo do jogador, o trabalho de Sandford carrega no retrato de Kurt como uma personalidade auto-destrutiva que consumiu drogas vorazmente a vida inteira.

Mesmo controlando a carreira com punhos e inteligência de Mick Jagger, Kurt passou poucos dias de seus últimos seis anos longe da heroína. Já na primeira turnê européia do Nirvana, Kurt sofria um colapso em pleno palco de Roma. Surtou, quebrou microfones, ameaçou acabar com o grupo e quase não chega vivo a Londres, de onde saiu consagrado como sensação underground.

Sua saúde psíquica poderia ter lhe custado a vida antes mesmo que viessem as tais “pressões do sucesso” e o conflito entre idealismo punk e a vida de milionário do rock.

Nascido na pequena Aberdeen, costa oeste dos Estados Unidos, a 20 de fevereiro de 67, Kurt foi uma criança super protegida. Tímido, tinha bronquite e costumava passar os dias desenhando, sozinho. Ou quase: ao seu lado, o tempo inteiro, estava Boddah, um companheirinho invisível que ele havia inventado (e a quem, muito tempo depois, Kurt endereçaria seu bilhete de despedida), como aquele tigrinho amigo do Calvin.

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Aos sete anos, começou a tomar, por prescrição médica, anfetaminas. Depois, para contrabalançar sua hiperatividade, foram receitados ao garoto sedativos. O metabolismo de Kurt iniciava então uma longa história de joão-bobo na mão das substâncias químicas.

Kimberly, a irmãzinha, dava menos trabalho, mas mamãe Wendy tinha xodó é pelo lourinho que corria pela casa batendo tambor, tomava uma pílula e ia dormir feito anjinho. Ela encorajava os dotes artísticos do filho e protegia-o das atividades físicas.

Em 76, porém, depois que resolveu se separar, Wendy só aguentou ficar três meses com Kurt. Revoltado com o fim do casamento dos pais, o garoto tinha passado o verão inteiro batucando desesperadamente – e não aceitara de maneira nenhuma o novo namorado da mãe. Passado adiante para papai Donald, Kurt jamais se recuperou do baque.

Sua vida só voltou a ter sentido quando um tio lhe deu uma guitarra em seu aniversário de 14 anos. Amor à primeira vista. Intratável na casa do pai e na da mãe, logo Kurt estaria se misturando com o pessoal dos Melvins, banda ícone do grunge que influenciou profundamente o frontman do Nirvana.

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Admitido no clube dos doidões da cidade, ele em seguida conheceu Krist Novoselic. “Que tal um fumo?”, perguntou o grandalhão, iniciando a amizade que mudou o rock. Apresentado ao punk rock e às drogas, Kurt logo estaria formando bandas. A Fecal Matter (matéria fecal), com Novoselic, daria origem ao Nirvana.

Aos 18 anos, Kurt largou a escola sem completar o segundo grau e tomou heroína pela primeira vez. Com os amigos, pichou “Deus é gay” numa igreja de Aberdeen, tornando-se persona non grata na área.

Hora de mudar para a vizinha Olympia, cidade não muito maior, porém efervescente culturalmente. Instalado no apartamento da namorada Tracy Marander, Kurt ficava oito horas por dia com a guitarra compondo, anfetaminadíssimo. A gastrite que o atormentou até o fim dos dias e que ele usou como desculpa para tomar heroína começou nesta época.

Graças a um empréstimo de Tracy, o Nirvana gravou uma demo com Jack Endino. O produtor indicou o grupo para a Subpop e, no primeiro encontro com a gravadora, um sóbrio Kurt disse que o trio era a melhor coisa surgida desde os Beatles.

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Impressionou. Logo viria o primeiro single, “Love Buzz” e o álbum Bleach, cujos vocais foram gravados entre vidros e mais vidros de xarope com Dramamine.

Em 90, chegou a cocaína, droga que faltava em sua vida. No ano seguinte, nascia uma estrela. Kurt passou a querer tratamento especial nas viagens, reclamava se o uísque não era Glenfiddich, mas continuou absolutamente genial e ácido em tudo o que expressava.

Depois do contrato milionário com a Geffen, mergulhou na heroína. Dormia a toda hora em qualquer lugar, até no meio de sessões de foto.

Em 92, a ironia das ironias, o Kurt que mergulhava nos braços dos fãs, proclamando igualdade entre artista e platéia, exigiu 75% de tudo o que o Nirvana ganhava (com efeito retroativo! – ou seja, tornando-se credor milionário de Novoselic e Dave Grohl).

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Cheio de armas e violento contra Courtney Love, seu grande amor, o hiper-sensível Kurt a obrigou a chamar a polícia duas vezes para contê-lo. Ele ainda sofreria duas overdoses em 93. Segundo o produtor de In Utero, Steve Albini, a única coisa que o tirava da apatia era a filha Frances. Mas logo viria a tentativa de suicídio com Rohypnol, em Roma.

Kurt não funcionava mais como artista, marido, pai… Numa tática antivício chamada tough love, amor duro, foi posto contra a parede por Courtney e todos os que o amavam. Foi para uma clínica em L.A., fugiu. Teria perguntado a um traficante pouco antes de 5 de abril: “Onde estão meus amigos agora?”

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