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A arte de voar sem sair do chão

A bordo do simulador de vôo mais moderno do planeta, até nosso repórter pode ser transformado em um piloto de avião.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 Maio 2001, 22h00

Rafael Kenski

Eu não tinha a menor idéia de como se dirige um avião. Mesmo assim, estava prestes a assumir o comando de um Airbus A320, aeronave capaz de carregar 150 passageiros e atingir uma velocidade de mais de 900 quilômetros por hora.

Só não era uma missão suicida porque eu jamais sairia de dentro daquele galpão, próximo do Aeroporto de Guarulhos, São Paulo. Tinham acabado de instalar ali o impressionante maquinário que compõe um simulador de vôo de última geração – e lá estava o único jornalista brasileiro convidado a sentir na pele como se opera toda aquela fantasia tecnológica: eu.

A garantia de que eu não passaria vexames maiores estava em meu anfitrião e co-piloto Chris Fauquier, diretor do Centro de Treinamento da América do Sul da CAE, empresa canadense que domina 80% do mercado mundial de simuladores de vôo profissionais. O aparato todo, um monstro metálico de 13 toneladas, é essencialmente uma cabine suspensa no ar por mecanismos hidráulicos que reproduzem os movimentos da aeronave. Todos os comandos são processados por uma parede de computadores com mais de 10 metros de comprimento, contendo os mesmos instrumentos e sistemas de um avião de verdade. Só faltam mesmo as aeromoças me servindo cafezinho e os passageiros pedindo para conhecer a cabine de comando – até o cheiro do ar condicionado é idêntico.

Os instrumentos de controle são basicamente três: o manete, alavanca à minha direita que regula a potência das turbinas; o painel à frente que indica a velocidade, a altitude e a inclinação da nave; e o joystick à esquerda (que os pilotos de verdade chamam de sidestick) que controla a direção propriamente dita, servindo para deslocar o avião tanto para cima quanto para os lados.

Não tem videogame que se compare a isso. Assim que eu sento na poltrona de piloto, aparece na minha cara, como numa imensa tela de cinema, a paisagem 100% carioca: lá adiante o Pão de Açúcar e, logo abaixo, a pista de decolagem do Aeroporto Santos Dumont. Arrepio na espinha. Vai começar a aventura. Chris destrava os freios e estende os flaps – aquelas extensões das asas que dão maior sustentação ao avião e permitem que ele voe em velocidades baixas. Quando eu empurro o manete para a frente, a nave dispara na pista – e o coração dispara no peito. Qualquer suspeita quanto ao realismo da simulação se desfaz imediatamente, pois a força da aceleração me faz grudar na poltrona. O barulho do motor é ensurdecedor. Até a trepidação provocada pelas ranhuras no asfalto é reproduzida pelo simulador.

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A missão, em si, é simples: vamos apenas sobrevoar a Baía da Guanabara e retornar ao Santos Dumont. Ainda assim, exige toda a concentração mental de que sou capaz – sem contar que o simulador me engana a tal ponto que me sinto, de fato, como se a minha vida e a de meu co-piloto estivessem em risco. Para quem dirige apenas automóveis, é preciso se acostumar a medir a velocidade em nós, em vez de quilômetros por hora (1 nó = 1,85 km/h), e em pés , em vez de metros (1 pé = 30,5 cm). Por isso mesmo levo um susto quando ouço a voz de Chris ordenar: “Quando chegar a 140 nós, decole e suba em um ângulo de 15 graus”.

Decolar é fácil: a essa velocidade (cerca de 260 km/h), o avião quase levanta sozinho. Complicado mesmo é controlá-lo durante o vôo. Apesar de o painel indicar o ângulo de subida, pelo seu próprio tamanho a nave demora mais que um carro para responder a cada comando. O resultado é que acabo subindo ora mais, ora menos do que deveria. Já estou bem atrapalhado com isso quando ouço vozes digitalizadas avisando para recolher o trem de pouso e levantar os flaps. Mal tenho tempo de obedecer e Chris grita: “Esquerda! Vira para a esquerda!” À frente, reaparece o Pão de Açúcar, só que agora bem pertinho. Viro com cuidado, para não perder ainda mais o controle, e a gigantesca massa rochosa passa poucos metros à nossa direita.

Não dá nem para dizer “ufa!”, pois o sistema de alerta dispara uma sineta e acende o painel. A ordem é para ir mais devagar: existe um limite de velocidade para cada faixa de altitude e eu, sem saber, já o estava ultrapassando.

Apesar de toda a minha dificuldade, quem é do ramo considera o A320 fácil de dirigir. Nas aeronaves convencionais, os comandos estão ligados diretamente por cabos ou sistemas hidráulicos às demais engrenagens. Nessa aqui, as instruções são primeiramente processadas por computadores e depois enviadas ao resto do aparelho. O Airbus A320 foi o primeiro avião comercial a utilizar essa tecnologia, batizada fly-by-wire (“voar por fios”) e desenvolvida originalmente para os caças americanos. A principal vantagem desse sistema é que ele proíbe manobras perigosas – como subidas bruscas ou velocidades muito altas –, além de detectar qualquer equipamento defeituoso e avisar o piloto por sinais no painel. Os processadores também calculam, a cada segundo, pequenos ajustes no movimento do avião para mantê-lo estável.

