Cinema digital made in Brasil
Com todos os personagens, cenários e animações feitos em simples micros PC 486, o filme Cassiopeia, com estréia prevista para julho, marca a entrada do Brasil na nova era do cinema. Uma etapa que dispensa atores e câmeras e é a sensação do momento, após o sucesso de Toy Story.
Heitor Shimizu
Passados 100 anos da invenção do cinema, pelos irmãos Lumière, na França, o paulista Clóvis Vieira dava, em dezembro de 1995, os últimos toques no mouse para finalizar seu primeiro longa-metragem. O filme, que engoliu quatro anos de trabalho, é um pouco diferente de tudo o que se viu nas telas neste século. Ele não contou com atores, locações, cenários, câmeras e nem mesmo filme, quer dizer, foi feito sem película cinematográfica. Saiu inteirinho dos computadores. É o cinema digital ou, como prefere Vieira, virtual.
Cassiopeia vem logo depois de um grande sucesso americano. Toy Story, a superprodução da Disney que estreou em dezembro, faturou, de cara, mais de 200 milhões de dólares só nos Estados Unidos. Grande parte do êxito deveu-se ao fato de ter sido aclamado como “o primeiro filme todo feito em computador”. Mas Vieira contesta a primazia dos estúdios Disney. Diz que o projeto de Cassiopeia é anterior e só não ficou pronto antes por falta de dinheiro. Foi feito em dezessete triviais computadores pessoais (PCs), enquanto a produção americana saiu de 117 estações de trabalho Sun, máquinas muito mais velozes. Se fosse produzido em PCs, o filme da Disney levaria 43 anos para ficar pronto. Até aí, tudo bem, são circunstâncias. Mas Vieira vai mais longe. Ele argumenta que, ao contrário do que se alardeou, Toy Story teve partes feitas fora do computador. Na construção dos personagens utilizaram-se modelos em argila e plástico.
Em Cassiopeia não, o que tornaria o Brasil “o pioneiro do cinema virtual pra valer”, segundo o diretor.
Pode até ser. O mais importante, porém, é que o computador, até recentemente usado apenas para produzir efeitos especiais, deixa a condição de coadjuvante. É a mais nova estrela do cinema mundial.
Bloco de rabiscos vira filme
O primeiro programa de desenho para computador foi desenvolvido pela IBM e pela General Motors para projetar automóveis. O DAC-1, como foi chamado, só ficou pronto em 1964. Para todos os efeitos, essa é a data de nascimento da computação gráfica. No mesmo ano, o estudante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Ivan Sutherland criou o programa Sketchpad (algo como “bloco de rabiscos”). Com uma caneta ótica podia-se fazer desenhos na tela do computador, gravar esses desenhos e continuar trabalhando neles mais tarde. Foi uma revolução. Grandes empresas apostaram no novo campo e vários programas foram desenvolvidos. Muitos dos conceitos usados hoje na modelagem de objetos tridimensionais baseiam-se em soluções propostas pelo Sketchpad.
A computação gráfica conquistou rápido a indústria, a televisão e as agências de publicidade. A própria SUPER, em 1992, teve uma propaganda na TV feita em computadores pela produtora paulista Vetor Zero. Também foi fazendo publicidade que Clóvis Vieira começou a mexer com a nova técnica. Em 1990, teve a idéia de fazer um longa-metragem de animação trocando os métodos tradicionais pelo computador. Em 1992 já estava produzindo as primeiras seqüências, num vulgar PC 386 hoje chamado pela equipe de “vovô”.
Para quem não sabe, Cassiopéia é uma constelação próxima de Andrômeda. No título do filme a palavra ficou sem acento, para facilitar a compreensão em países cujas línguas não usam acentuação. A história mostra quatro simpáticos seres, meio homens, meio robôs, que tentam salvar um pequeno planeta de invasores liderados pelo maligno Shadowseat. Para isso, contam com a ajuda do cientista Leonardo, personagem inspirado no gênio renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519).
Cavernas e ilusões óticas
As primeiras seqüências de figuras desenhadas pelo homem de modo a produzir a sensação de movimento foram encontradas em cavernas pré-históricas. Mas os aparelhos de animação só surgiram no início do século XIX. Eram uns discos com várias imagens coladas que ao ser rodados davam a idéia mobilidade. O que possibilitou a criação desses engenhos foi a descoberta da persistência da visão, capacidade que o cérebro tem de reter uma imagem vista pelo olho por um instante a mais após ter deixado de ver tal imagem. Essa ilusão ótica é a base do cinema, nada mais que uma sucessão de fotos que, projetadas à velocidade de 24 quadros por segundo, aparentam estar se movendo.
O truque não muda no cinema digital. Em Cassiopeia, cada quadro é montado separadamente para depois ser animado. “Gastei uma média de 8 minutos por cena para terminar o filme em menos de quatro anos”, conta Clóvis Vieira. Só depois ele transferiu as imagens para a película. Para isso usou, nos Estados Unidos, uma máquina especializada em ler a informação digital e gravá-la em filme. Processo que levou dois meses.
Como nascem os personagens virtuais
A modelagem tridimensional de Cassiopeia.
