Assento ejetável, para longe da morte
Quando um caça é atingido ou sofre um acidente, entra em ação o engenhoso sistema do assento ejetável, um disparo que já salvou a vida de milhares de pilotos.
Os milhares de espectadores que olhavam para o céu estavam boquiabertos. Na tarde de 8 de junho do ano passado, o Salão Aeroespacial de Le Bourget, em Paris, apresentava uma atração especial. O experimentado piloto soviético Anatoly Kvotchur fazia evoluções de tirar o fôlego com o caça mais moderno de seu país, o MiG-29.
As manobras eram tão ousadas que apenas alguns especialistas e pilotos presentes se deram conta de que alguma coisa estava errada. Bruscamente, o avião perdeu velocidade quando iniciava uma passagem a baixa altitude e começou a cair na vertical. O que se seguiu foi tão rápido que muitos só enxergaram a bola de fogo brotando do chão com o impacto do caça.
Mas o que os olhos não viram as câmaras registraram: uma fração de segundo antes, uma fugidia centelha arrancou a capota do avião e expulsou o assento onde estava sentado o piloto.
No instante em que o caça explode no solo, o pára-quedas de Kvotchur está se abrindo a apenas 50 metros de altura.
Quando a explosão se transforma em incêndio, o piloto aterrissa, atordoado, a poucos metros do lugar. O que derrubou a mais sofisticada máquina de guerra aérea soviética foi a sucção de um pássaro por uma das turbinas – por sinal, a causa mais comum de acidentes com caças em todo o mundo -, apagando o motor e desgovernando a aeronave. Em tais circunstâncias, a vida ou a morte do piloto é decidida nos escassos segundos que restam até o impacto com o solo.
Esse intervalo de tempo aparentemente exíguo é porém mais que suficiente para que um eficaz sistema de ejeção arranque o piloto da cabine, projete-o a uns 60 metros de distância do avião e abra o pára-quedas que o levará a salvo até o solo. Tão confiável é o sistema que já salvou mais de 8 mil aviadores desde que o inventaram. Foi no final dos anos 30 que os alemães começaram a desenvolver um método seguro de abandonar um avião em queda. Ao término da Segunda Guerra Mundial descobriu-se que eles chegaram a fazer alguns testes em aviões de combate. Quem realmente conseguiu construir o primeiro sistema de escape, no entanto, foi o engenheiro inglês James Martin.
A idéia foi conseqüência da morte de seu sócio e amigo, o capitão Valentine Baker, num acidente aéreo em 1942, justamente porque ele não teve como se safar antes que seu avião se espatifasse. Até o advento das cabines fechadas e pressurizadas, a única esperança do piloto equipado de pára-quedas estava em pular do avião na hora do aperto e torcer pelo melhor. A partir de 1944, à medida que aumentava a velocidade dos caças, aumentavam também as dificuldades de salvamento. O problema é que a pressão exercida pelo ar sobre o piloto cresce de acordo com o quadrado da velocidade do avião – o motorista de um carro, ao dobrar uma esquina a baixa velocidade, não tem problema em pôr o braço para fora, mas fazer isso a mais de 100 q uilômetros por hora não é a mesma coisa.
Em vôo, ainda quando o piloto conseguia saltar, a brusca desaceleração que seu corpo sofria no impacto com o ar quase sempre o punha a nocaute antes que pudesse abrir o pára-quedas.
O engenheiro Martin imaginou então que a forma mais rápida e segura de retirar o piloto de um avião em queda seria obrigá-lo a sair literalmente em disparada. Usando um boneco de 90 quilos, Martin experimentou fixar cartuchos explosivos sob o assento do piloto. Constatou, porém, que o simples
disparo produzia uma aceleração para cima tão repentina que podia ferir o aviador. De fato, um dos pilotos que testou o artifício acabou hospitalizado com fratura na coluna vertebral. Auxiliado pelos médicos da Real Força Aérea, o engenheiro obteve uma coluna vertebral de verdade com a qual fez muitas provas de resistência mecânica, submetendo-a a esforços de variada intensidade e direção.
