Vestibular: um modelo de seleção fracassado
Provas de múltipla escolha conteudistas reforçam a ideia de que inteligência é sinônimo de memorização, e acabam filtrando os candidatos por renda. Entenda como novos projetos de ensino superior no Brasil tentam driblar esses problemas.
Na manhã de uma segunda-feira de novembro, logo após o primeiro dia do Enem de 2023, Caetano Veloso apareceu de pijama em um vídeo no Instagram tentando responder à questão 23, uma pergunta de interpretação de texto que citava duas músicas suas: “Alegria, Alegria” (1968) e “Anjos Tronchos” (2021). “Quando li, achei que eram todas as alternativas”, disse Caetano – que acabou preferindo a D (o gabarito indicava B).
A cena lembra uma entrevista de 2012, com o pedagogo Rubem Alves, que foi professor e pró-reitor da graduação da Unicamp. “O vestibular criou na cabeça de todo mundo que existe uma resposta certa mesmo”, ele disse à revista Cult, dois anos antes de morrer.
“As leis de Kepler você pode decorar em dez minutos. Mas Kepler levou anos para chegar até elas. O processo de aprendizado é isto: não é a busca pelas respostas certas, mas o processo de pensar.”
Rubem considerava o vestibular uma aberração, e não julgava possível reinventar esse modelo de seleção para torná-lo realmente justo. Ele não baseia essa opinião só na desigualdade social que essas provas perpetuam (é óbvio que jovens mais ricos são mais bem preparados e entram em instituições mais renomadas – um filtro cruel no Brasil, onde as melhores universidades são as públicas e gratuitas).
Rubem argumenta que os vestibulares têm uma consequência mais sutil: eles forçam as escolas a montarem seus currículos e sistemas de avaliação com o objetivo de treinar os alunos para esses testes, e não com o fim de educar.
A sociedade, então, passa a achar que inteligência é sinônimo de gabaritar uma prova, algo com que ninguém dentro das próprias universidades concorda. “Veja bem: se eu fizer vestibular ou Enem, serei reprovado. Todos os reitores das universidades seriam reprovados”, disse Rubem na mesma entrevista.
Na cabeça dos pais mais durões, educação é sinônimo de memorização. Diretores e professores exaltam os bons alunos – é praxe pendurar cartazes no começo do ano com a lista de aprovados no ensino superior, sem consideração pela violência psicológica infligida aos supostos maus alunos.
Esses “maus alunos” podem, é claro, serem atletas, artistas ou chefs de cozinha geniais. Ou, simplesmente, pessoas que ainda não sabem o que querem da vida – algo compreensível aos 17 anos.
É de se admitir que o Enem foi um avanço em relação aos vestibulares tradicionais (que, hoje, são usados apenas em algumas poucas universidades públicas, como as estaduais paulistas, a UFPR, a UFRGS e a UFU). Primeiro porque o aluno faz uma única prova para concorrer a várias instituições, o que amplia um bocado o leque de opções.
Mas também porque o Enem se esforça para ser mais interpretativo que conteudista: várias questões são autossuficientes; dependem só do que está escrito na prova, e não de conhecimento prévio extremamente específico.
Mesmo assim, ainda se trata de uma prova exaustiva de múltipla escolha, acompanhada de uma redação em moldes muito restritivos – que mede mais o quanto você treinou para o Enem do que sua real capacidade de se expressar em português. Acordou em um dia ruim? Tente outra vez ano que vem.
Tem solução?
Implantar um processo seletivo do zero foi uma das tarefas recentes do matemático Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio.
Até 2023, não havia cursos de graduação por lá – o instituto se dedicava exclusivamente à pesquisa e à pós. Mas, em 2024, eles vão tirar do papel uma graduação de matemática gratuita sediada em um galpão de 10 mil m² na zona portuária revitalizada do Rio de Janeiro.
Os 100 alunos anuais do IMPA Tech terão acesso a uma grade multidisciplinar e vão passar o dia cercados de startups em um novo hub tecnológico chamado Porto Maravalley, na zona portuária revitalizada do Rio.
O IMPA já organiza há 20 anos a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), e muitas empresas manifestaram interesse em se aproximar dos competidores ao longo dos anos.
Para Marcelo e seus colegas, ficou óbvio: “Há uma demanda por jovens supertalentosos, nós temos acesso a eles e a Olimpíada funciona como um processo seletivo de âmbito nacional”.
Na versão final do edital, o IMPA optou por aceitar medalhistas de outras Olimpíadas do ensino básico – física, química e informática –, e deixou 20 das 100 vagas para candidatos oriundos do Enem. Essa, porém, é só a primeira fase do processo seletivo: na segunda, há dinâmicas em grupo e entrevistas individuais.
Isso ajuda a garantir a afinidade dos selecionados com o curso, já que esse é um problema grave em outras instituições. Por exemplo: 54% dos matriculados em Matemática Aplicada e Computacional na USP abandonam o curso antes do final (para comparar, a média da USP como um todo é 17%).
Esse número é sinal de muita coisa. Em primeiro lugar, a maioria dos colégios brasileiros não prepara os alunos suficientemente bem. Também é óbvio que as universidades não fornecem condições de permanência suficientes para seus alunos em situação social frágil.
Dito isso, não dá para ignorar a parcela de culpa do processo seletivo: provas conteudistas excluem jovens com talento e dedicação reais em detrimento de outros que até possuem mais capital cultural ortodoxo por conta da renda, mas talvez não tenham outros traços importantes para uma certa graduação. Não existe bala de prata contra esse problema. Mas entrevistar os candidatos é um bom passo.
O Centro de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) – instituição sediada em Campinas (SP) que construiu e opera o acelerador de partículas Sirius e abriga vários laboratórios de ponta – está numa situação similar à do IMPA.
Eles implantaram recentemente a Ilum – uma escola de ensino superior que seleciona 40 candidatos anuais, metade deles da rede pública, para um curso interdisciplinar gratuito, em tempo integral, destinado a formar cientistas.
A Ilum, que está indo para sua terceira turma, também usa um processo seletivo misto: a nota do Enem e uma carta de manifestação de interesse servem para pré-selecionar um grupo de 150 candidatos, entrevistados um por um.
Adalberto Fazzio, diretor da Ilum, admite que é mais difícil implantar um sistema de entrevistas na realidade de uma universidade pública, em que há muito mais vagas (no Instituto de Física da USP, por exemplo, são mais de 200 por ano).
Mesmo assim, para ele, valeria tentar. “Vamos fazer entrevistas e ver quais desses alunos têm aptidão e desejo de fazer ciência. Talvez você selecione metade desses alunos. Podemos pensar que isso é um problema porque diminui o número de vagas. Mas há um dado inconteste, que é o da evasão altíssima.”
Um vestibular tradicional, no fim das contas, é um recorte de renda: a USP só alcançou a meta de ter mais de 50% dos ingressantes oriundos de escolas públicas em 2021, sendo que 83% do país estuda nelas. Se o objetivo é encontrar talento, com certeza há peneiras melhores que o dinheiro.