A voz do dragão: os segredos das forças armadas da China
Dois milhões de soldados, três mil aviões, 290 bombas atômicas e um orçamento sem limites: entenda o real poderio chinês.
O que faz uma superpotência? Não basta muita gente, ou uma economia expressiva. É preciso levar sua influência para os mais distantes pontos do globo. Por essa definição bastante tradicional, nos últimos dois séculos o mundo teve três superpotências: primeiro o Império Britânico, depois os Estados Unidos e a União Soviética. A China quer entrar para esse clube. Para isso, sabe que precisa romper com a tradição de isolamento em relação ao resto do planeta.
Uma forma de alcançar esse objetivo é ampliar a influência econômica – assim, Pequim está gastando US$ 5 trilhões na construção da chamada nova rota da seda, que, ao longo das próximas três décadas, vai conectar o país à África e à Europa, passando por dezenas de países asiáticos, com portos, rodovias e ferrovias. Já inaugurou, por exemplo, uma estrada de ferro que cobre a distância de 12 mil quilômetros de Yiwu até Londres. A China também vem desenvolvendo um projeto de longo prazo para o controle e a exploração do Ártico, aproveitando as novas rotas marítimas produzidas pela mudança climática e o derretimento de geleiras.
Mas não é o suficiente: é preciso também exercer controle geopolítico – sustentado pelo braço forte das armas. Para isso, a China está investindo, e muito, em quantidade e qualidade, com tudo o que existe de mais avançado em termos tecnológicos. O país parece pronto, inclusive, a ir para a guerra aberta, pela primeira vez em quatro décadas – o último conflito em que Pequim se envolveu foi contra o Vietnã, em 1979.
Uma superpotência deve definir claramente quem são, em cada recanto do mundo, seus aliados e inimigos. Para os chineses, algumas escolhas vão se formando: Pequim prefere a Rússia aos Estados Unidos, o Paquistão à Índia, e qualquer país ao Japão. Na África e na América do Sul, por enquanto, o foco é no domínio econômico, mas existe uma tendência clara, de, por exemplo, dar suporte à Venezuela. Na África, Burkina Faso, um tradicional aliado de Taiwan (mais sobre isso daqui a pouco), mudou de lado do dia para a noite em 2018.
Made in China
Quando um país começa a investir pesado em todo tipo de novo equipamento, alguns modelos dão certo, outros não. Veja o caso do míssil balístico Dong Feng 21. Ele viaja a dez vezes a velocidade do som, tem alcance de 2 mil quilômetros e foi projetado para destruir um porta-aviões de uma vez só. Tudo indica que os primeiros testes foram bem-sucedidos. O objetivo é claro: mandar um aviso para qualquer potência que decida navegar pelos mares da Ásia, em especial o Mar do Sul da China, onde o país vem instalando bases de apoio para suas embarcações, em faixas de mar que são consideradas águas internacionais.
Desde os tempos da Guerra Fria, a China tem adotado a política de copiar e melhorar. Nem sempre dá certo. Os chineses desenvolveram o jato J-11B com base no russo Sukhoi Su-27SK. Criaram o J-31 a partir do americano F-35. Nenhum dos dois modelos se equipara ao original, mas o J-15 é ainda pior: construído a partir de um protótipo do avião russo Su-33 comprado da Ucrânia em 2001, ele é pesado demais, tem problemas com os sistemas de controle de voo e já caiu diversas vezes. A imprensa local, controlada pelo Estado, a princípio tecia elogios ao J-15, que chamava de “tubarão voador”. Mais recentemente, tem evitado o assunto.
Em outras áreas, o progresso tem sido considerável. Uma Marinha poderosa, em especial, é fundamental para levar o poderio militar do país para muito mais longe. O governo vem construindo novas unidades de todos os portes e para todas as utilidades. Está produzindo pelo menos 20 corvetas Tipo 056, projetadas para patrulhar sua costa, principalmente ao Sul, com armas antinavios e antissubmarinos – também contam com baterias antiaéreas. Os quatro mísseis antinavios que cada 056 carrega alcançam o dobro da velocidade do som nas proximidades do ponto de impacto, o que dificulta enormemente a reação do adversário.
