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Campeões da América

Dois brasileiros acabam de bater o recorde mundial de travessia do continente americano. Nos próximos páginas, tudo o que eles viram no caminho que liga o Alasca à Terra do Fogo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 31 ago 2001, 22h00

Cacá Clauset

Acordei meio sem sono. Já era dia. Se bem que a qualquer hora que eu levantasse estaria claro. No Círculo Polar Ártico, mesmo na primavera, o dia dura muito. Há só cinco horas de escuridão por noite. Aquele seria meu último sono gozado numa cama por muito tempo. Meu companheiro de jornada, Marcelo Spina, também não teve uma noite calma. Por vários meses, tínhamos nos preparado para bater o recorde de travessia do continente americano. Em poucos minutos, começaríamos a tentar transformar aquele sonho em realidade.

Tudo havia começado há um ano. Marcelo me convidara para uma reunião de aventureiros em seu bar, em São Paulo. Eu tinha acabado de chegar do rally Paris–Dacar, que disputara formando equipe com o navegador Amyr Klink, o que, de certa forma, me credenciava ao encontro. Após comer um belo picadinho de carne com arroz, já quase na hora de ir embora, Marcelo me puxou para o canto e me disse que tinha um projeto, mas que não queria falar sobre ele ali. Disse-me apenas: 23 dias e 22 horas. Como num código. Alguns dias mais tarde eu entendi. Tratava-se do recorde de travessia pan-americana, registrado no Guinness Book, o livro dos recordes, e batido por um americano e um canadense em 1986. Naquele ano, eles venceram os 23 023 quilômetros que separam o extremo norte do extremo sul das Américas em 23 dias, 22 horas e 52 minutos, com uma picape. Marcelo achava que eu e ele poderíamos nos sair melhor. Gostei na hora da idéia de superar aquela marca.

Nos dirigimos para o carro. Um frio na barriga. Aliás, frio por toda a parte: naquela noite, o termômetro marcara 30ºC negativos. Abrimos o porta-malas e vimos que todas as nossas bebidas estavam congeladas. Não sobrara nada líquido dentro do carro. Tememos pelo motor. Tínhamos substituído a água por etileno-glicol, para o resfriamento. Mas e quanto ao óleo lubrificante? Não havíamos feito nada para mantê-lo aquecido. Puxei a vareta para ver o estado. Pastoso. Nem congelado nem líquido. Demos a partida. Demorou mas pegou. Esse foi o primeiro de muitos testes que o nosso Subaru Forester enfrentou. Queríamos meter logo o pé na estrada. Era para isso que tínhamos estudado tantos mapas, ensaiado tantos diálogos para lidar com guerrilheiros, enfrentado tantas preocupações com dinheiro. O dia estava bonito. E nenhum dos nossos aparelhos eletrônicos – GPS, Rádio PY, telefone satelital e o próprio CD – funcionava, por causa do frio. Com o tempo, todos voltaram a operar.

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Menos o CD. Tivemos que fazer toda a viagem ouvindo apenas rádio. Cento e tantos CDs inúteis na bagagem.

Enfim, engatamos a primeira e pisamos fundo. Para bater o recorde teríamos que realizar a travessia entre Prudhoe Bay, norte do Alasca, e Ushuaia, sul da Argentina, acelerando o tempo todo. Zeramos os cronômetros, os odômetros e colocamos um relógio em contagem regressiva. Qualquer segundo a menos que o tempo do recorde anterior, estava bom. Um a mais e todo o esforço teria sido em vão.

A primeira estrada, a James Dalton Highway, seria a mais perigosa e traiçoeira do percurso. O piso estava todo congelado. Essa estrada, de 800 quilômetros, liga os campos de petróleo de Prudhoe Bay ao sul do Alasca. Tudo o que cruzávamos pela estrada eram grandes caminhões. Onde não havia gelo, eram o cascalho e a lama que atrapalhavam. O único posto de gasolina daquele trecho ficava a 450 quilômetros da largada. Nosso tanque tinha exatamente essa autonomia. Ou seja, para alcançá-lo sem um reabastecimento, só aliviando bem o pé. Não deu. Pela primeira vez tivemos que utilizar o galão reserva. Antes de deixarmos essa estrada, mais um imprevisto: pneu furado. Nosso carro tinha dois estepes e mais um tubinho de Tyre Pand, aquele produto que tapa furos pequenos nos pneus. Mas um furo, ou melhor um rasgo, logo no começo da viagem não estava nos planos. O pneu ficou inutilizado.

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À noite, já estávamos no Canadá. As estradas por que passamos eram verdadeiros tapetes de asfalto. Ainda estávamos nos adaptando ao carro e ao sono cortado. Começamos a viagem em turnos de um tanque para cada um, mais ou menos quatro horas de volante. Enquanto um dirigia, o outro dormia. Pelo menos era essa a idéia. Na verdade, dormir durante o dia era complicado. O sono só vinha mesmo durante a noite. De dia, enquanto não estávamos dirigindo, checavámos os dados do GPS e fazíamos um montão de pequenas tarefas.