Depois de alguns minutos de vôo, eu finalmente começo a me sentir um pouco mais à vontade com os controles da cabine. Pena que já está na hora de trazer a nave de volta ao Santos Dumont. Para fazer uma curva é preciso, obviamente, deslocar o sidestick para o lado: isso inclina as asas do avião e faz com que ele comece a se virar. Isoladamente, essa manobra, no entanto, faria com que a nave desviasse de lado, como se estivesse derrapando. O problema só é corrigido quando aciono os pedais que movimentam o leme na cauda do avião. Para não sair literalmente pela tangente, um triângulo no painel indica se a curva está sendo feita da maneira correta – difícil é achar o dito cujo no mar de instrumentos que cercam a cadeira do comandante. (Nessas horas é que damos valor a um bom co-piloto!)

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Assim que o aeroporto passa à nossa esquerda, nos preparamos para pousar acionando novamente os flaps e o trem de pouso. No caminho está o Morro de Santa Tereza e o plano de vôo nos obriga a sobrevoá-lo a uma altitude de 1 300 pés (396 metros). Só que o novato aqui passa 50 metros abaixo desse limite, fazendo as vozes digitalizadas voltarem a soar na cabine: Don·t sink! (não desça!)… Pull up! (suba!).

Tanto insistiram nesse duplo alerta que eu acabei numa altitude elevada demais para me aproximar da pista de pouso. Se faltava alguma prova de que eu não passava de um inepto amador, insisti em aterrissar mesmo intuindo que estava alto demais para isso. Atingimos o solo com tanta força que o avião acabou quicando na pista e só foi pousar mesmo alguns metros depois. E isso porque Chris teve o sangue frio de puxar o manete, fazendo as turbinas funcionarem no sentido contrário, e acionar os freios, pisando nos pedais. Eu mesmo, de tão adrenalinado, já estava fora de combate.

“Numa situação real, um pouso desses talvez quebrasse a cauda ou o trem de pouso”, diz Alessandro Pinho, chefe de Engenharia e Manutenção da CAE e a única pessoa ali que sabia pilotar um A320 de verdade. Em uma sessão de treinamento normal, o simulador poderia paralisar o vôo a cada ação errada do piloto, evitando pousos assustadores como o nosso e abrindo uma pausa para a análise do erro. Dessa vez, o recurso havia sido desligado para que voássemos sem interrupções. Ele é essencial, porém, para o treinamento dos pilotos – e ajuda a entender por que os simuladores foram inventados logo após a aviação. No início, aprendia-se a pilotar no próprio avião, de maneira gradativa: primeiro sem sair do chão, depois em pequenos saltos e, por fim, em vôos mais longos. O método causava tantos acidentes que, já por volta de 1910, apareceram os projetos mais primitivos de simulador.

Um deles era apenas a metade de um barril, suspensa sobre uma plataforma, que o piloto deveria mover manualmente para deixar paralela ao horizonte. Desde então, aviões cortados ao meio e versões mais simples de cabines suspensas, como a da CAE, introduziram incontáveis novatos para a arte de voar. Somente nas últimas décadas esses sistemas passaram a incluir televisões, computadores e outros efeitos especiais que deram aos simuladores o grau de realismo disponível hoje – originando, inclusive, uma tecnologia famosa e fascinante, mas ainda no berço, chamada “realidade virtual”.

Antes da minha despedida, repetimos a viagem com Chris no comando – afinal, eu também quero testemunhar como uma pessoa que realmente sabe operar a máquina dá conta do recado. Mal eu suspeitava do show, digno de Lucas e Spielberg, que me esperava. Primeiro, Alessandro muda a configuração da paisagem. Desfilam à minha frente, em poucos segundos, céus que vão da aurora, à alvorada, à noite estrelada. Dá até para fazer nevar em pleno Rio de Janeiro. Mas como não conseguimos encontrar o aeroporto no meio da escuridão, temos que trazer o Sol de volta. Parece magia, mas, com o apertar de um botão, o velho astro-rei reaparece brilhando no firmamento e podemos, enfim, pousar no aeroporto carioca – para só então descobrir, com alguma surpresa, que nunca saímos de um galpão na periferia de São Paulo.

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rkenski@abril.com.br

Mar de botões

A cabine do Airbus A320 não é brincadeira

1. Painéis superiores

Reúnem os controles das luzes, do ar condicionado e dos sistemas hidráulicos e elétricos. Também acionam os equipamentos de emergência em caso de pane ou incêndio

2. Sidestick

É a direção. O Airbus foi o primeiro avião a trocar o velho manche por um joystick como o dos videogames. Seus botões também desligam o piloto automático e ativam o rádio

3. Pedais

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As duas peças movem o leme na cauda do avião, que garante o controle da nave nas curvas e evita que ela saia de lado, como se estivesse “derrapando”

4. Mostradores

Os pilotos não tiram os olhos dessas telas. À esquerda, dezenas de sinais descrevem a situação do avião em termos de altitude, velocidade, inclinação, desvio em relação à rota prevista e configuração do piloto automático. A tela da direita indica o caminho a seguir e onde, nesse trajeto, se encontra o avião

5. Monitor das turbinas

A tela à direita indica o estado das turbinas e alerta se algum sistema essencial pifar. À esquerda estão bússolas e altímetros, que funcionam até em caso de falha elétrica

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6. Computador e manete

O teclado e a tela controlam os computadores, que são usados para definir a rota, acionar o piloto automático, fazer o avião pousar sozinho e configurar as demais funções eletrônicas. Logo abaixo estão os controles de rádio. O manete é uma alavanca que regula a potência das turbinas, funcionando como acelerador.

7. Painel inferior

Aqui estão os mecanismos que comandam os flaps, o trem de pouso, os freios de estacionamento e sistemas para a redução de velocidade durante o vôo

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