Todos esses conhecimentos o levaram finalmente ao sistema mais apropriado: um assento de dupla expulsão, composto por dois dispositivos pirotécnicos, o primeiro liberava o assento dos fixa dores que o prendiam ao piso da cabine. O segundo, mediante uma combustão gradual, se encarregava de elevá-lo de forma menos brusca a uma distância suficiente para evitar um choque com o corpo do avião. No dia 24 de junho de 1946, o piloto inglês Bernard Lynch. a bordo de um caça a jato Meteor, foi o primeiro homem a fazer uso de um assento ejetável. Desde então, o sistema ganhou aperfeiçoamentos que acompanharam a evolução dos caças supersônicos.
“Hoje, velocidades que ultrapassam os 2 mil quilômetros por hora requerem que a operação de salvamento do piloto não dure mais de 3 segundos”, constata Rui de Souza Dias, engenheiro de sistemas de escape da Embraer, em São José dos Campos, que fabrica o caça Xavante. Os assentos mais modernos, como o modelo MK-10 da pioneira Martin-Baker – que equipa caças como o americano F-18, o britânico Tornado e o ítalo-brasileiro AMX -, ou o K-36 soviético, o mesmo que salvou o piloto Kvotchur, são uma bem-montada estrutura que reúne mais de oitenta peças. Ao puxar a alça de ignição que fica no assento entre suas pernas (em alguns modelos existem duas alças logo acima do capacete), o piloto põe em funcionamento um aparato mecânico que funciona com a precisão de um relógio suíço. Dois décimos de segundo depois do início da operação, duas pequenas cintas, presas ao redor dos tornozelos, empurram as pernas contra o assento, para impedir que elas se choquem com o painel durante a ejeção. Os cintos que descem dos ombros e ajudam a manter o piloto seguro no assento também se contraem, forçando-o a uma posição ereta – se estiver ligeiramente inclinado pode se partir em dois, tal a força empuxo que ele experimenta.
Quase simultaneamente, dois canhões de ar comprimido fazem com que o assento corra disparado para cima sobre dois trilhos. Na parte superior do assento, um par de pequenos chifres feitos de uma liga especial de alumínio rompe com um forte impacto a capota do jato. Em alguns aviões de combate americanos e em todos os soviéticos, a capota é expelida intacta. Quando o aviador já está quase inteiramente fora da cabine, a um quarto de segundo, são acionados os foguetes instalados debaixo do assento, ao mesmo tempo em que começa a funcionar o suprimento de oxigênio de emergência. A velocidade de ejeção chega a 21 metros por segundo. Na marca de meio segundo, os foguetes terminam sua descarga e é inflado o pequeno pára-quedas de estabilização, chamado drogue (biruta em inglês) que impede que o assento fique dando cambalhotas no ar. O pára-quedas principal só será liberado se o altímetro instalado no assento, a que os aviadores se referem como barostática, registrar altitude inferior a 2 133 metros (ou 7 mil pés, na unidade usada internacionalmente), pois acima disso não há oxigênio suficiente para a sobrevivência do piloto.
O próprio pára-quedas de estabilização extrai depois o pára-quedas principal de dentro do apertado compartimento que fica atrás da cabeça do piloto. Em 1,5 segundo, o oxigênio é desligado e o piloto é liberado do assento. Completados 2,65 segundos desde a ignição, o pára-quedas está completamente inflado, conduzindo suavemente o aviador até o chão – ou à água, caso em que um sensor faz inflar um colete salva-vidas assim que ocorre o contato. “Tudo é tão rápido que alguns pilotos ‘apagam’ na hora da ejeção e quando voltam a si já estão em terra”, conta o engenheiro Dias, da Embraer.