Chegamos rapidamente aos Estados Unidos. Foi a fronteira mais fácil de transpor, em todo o percurso. Nem precisamos sair do carro. Em solo americano, aproveitamos as boas estradas e rodamos sem parar. Sabíamos que lá era lugar para baixar tempo. O difícil foi não passar do limite de velocidade. Uma só multa e a gente estaria fora do Guinness. À altura de Colorado City, no Estado homônimo, já havíamos rodado 6 400 quilômetros, em 60 horas e 20 minutos. Uma média excelente.

Alcançamos a fronteira com o México, na cidade de Brownsville, no Estado do Texas, no início da madrugada do quinto dia de viagem. Vistos para lá, carimbos para cá, uma burocracia interminável. Só duas horas e meia mais tarde pudemos retomar a viagem. Era preciso cautela. No México, há pedágios clandestinos em algumas regiões. Antes de entrar na zona dos Chiapas, terra dos revolucionários zapatistas, paramos em um posto de gasolina. E como Deus existe e é brasileiro, encontramos lá dois guatemaltecos que nos informaram que havia uma estrada nova, toda cercada, à prova de guerrilheiros, e que era seguro trafegar por lá, mesmo durante a noite. Nos olhamos com uma expressão de “oba!”. Era um tempo precioso que iríamos ganhar.

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Para sair do México, mais problemas. Na entrada, haviam nos dado um folheto explicando tudo sobre as fronteiras. E estava escrito que a passagem para a Guatemala funcionava 24 horas por dia. Nada disso. Chegamos lá de madrugada e a fronteira estava fechada. “Só amanhã às nove horas”, disse um guarda. Faltavam mais de oito horas para abrir. Decidimos que não íamos perder esse tempo. Insistimos. Para nossa alegria, ao cabo de alguns minutos o guarda abriu a cancela.

Na Guatemala, atingimos a marca dos 10 000 quilômetros em 113 horas e nove minutos, a uma média de 90,5 km/h. Melhor, impossível. Só que aí chegamos em El Salvador e a coisa desandou. Mais de três horas na fronteira: muitos papéis, muitos carimbos, a maior burocracia de toda a viagem. Finalmente desembaraçados, seguimos margeando o Pacífico, em estradas entre razoáveis e boas. Queríamos tentar cruzar cinco países em um único dia. Claro que não deu certo. Na saída de El Salvador – adivinhe – mais burocracia. Outras três horas para acertar tudo.

Honduras era o menor país que iríamos atravessar. Apenas 180 quilômetros entre a aduana de entrada e a de saída. Como vimos que não seria possível chegar na fronteira com a Nicarágua antes de ela fechar, resolvemos dar uma parada no caminho para dormir em um hotel. (Ninguém é de ferro, poxa.) Achamos um bom, com piscina e tudo. Era a primeira noite bem dormida desde Prudhoe Bay, ponto de partida, no Alasca, dias antes. Banho. Como é bom tomar banho! No jantar, peixe e espaguete. Ah, como é bom comer comida quente. E com garfo e faca!

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Na saída de Honduras, percebemos que havíamos trocado o frio congelante pelo calor insuportável. O termômetro do nosso Forester marcava 35ºC. Ou seja, em sete dias de viagem submetemos nossos organismos a uma amplitude de temperatura de 65ºC. Entramos no Panamá, o país mais moderno da América Central. As estradas voltaram a ficar bastante boas. No Panamá, providenciamos a travessia do carro até a Colômbia, de navio. Esse é o único trecho da travessia em que não há estradas. Todo o transporte tem que ser feito do modo tradicional, em containeres e tudo o mais. Em Colón, cidade panamenha onde embarcaríamos o carro, um amigo que nos ciceroneava pelo país nos fez uma surpresa: fomos recebidos com escolta policial e uma festa na cidade. Até uma escola de samba panamenha, com um boneco do Zé Carioca, se apresentou para a gente. Era domingo. Adoramos o Panamá.

No dia seguinte, já estávamos em Cartagena, na Colômbia, onde o carro iria chegar na terça pela manhã. Um dia inteiro sem nada para fazer era uma benfazeja quebra na nossa extenuante rotina. Acabamos fazendo compras para abastecer a geladeira do carro e adiantando os trâmites burocráticos. Outra maratona de papéis e carimbos. Para encurtar a conversa: só conseguimos retirar o carro na quarta à noite e retomar a estrada na quinta de manhã. Por que não partimos assim que desembaraçamos os equipamentos? Porque a Colômbia era o país mais perigoso de todo o trajeto. Resolvemos que só rodaríamos durante o dia.