No campo da espionagem, os chineses já contam com nove navios da classe Dongdiao, que utilizam enormes radares que monitoram a movimentação de armamentos e veículos.
Futuro chinês
Mas é no terreno das novas armas, ultratecnológicas – a produção totalmente original –, que a China mais se destaca. O país vem dando um salto tecnológico enorme neste século. De 2000 a 2008, quadruplicou os registros de patentes, em todas as áreas (não só militares). Em 2014, havia alcançado o número extraordinário de 801 mil patentes, metade do total do planeta inteiro, contra apenas 285 mil dos americanos. Muitas dessas invenções têm aplicação militar. Por exemplo, o veículo supersônico planador DF-ZF.
Trata-se de um míssil de velocidade inacreditável, até Mach 10, ou 12 mil quilômetros por hora. Ele poderia penetrar os sistemas de defesa aérea dos Estados Unidos, retirando assim, dos americanos, uma de suas maiores vantagens estratégicas ao longo do século 20: o isolamento geográfico de seu território. Um DF-ZF já foi testado: lançado até o fim da atmosfera, a cerca de 100 quilômetros do solo, ele passou a planar e acelerar. Em tese, ele poderia seguir então para qualquer lugar do planeta, carregando armas convencionais ou nucleares, sem chances de reação a tempo por parte dos adversários.
A velocidade extraordinária também é o segredo de um novo canhão, que utiliza energia eletromagnética para lançar projéteis com mais precisão. Instalado em destróieres, ele poderia ser utilizado para atingir, a partir do mar, alvos distantes, com grande velocidade: 2,5 quilômetros por segundo contra um alvo a até 199 quilômetros de distância. A tecnologia, que também vem sendo testada por russos e americanos, poderia inclusive, na teoria, substituir o uso de foguetes para lançar satélites ao espaço. Além disso, canhões com esse poder de fogo poderiam derrubar satélites inimigos, atingindo seriamente sua capacidade de comunicação. Navios chineses com armas desse tipo já foram vistos, e fotografados, nos últimos meses – sinal de que os testes seguem a todo vapor.
De que lado estaria a China na Terceira Guerra?
Há dois anos, seria difícil dizer. Neste momento, com o azedamento das relações com os EUA por conta da guerra comercial, tende a ser a Rússia. Quem se sairia melhor? A consultoria militar RAND Corporation rodou testes, simulando dezenas de diferentes cenários de conflitos. Na maior parte deles, a China e a Rússia se mostravam capazes de neutralizar rapidamente a influência americana e japonesa em seus quintais – em especial o Leste Europeu, no caso russo, e o Sudeste Asiático, no caso chinês. No Báltico, outra derrota americana. E mais: a simulação mostrou que os mísseis de longo alcance russos e chineses seriam capazes de atingir o território americano com força, destruindo suas principais metrópoles e neutralizando seu sistema de comunicação, incluindo os satélites. Os Estados Unidos e seus aliados iniciariam o conflito em desvantagem.
MICRO-ONDAS – Não é letal, mas não é algo pelo qual você gostaria de passsar. Um feixe de micro-ondas, na potência certa, é capaz de provocar dores horríveis no corpo todo, logo abaixo da pele. O governo chinês garante que esse é um projeto real, e que seria especialmente útil principalmente na ação contra o terrorismo. A princípio não deixa sequelas – assim que o aparelho é desligado, a vítima começa a voltar ao normal. Sua grande utilidade seria inviabilizar qualquer reação dos alvos. SUPERBOMBA – Os chineses agora têm sua própria “Mãe de todas as bombas”, maior e mais poderosa do que o primeiro artefato que ganhou esse apelido, o GBU-43/B dos EUA. A fabricante de armas Norinco foi a responsável pelo projeto, que só perderia, em potência, para bombas nucleares. Ela teria entre 5 e 6 metros de comprimento e seria mais leve do que a versão americana, que pesa 9.800 quilos. A bomba ainda não foi batizada oficialmente, mas um vídeo promocional datado do final de 2018 indica que o armamento está pronto para ser acionado. PORTA-AVIÕES NUCLEARES – Parte do esforço de atualização da Marinha chinesa inclui o desenvolvimento de uma nova geração de porta-aviões, movidos por energia nuclear com catapultas eletromagnéticas para disparar as aeronaves. A iniciativa prevê a entrega de pelo menos seis desses novos modelos até o ano de 2035. Seria um salto qualitativo e quantitativo imenso, para um país que hoje tem apenas um porta-aviões ativo, o Liaoning, e um segundo em testes. |
A batalha da internet
Recentemente, a União Europeia anunciou que está se preparando para fazer um exercício militar bem diferente: treinamento para testar as defesas e a capacidade de reação a ciberataques vindos da Rússia e da China. Esse é um risco bastante concreto. Na estimativa dos especialistas da revista americana Foreign Policy, algo entre 50 mil e 100 mil chineses trabalham ativamente no desenvolvimento de um “exército hacker”.