Mesmo assim, não é uma experiência que se esqueça. Em 1963, quando fazia um vôo de testes com o protótipo do caça supersônico F-104 Starfighter, o festejado piloto americano Chuck Yeager, personagem do filme Os eleitos, teve de acionar o assento de ejeção numa circunstância particularmente difícil: seu avião caía de costas depois de ficar desgovernado. Nessa posição, as chamas da descarga dos foguetes do assento alcançaram o macacão do piloto, que pegou fogo. Embora tenha descido a salvo até o chão, Yeager carrega até hoje as cicatrizes das queimaduras que sofreu. Mais recentemente, há dois anos, um caso verdadeiramente insólito envolveu um assento de ejeção. Um caça Sea Harrier da Marinha britânica ficou mais de duas horas voando sem o piloto até cair no Mar do Norte. As investigações concluíram que o piloto desapareceu depois de ter sido arrancado de seu assento, ainda dentro do aparelho. É provável que ele tenha expulsado acidentalmente a capota e o pára-quedas principal.
Para acompanhar o desenvolvimento dos aviões de combate que deverão entrar em operação nos próximos anos, empresas como a inglesa Martin-Baker e suas concorrentes americanas McDonnelI-Douglas e Boeing buscam tecnologias de ponta para melhorar o desempenho de seus produtos. Os novos assentos deverão contar com microprocessadores digitais para o controle automático da estabilidade, direção, força de expulsão etc. O modelo MK-14, que a Martin Baker está desenhando para os caças da Marinha americana, prevê o uso de uma liga especial de alumínio e lítio para reduzir o peso sem perder resistência e contará com um microcomputador alimentado por duas baterias.
O pára-quedas também passará por alterações: com uma forma cônica, terá um diâmetro de apenas 6 metros, o que facilitará a abertura em velocidades de até 650 quilômetros por hora, sem causar uma desaceleração excessiva par o físico do piloto. Em tempos de paz, a maior preocupação dos pilotos de aviões de combate não é perder a vida, que não está propriamente em perigo, mas perder um aparelho que vale milhões de dólares. Ao sofrer uma pane ou ao acolher sem querer um pássaro na turbina, o piloto tem condições de conduzir a aeronave até uma pista de pouso, a menos que o estrago acarrete a perda total de controle. Quando um experimentado aviador morre em um acidente com um caça, geralmente seu erro foi ter ido longe demais ao tentar salvar a aeronave.
“Com os aviadores novatos é diferente, eles logo se assustam numa situação crítica e não pensam duas vezes antes de ejetar”, comenta Luis Alberto Madureira da Silva, 38 anos, seis dos quais como piloto de provas da Embraer, que trabalha com o AMX, o caça que está sendo produzido em sociedade com as empresas italianas Aermachi e Aeritalia. De todo modo, ejetar-se é uma experiência que nenhum aviador sonha registrar em sua folha de serviços. Mesmo sabendo que a possibilidade de falha de um assento ejetável é de uma em 10 mil, pilotos de caça de todo o mundo chegam a manter uma relação conflitante com esse sistema de salvamento que, por enquanto, as aeronaves civis não possuem.
Ao subir na carlinga do avião, qualquer um daqueles pilotos se recusaria a levantar Vôo sem um assento que pudesse salvá-lo em caso de perigo extremo. Mas essa dependência convive com a sensação desconfortável de alguém que se senta na boca de um canhão. “Não é como um bote salva-vidas que um marinheiro pode usar se o navio naufragar”, compara Madureira, que em suas 4 mil horas de vôo já pilotou também os caças F-5 e Mirage quando estava na FAB, embora nunca tenha se ejetado. “São realmente dois canhões que nos põem para fora da cabine”, explica, com um humor que não esconde certa dose de apreensão. Ou seja, em matéria de assento ejetável, ruim com ele, muito pior sem.
Para saber mais
Enciclopédia ilustrada da aviação, vários autores. Editora Nova Cultural. São Paulo. 1987