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A oficina do sabor

João Luiz Guimarães Os cientistas ainda estão longe de fabricar em laboratório pratos refinados e banquetes pantagruélicos. Mas já são capazes de reproduzir o gosto e o aroma existente em boa parte dos alimentos naturais. O aparelho que você vê aí em cima parece um liquidificador. Mas é uma boca artificial. Não tem lábios, não […]

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Atualizado em 31 out 2016, 18h37 - Publicado em 30 nov 1997, 22h00
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  • João Luiz Guimarães

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    Os cientistas ainda estão longe de fabricar em laboratório pratos refinados e banquetes pantagruélicos. Mas já são capazes de reproduzir o gosto e o aroma existente em boa parte dos alimentos naturais.

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    O aparelho que você vê aí em cima parece um liquidificador. Mas é uma boca artificial. Não tem lábios, não sorri, não morde nada nem ninguém. Apenas mastiga, mastiga, mastiga. E o mais curioso: nunca engole o que mastigou. A boca artificial foi inventada pela equipe do bioquímico Terry Acree, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, para ajudar nas pesquisas sobre o paladar humano, com o objetivo de criar sabores artificiais. Ela simula o processo da mastigação e reproduz o mesmo ambiente que existe dentro da sua boca quando você come: a temperatura, o grau de acidez e até a lubrificação, com uma saliva artificial. Seu nome oficial é simulador retronasal de aromas.

    Uma laranja como esta aqui ao lado entra nessa engenhoca e, lá, transforma-se numa verdadeira colcha de retalhos, formada por um monte de substâncias de nome esquisito. São essas substâncias, como os terpenos, os ésteres e os aldeídos, que fazem com que a fruta tenha o sabor que a sua boca percebe como laranja. Agora você vai conhecer de perto essas discretas personagens que governam o seu paladar.

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    Em busca do clone do gosto

    Gosto se discute. E muito. Na verdade, melhor seria afirmar: sabor também se discute. O que chamamos de sabor é a soma do que é percebido como gosto pela língua e como aroma pelo nariz (veja no infográfico à direita). No mundo inteiro, grandes empresas e centros universitários de pesquisa estão empenhados em recriar os 5 000 sabores identificados na natureza. Já existem 2 000 disponíveis no mercado, reproduzíveis em laboratório.

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    Alguns dos ingredientes usados para clonar sabores já vêm prontinhos da natureza. Outros têm que ser fabricados artificialmente, pois seria muito difícil, ou caro, utilizá-los em estado original. Nem todas as substâncias naturais, por sua vez, precisam ser originárias do produto cujo aroma ou gosto se quer reproduzir. Podem vir de outras fontes. O eugenol, uma substância existente no cravo-da-índia, ao sofrer uma oxidação, reação química simples que consiste em acrescentar oxigênio à composição da substância, vira vanilina, um componente do aroma da baunilha.

    Mas a vanilina não pode ser considerada um produto completamente artificial. Os técnicos apenas pegaram o que já existia na natureza e deram uma mexida, de leve. Artificiais, mesmo, são as substâncias inventadas em laboratório, como o aroma de fantasia conhecido por tutti-frutti ou o sabor da Coca-Cola.

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    Embora o senso comum imagine que as coisas naturais são melhores do que as artificiais, na realidade nem sempre é assim. Há substâncias artificiais que não causam dano à saúde, e há naturais que são perigosíssimas. “Às vezes, é apenas uma questão de dosagem”, afirma o químico aromista Moisés Galano. “A noz-moscada, uma especiaria largamente usada na culinária em pequenas porções, se ingerida inteira pode até matar, porque possui muita miristicina, uma substância tóxica.” Outra confusão muito comum é a de nomenclatura. Aroma é a parte volátil, ou seja, os gases que se desprendem dos alimentos sólidos ou líquidos, sentidos pelo nosso nariz. Por isso a palavra é usada tanto na indústria de alimentos como na de perfumes, embora os perfumistas prefiram o termo fragrância.