Deixamos Cartagena em direção a Medellín com a idéia de atravessar o país inteiro naquele dia. Não deu tempo. Chegamos a Cali no começo da noite. Eram só mais 200 quilômetros até a fronteira. Mesmo assim, resolvemos não contar com a sorte e paramos na cidade. Ao procurar um hotel, a prioridade era a segurança do carro, depois a nossa. No dia seguinte, antes de sair da Colômbia, vimos muitas serras pelo caminho. Enfrentamos também muitos pedágios. Um a cada 20 quilômetros. (Um pouco mais e ia ficar parecendo uma rodovia brasileira!) Até chegar ao Equador, o que mais temíamos era um ataque dos guerrilheiros. Eles adoram turistas: podem extorquir, confiscar ou simplesmente seqüestrar e virar notícia. Acabamos cruzando apenas com o Exército colombiano. E nos impressionou a quantidade de crianças ao redor dos 15 anos uniformizadas, empunhando armas.

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O Equador é um país altíssimo. Praticamente todas as estradas ficam a mais de 2 500 metros acima do nível do mar. Muitas vezes, bem mais do que isso. O carro sofreu bastante: devido à falta de ar, o motor não “respirava” direito e, a cada metro que subia, perdia potência. Agora, se o carro sofreu, imagine você, caro leitor, o nosso estado. A falta de ar constante e as intermináveis curvas das estradas nos deixavam enjoados. O Marcelo suportou melhor, mas também não era lá as mil maravilhas. Nossa previsão era que os pouco mais de 1 000 quilômetros até a divisa com o Peru poderiam ser vencidos em 12 horas. Erramos feio. Levamos 20 horas digladiando com as sinuosidades equatorianas.

Na América do Sul, os trâmites aduaneiros melhoraram consideravelmente. A burocracia diminuiu. O Peru, país interessantíssimo, famoso pelos resquícios de velhas civilizações, aprontou uma boa comigo: paramos para comer uma pizza em um vilarejo. (Bem rapidinho. Já disse a você que ninguém é de ferro, poxa.) Não agüentávamos mais só comer pratos frios e bobagens afins que íamos comprando quando abastecíamos. E não é que a tal pizza não caiu bem? Tive uma bela diarréia. Toda hora tínhamos que parar o carro para eu ir ao banheiro – na situação em que nos encontrávamos era o mato de beira de estrada mesmo. A única compensação era a vista fantástica da Cordilheira, dos precipícios, da vegetação colorindo os relevos, do mar lá embaixo. Meu desarranjo só durou um dia. Mas posso dizer que foram as evacuações mais idílicas e poéticas da minha vida.

Finalmente alcançamos o Chile, o país mais desenvolvido por que passamos, exceção feita para os Estados Unidos e o Canadá. Logo na fronteira fomos avisados de que os guardas do país não aceitam propina. “O Chile é um país sério”, repetia o simpático fiscal que nos atendeu na entrada. Sério, talvez. Reto, com certeza. Nunca vi estradas tão planas como lá. Sem dúvida, o Chile é um dos países mais bonitos para dirigir. Do lado esquerdo, altas montanhas de areia, sem nenhuma vegetação. Do direito, o azul do Pacífico, com ondas perfeitas. No centro, a estrada bem asfaltada e bem sinalizada. Parecia cenário de Hollywood. Só tem um problema: não há postos de gasolina. De novo, fomos salvos por nosso galão de reserva amigo.

Andamos, no Chile, até Osorno e quebramos à esquerda, na direção de Bariloche. Naquele ponto, as montanhas eram mais baixas e o plano era cruzar os Andes na direção da Argentina. Trata-se de um caminho bonito e simples. Chegamos a Bariloche com facilidade. Agora, o negócio era cruzar a Argentina de oeste a leste e alcançar a Ruta 3, a estrada que liga Buenos Aires ao sul do país e que corre às margens do Atlântico. Mais retas intermináveis. Nesse dia, o Marcelo estava cansado e eu toquei 14 horas direto, andando em linha reta. Nesse trecho, paramos apenas para uma Milaneza con Huevos, uma deliciosa espécie argentina de bife a cavalo. Agora faltava pouco. Ushuaia, nosso destino final, fica na Argentina.

Para ir até lá, precisamos passar outra vez por território chileno. Às 11 horas chegamos no Estreito de Magalhães. A balsa que nos levaria até o outro lado tardou uma hora. Apesar de lá ser um local de travessia complicada, com muito vento, nesse dia tudo estava bem calmo. Quando saímos da balsa, nosso odômetro marcava 22 567 quilômetros rodados desde o Alasca. Pisamos na Terra do Fogo, território austral. Faltavam apenas 450 quilômetros de estrada para cumprir nosso objetivo. Às 17h11min, chegamos a Ushuaia. Saímos do carro e nos abraçamos aos berros. Tínhamos feito a travessia pan-americana em 18 dias, uma hora e 11 minutos. O recorde era nosso.

“Descendo pela Colômbia, o que mais temíamos era um ataque da guerrilha”

“Nas intermináveis retas argentinas, precisei dirigir 14 horas direto”

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