Ao que parece, alguns ataques já aconteceram, com sucesso. A China costuma negar seu envolvimento, é claro, mas já foi acusada de invadir servidores de órgãos de governo e de segurança de Austrália, Canadá, Índia e Estados Unidos – onde, em 2010, o Google detectou uma ação que conseguiu roubar dados a respeito de novos projetos da companhia.
“A discussão na China sobre cyberataques começou em 1990”, afirma a pesquisadora Lyu Jinghua, do Carnegie’s Cyber Policy Initiative, em artigo sobre o tema. “Impressionada por como as Forças Armadas americanas se beneficiaram da aplicação de tecnologias novas na Guerra do Golfo, a China começou a perceber que não existe, no cenário atual, forma de se defender adequadamente sem utilizar as novas tecnologias, especialmente as tecnologias da informação.”
Desde então, os chineses vêm desenvolvendo verdadeiras armas de ataque aos computadores de outros países. O país também investe em sua própria rede de computadores e conexões de internet, para evitar a dependência do exterior. “A China costuma utilizar o termo ‘oito King Kongs’ para se referir às principais companhias responsáveis pela estrutura da internet nos EUA: Apple, Cisco, Google, IBM, Intel, Microsoft, Oracle e Qualcomm”, escreve Lyu Jinghua. O objetivo é, diz ela, reduzir essa dependência e “garantir a segurança de sua própria informação estratégica, produzida por áreas críticas”.
Uma superpotência do século 21 também vai precisar alcançar o espaço, um domínio que, com coisas como o sistema de localização por GPS e seus satélites se tornando fundamentais na guerra moderna, é cada dia mais estratégico, e pode acabar vendo, se não batalhas de humanos, ao menos de mísseis antissatélite.
Nisso a China vem trabalhando pesado. Já enviou, em janeiro de 2019, a sonda Chang’e 4 até o lado oculto da Lua, um feito inédito para qualquer país que não os EUA e a União Soviética/Rússia. O equipamento pousou na maior e mais profunda cratera lunar, a chamada Bacia Polo Sul-Aitken.
O Ocidente, em geral, celebrou os benefícios da conquista para a astronomia, mas percebeu também que a China está se tornando capaz de explorar a Lua como base de apoio para saltos mais ousados.
Em paralelo, o país também criou o Dong Feng-3, um míssil que, disparado a partir de um sistema de lançamentos KZ-11, seria capaz de aniquilar satélites americanos. A arma pode alcançar uma altura de 30 mil quilômetros a partir da superfície da Terra, o suficiente para atingir boa parte dos satélites em funcionamento.
A China, aliás, é o segundo país com mais satélites de inteligência, vigilância e reconhecimento. Fica atrás apenas dos Estados Unidos. Dos 120 artefatos desse tipo que Pequim já lançou ao espaço, metade são operados por militares. Os chineses estão ainda desenvolvendo protótipos de satélites blindados, que poderiam ser lançados contra outros e provocar danos. Ou seja, além de fornecer dados, esses equipamentos seriam capazes de atingir artefatos dos concorrentes.
É assim, apostando no poder marítimo, nas armas ultratecnológicas de longo alcance e no controle do espaço que a China corre para chegar à metade do século 21 como uma superpotência, capaz de dividir com os EUA (e talvez a Rússia) o destino do planeta.