    Brincando de molécula

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    “O paladar sofre a influência de uma quantidade enorme de fatores”, esclarece Maria Aparecida Azevedo, do Laboratório de Análise Sensorial da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas. “Além do aroma, que é fundamental, também participam da formação do gosto a cor, a temperatura, a consistência e até mesmo aspectos emocionais associados a determinados alimentos.”

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    Agora imagine que você é tão pequeno que consegue identificar cada molécula dos objetos ao seu redor, isto é, os tijolinhos que compõem tudo o que existe. Uma gota de água se apresentará aos seus olhos como um mosaico enorme composto por unidades de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Qualquer substância diluída nessa gotícula aparecerá para você como um tijolo diferente, misturado à estrutura do mosaico.

    Conseguiu imaginar? Pois é isso que acontece quando você mastiga um alimento. As moléculas responsáveis pelo sabor se diluem na água da saliva e flutuam como vapor até se prenderem na mucosa olfativa de seu nariz. Ali, células especializadas “enxergam” as moléculas e transferem para o cérebro a informação “sabor X”. As crianças sabem disso tudo empiricamente. Quando as mães as obrigam a comer uma verdura desagradável, elas apertam o nariz para não sentir o gosto. Lembra-se?

    Microrganismos com sabor de tecnologia

    A biotecnologia é outra personagem decisiva na produção de aromas. No Laboratório de Bioquímica da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade de Campinas (Unicamp), um outro conjunto de pesquisadores chefiados pelos professores Gláucia Pastore e Young Park conseguiu isolar, em um grupo de 2 500 amostras, quatro cepas de leveduras, uma espécie de fungo usado para fermentar substâncias químicas e produzir aromas naturais.

    Um exemplo é o cheiro do queijo gorgonzola, que graças à ação das leveduras pode ser obtido em duas semanas de fermentação e acrescentado diretamente no produto final. Pelo método tradicional, é necessário esperar alguns meses até que o fungo habitualmente usado no processo complete sua ação sobre o queijo de modo a produzir o sabor desejado. “A mudança de patamar é só um começo”, diz a pesquisadora. “Nos próximos anos haverá um crescimento significativo dessa área no Brasil, como já ocorre no Japão e em alguns países europeus, pois trata-se de um processo totalmente natural de obtenção aromática. A indústria de alimentos vai se sofisticar bastante.”

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    A previsão deve ser levada a sério, considerando-se de onde partiu. A equipe chefiada por Young e Gláucia adquiriu experiência em biotecnologia alimentar desenvolvendo, há quase dois anos, um novo e badalado açúcar natural de baixa caloria, o New Sugar, produzido a partir da fermentação do açúcar comum. Adivinhe qual o agente catalisador desse processo. Sim, um fungo. Ele foi batizado com o nome científico de Aspergillus niger.

    Como o paladar e o olfato humanos não podem ser totalmente reproduzidos em toda a sua complexidade, aromistas profissionais, que além de possuir formação em química ganham a vida alugando o próprio nariz aos laboratórios, são contratados a peso de ouro pelas grandes empresas do ramo, como a americana IFF e as suíças Firmenich e Givaudan. Essas empresas, quase desconhecidas pelo grande público, são responsáveis por cerca de 80% de todos os produtos vendidos no Brasil que têm gosto e cheiro, de chicletes a sabonetes.

    Sabor que pesa no bolso

    O que explica a enorme diferença de sabores disponíveis no mercado é a maior ou menor fidelidade à composição química dos aromas. Enquanto na laranja do nosso exemplo eles eram sessenta, em outras frutas, como o morango, chegam a 850. O brasileiríssimo aroma de café torrado é mais complexo: há 1 500 moléculas no seu sabor.

