Acima dos telhados, nas noites de inverno, desfila um voraz canibal
Análise sobre como descobriram o buraco negro, no centro da Via Láctea.
No inicio do século XX já estava claro que o Sol não se situava no centro da Via lactes. O inglês Harlow Shapley projetou então um meio engenhoso de localizar tal cento. Ele se baseou no fato de que os diversos aglomerados globulares – grandes conjuntos de estrelas – se distribuíam em forma esférica pelo espaço. Portanto, o ponto em torno do qual eles se espalhavam deveria ser o cento galáctico. Segundo Shapley, tal ponto ficaria na direção de Sagitário e a 33.000 anos-luz da Terra (o ano-luz mede 9,5 trilhões de quilômetros). O Sol, dessa forma, ficaria a apenas 10.000 anos-luz da periferia da Galáxia (cujo raio é cerca de 43.000anos-luz). Shapley acertou quase na mosca, já que a União Astronômica Internacional atualmente adota para a distância do centro galáctico 8,5 quiloparsecs, ou 27.700 anos-luz (1 parsec mede 3,26 anos-luz).
A curiosidade sobre o cento da Galáxia foi aguçada pela descoberta de outras galáxias – antes de mais nada, a grande espiral de Andrôemda – que apresentam núcleos brilhantes. No entanto, mesmo os mais poderosos telescópios nada puderam descobrir: logo ficou claro que havia muitas nuvens de poeira cósmica em torno do centro, e elas impediam a passagem de luz visível. A situação mudou com o advento da radioastronomia, na década de 30, que revelou uma intensa radiofonte na direção do centro: Sagitário A. O estudo detalhado dessa região foi feito por novas técnicas: além das ondas de rádio, também os raios X, raios gama e infravermelhos.
A cada novo mapeamento, veio à tona uma nova faceta da atividade do núcleo galáctico. Ao mesmo tempo, se descobriu que um número enorme de galáxias apresenta atividade no núcleo e aparece como um quasar. Existem galáxias com atividade moderada, como as chamadas galáxias de Seyfert. Outras têm baixa atividade, como a Via Láctea. Em muitas galáxias ativas, aparecem jatos cósmicos extremamente finos e compridos, estendendo-se por centenas de milhões de anos-luz. Dois modelos disputam a explicação desses fenômenos: a captura de matéria por buracos negros de grande massa, e a formação explosiva de estrelas. Mas é provável que esse dois mecanismos estejam em operação simultânea, formando os diferentes tipos de núcleos ativos. De que tipo seria a atividade de nossa Galáxia?
Obteve-se uma resposta inicial a partir do mapa feito pelo Interferômetro de Base Muito Longa (o VLBI, que liga radiotelescópios dos Estados Unidos e da Europa). Ele capta ondas de 6 centímetros, ou 5.000 MHz, e vê detalhes muito menores que um telescópio óptico – o VLBI seria capaz de acompanhar uma figura humana andando na Lua. Assim, se descobriu que Sagitário A contém na verdade três fontes diferentes, muito próximas entre si. Duas delas são restos de supernovas, explosões estrelares. A terceira, coincidindo com o verdadeiro centro galáctico, é muito intensa e compacta: caberia inteira entre o Sol e a órbita de Saturno (menos de um milésimo de ano-luz, portanto). Essas características , assim como a das que emite, são compatíveis com o que se deve esperar de uma fonte alimentada por um buraco negro.
A existência de um astro desse tipo também é denunciada quando se observam emissões de raios gama, bem mais energéticos que as ondas de rádio (estas se medem em milésimos de elétrons-volt, e a primeira, em milhões de elétrons-volts). Raios infravermelhos, por sua vez, denunciam redemoinhos de nuvens de gás ionizando (ou eletrificado) e mostram que, num raio de apenas 3 anos-luz do centro, concentra-se uma massa 4 milhões de vezes maior que a Sol. Como a maior parte parece estar confinada na fonte central, tem-se outro indício do buraco negro. Apesar de já ter pouco gás para sugar (e aquecer, levando às violentas emissões observadas), ele ainda é o corpo mais energético da Galáxia. Assim, durante as noites de inverno, desfilam lado a lado sobre nossa cabeça o singelo lanço de São Pedro e o mais voraz canibal da Via Láctea.