    Quanto mais perto os cientistas conseguirem chegar da fabricação do cardápio completo das substâncias naturais, mais próximos estarão do sabor natural. “O aroma de banana possui cerca de 200 substâncias, mas pode-se reproduzi-lo com cinqüenta ou com 190”, afirma Milton Ferreira, diretor da divisão de aromas da Firmenich, com sede em São Paulo. “Depende do grau em que o cliente deseja se aproximar do sabor original da fruta, e de quanto pretende investir, pois há um aumento proporcional no custo final do aroma”. Ele ainda adverte para outro desafio: “Não podemos nos esquecer da conservação. Os aromas devem ser capazes de suportar o fogo, o congelamento e a estocagem”. Tudo isso para depois sumir dentro da boca. A boca que mastiga, mastiga, mastiga e saboreia.

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    Para saber mais

    Internet:

    https://www.nysaes.cornell.edu/pubs/press/mouth.html

    https://www.nysaes.cornell.edu/fst/faculty/acree/market/index.html

    Boca que não come

    A boca artificial inventada na Universidade Cornell reproduz em laboratório o que acontece quando você mastiga

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    Laranja mecânica

    O que faz uma laranja ter gosto de laranja é o resultado da combinação de sessenta moléculas diferentes, classificadas em cinco grupos de substâncias químicas.

    Terpenos

    Participação: 90% a 96%. De sabor neutro, servem de veículo para outras substâncias.

    Exemplo: d-limoneno

    Ésteres

    Participação: 2%. Fazem você sentir o sabor frutal.

    Exemplo: acetato de octila

    Aldeídos

    Participação: 1,6%. Responsáveis pela sensação refrescante dos sabores cítricos.

    Exemplo: decenal

    Hidrocarbonetos

    Participação: 1,5%. Acentuam as propriedades das demais substâncias.

    Exemplo: alfa-pineno

    Álcoois

    Participação: 1,2%. Simulam o açúcar da fruta, dando a sensação de que ela está madura.

    Exemplo: decanol

    Da fruta ao cheiro

    Veja como o aroma do morango – essencial para a sensação de sabor – é isolado e reproduzido em laboratório.

    1. Matéria-prima

    Retira-se o suco da fruta, esmagando-a por prensagem. O suco é colocado em um recipiente vedado.

    2. Concentração

    Aspiram-se os gases desprendidos do suco. Um filtro de polímero os captura. O filtro é, então, mergulhado num solvente. O líquido resultante é chamado de extrato do morango ou de óleo essencial.

    3. Fracionamento

    No cromatógrafo gasoso, um gás força a passagem do extrato do morango através de um tubinho finíssimo, enrolado em forma de espiral. É o canalículo de sílica. No contato com o polímero que reveste o interior do tubinho as moléculas se separam.

    4. Enumeração

    Moléculas maiores demoram mais para sair na outra ponta. Os diferentes tempos de saída são, então, registrados. No gráfico que está saindo da impressora, cada pico representa uma molécula, as substâncias diferentes que compõem o aroma do morango.

    5. Identificação

    Dentro de um equipamento chamado espectômetro de massas, as substâncias com cheiro separadas no cromatógrafo são bombardeadas por um feixe de elétrons. Um computador analisa o padrão de fragmentação. A partir disso, identifica a composição química exata de cada elemento e sua participação no aroma completo do morango.

    6. Reprodução

    Com a receita química do aroma nas mãos, basta reproduzi-lo. Alguns ingredientes podem vir de fontes naturais. Outros podem ser sintetizados em laboratório. O aroma é apresentado sob a forma líquida, em pó, em pasta ou em microcápsulas. Aplicações: alimentos, detergentes, cremes dentais, tabacaria, rações animais e remédios.

    A fisiologia do paladar

    O sabor é o resultado de informações da língua e do nariz.

    A língua é ótima, merece todo o respeito, mas não é dona da chave do sabor. Ela só consegue distinguir os quatro gostos básicos dos alimentos (veja desenho abaixo). Embora a percepção do gosto pela língua seja muito importante, são certas partículas gasosas, chamadas de voláteis, que fazem você perceber a variação sutil entre uma ervilha e um feijão.

    Ao se difundirem durante a mastigação pela cavidade que liga a boca ao nariz, os voláteis atingem células especializadas da mucosa do nariz, por onde passam todos os cheiros. Ali, em uma área de 1 centímetro quadrado, são desencadeados impulsos elétricos em direção ao cérebro. Eis o paladar.

    Aprenda a ler um rótulo

    Os aditivos sempre aparecem em letras miúdas nas embalagens.

    No tamanho, elas se assemelham àquelas famosas letras ilegíveis dos contratos leoninos. Mas você não precisa ter medo delas. As misteriosas siglas e palavras que parecem querer se esconder no rótulo são na verdade nomenclaturas técnicas para os aditivos, substâncias essenciais à manutenção do sabor e do cheiro do produto industrializado. Alguns aditivos também estimulam outros sentidos que auxiliam o paladar, como a visão e o tato.

    Estabilizantes

    Identificados pelas letras ET e mais alguma coisa. Por exemplo, o código ET.XXIX se refere ao tartarato de sódio, usado em queijos fundidos e requeijão. Ajudam a conservar o produto.

    Conservantes

    São os P e mais alguma coisa. Exemplos: o P.IX, que significa propionato de cálcio, sódio e potássio, usado tanto em picles quanto em chocolates. Também conservam o alimento.

    Antioxidantes

    Aparecem como A, seguido de um número romano. Exemplo: A.XIX, terc-butil-hidroquinona, usado em gomas de mascar. Evitam que o produto se deteriore em contato com ar.

    Acidulantes

    São os H e mais alguma coisa. H.IV, por exemplo, identifica o ácido fumárico, usado em geléias de frutas. Além de conservar, acentuam o sabor ácido do produto.

    Corantes

    São os C e mais alguma coisa. Exemplo: dióxido de titânio (C.IV), usado em refrescos em pó. Os corantes devolvem a cor original do produto, estimulando a visão e ativando a memória gustativa.

    Flavorizantes ou aromatizantes

    São escritos por extenso, como aroma natural de alguma coisa, aroma reforçado, aroma reconstituído ou aroma imitação. Exemplo: aroma imitação de baunilha. Principais responsáveis pela percepção do paladar.

    Antiumectantes

    São os AU e alguma coisa. Exemplo: sais de alumínio (AU.XI), usados em café solúvel e gelatinas. Repelem a umidade nociva ao produto.

    Edulcorantes ou adoçantes

    São grafados por extenso. Exemplo: ciclamatos, aspartame, sacarina, usados em alimentos e bebidas dietéticos. Acentuam a percepção do sabor doce. São usados mesmo quando o açúcar faz parte da receita.

    Umectantes

    São os U e alguma coisa. Exemplo: sorbitol (U.II), usado em biscoitos e similares. Mantêm o grau de umidade necessário ao produto.

    Espessantes

    São os EP alguma coisa. Exemplo: goma-arábica (EP.V), usada em balas e chicletes. Interferem na percepção tátil da boca, acentuando a textura do produto durante a mastigação.

    Metamorfoses saborosas

    Às vezes, os gostos e os aromas vêm de fontes inusitadas.

    É fácil imaginar que não existe nada de canela no chiclete que tem esse sabor escrito no rótulo. O que pouca gente sabe é que, para fazer o chiclete de canela, usa-se um produto natural completamente diferente: a amêndoa. Simplesmente, fica mais barato para o fabricante. O químico aromista pega a amêndoa, isola a substância desejada e a submete a uma reação de oxidação. Ou seja, acrescenta oxigênio à sua estrutura molecular. O resultado é uma mudança nas suas propriedades, entre as quais o gosto e o aroma, como você vê nos exemplos ao lado:

    Da amêndoa sai um gosto de canela

    Extrai-se o aldeído benzeno

    Oxidação

    Forma-se o aldeído cinâmico

    Do cravo sai um gosto de baunilha

    Extrai-se o eugenol

    Oxidação

    Forma-se a vanilina

    Do limão sai um perfume de violeta

    Extrai-se o aldeído benzeno

    Oxidação

    Forma-se a bionona

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