1 – 2 Um a um
O filme foi feito no programa gráfico Topas Animator, da empresa americana Crystal Graphics, o mais usado hoje em animação, pela simplicidade, eficiência e baixo preço. Todos os personagens e objetos foram desenhados um a um em três dimensões. Repare como a estante e todos os seus livros são figuras independentes e não um desenho chapado numa única face, como na animação tradicional.
3 – Partes móveis
Todos os personagens principais do filme são obra de Clóvis Vieira. Cada uma das partes (braços, dedos, olhos) de Chip (acima) foi modelada à parte. O humanóide compõe-se, portanto, de pedaços quase autônomos. Dessa forma, os animadores têm domínio completo de seus movimentos. Ele pode piscar um olho, apontar com um dos dedos ou sorrir, desde que lhe seja ordenado. É como um robô virtual.
Fotografias que se mexem
Século XIX Discos mágicos
Surgem os primeiros aparelhos de animação. Discos nos quais se colavam fotografias e quando rodados davam a impressão de movimento. Um deles, criado em 1893 pelo francês Georges Demeny, ficou conhecido como A Dançarina (foto). Junto com os flip-books, livrinhos com desenhos em sequência que quando folheados parecem se mexer, esses engenhos deram origem ao cinema e ao desenho animado.
1914
Popularização
Os mais antigos desenhos animados foram feitos pelo francês Emile Cohl e vistos por pouca gente. Mas os americanos aprenderam depressa, abriram estúdios e começaram a produzir os chamados cartoons em escala industrial. Um desses pioneiros dos EUA foi Winsor McCay que, entre outros desenhos, produziu o popular Gertie, o Dinossauro (foto), em 1914.
1928
Imagem e som
O cinema, até então mudo, ganha som com o filme O Cantor de Jazz. No mesmo ano surge um novo nome na indústria cinematográfica, Walt Disney, que produz o primeiro desenho animado sonorizado, Snowboat Willie. O filme fez muito sucesso e tornou conhecido o então violento e até hoje engraçado Mickey Mouse (foto).
Teatro de bonecos nos bastidores
Como os personagens de Cassiopéia ganharam movimento.
1 – Animação realista
Os artistas construíram cada uma das situações movimentando os personagens passo a passo. Depois, as seqüências eram animadas, também no programa Topas Animator. Profissionais como Sérgio Esteves, especialista em teatro de bonecos, ajudaram a dar mais realismo ao filme.
2 – Câmera invisível
Olhe para a cena acima e compare com a anterior. Parece que o cenário de fundo se mexeu? Na realidade quem andou foram os personagens e a câmera, que se deslocou para a direita. Não uma câmera normal, mas uma virtual, que pode ser posicionada onde o animador quiser.
3 – Luzes, ação
A iluminação é importante na composição dos planos. Há vários tipos de luz. Ela pode tomar todo o ambiente de maneira uniforme ou ser distribuída em fachos posicionados à vontade, dando até a idéia de brilho solar, se for preciso. Repare como o spot focaliza as testas dos personagens acima.
Caça aos erros
Para saber se uma seqüência está boa, os programas têm um recurso que permite rodar a animação com os objetos ainda sem cores e texturas. Dessa forma, a cena é processada em menos tempo e fica mais fácil encontrar possíveis erros.
Três dimensões
Em qualquer cenário, cada componente é modelado separadamente. Até as imagens das telas que se vêm bem ao fundo na foto ao lado são formadas por partes tridimensionais (veja destaque), que podem ser movimentadas e posicionadas como o animador quiser.
A vez do computador
1937
Primeiro longa
Clássico dos clássicos, Branca de Neve e os Sete Anões (foto) é lançado, estabelecendo um novo padrão de qualidade na história da animação. É um dos primeiros filmes coloridos e o primeiro longa-metragem de animação.
1982
Computação gráfica
Tron, ficção científica da Disney (foto), usa pela primeira vez a computação gráfica para efeitos especiais. Conta a história de um engenheiro que enfrenta inimigos no interior de um computador. Um bom filme mas que fracassou na bilheteria, talvez porque o público não estivesse preparado para sua modernidade.
1991
Cenários virtuais
Estréia A Bela e a Fera, grande sucesso da Disney no qual, poucos sabem, o computador trabalhou muito. Alguns personagens, como os talheres dançantes, e a maioria das paisagens vistas ao fundo (foto) foram feitos com a ajuda de bons chips.
1995
Brinquedos vivos
O mundo se espanta com Toy Story,dirigido pelo animador John Lesseter. Mais que a simpática história dos brinquedos que ganham alma, como o cowboy Woody ou o astronauta Buzz Lightyear (foto), o grande responsável pelo sucesso foi o anúncio de que esse era o “primeiro filme todo feito em computador”.
Segredos de um sucesso tecnicamente perfeito
Sofisticado arsenal garantiu a qualidade das imagens de Toy Story.
Enquanto Toy Story estava sendo feito, o prédio da Pixar Animation Studios, empresa americana de animação por computadores que Steve Jobs, fundador da Apple, comprou em 1986 do diretor de cinema George Lucas, tinha um cômodo conhecido como “sala Sun”. Nessa sala ficavam as 117 estações de trabalho da empresa americana Sun Microsystems (foto ao lado) usadas para fazer o filme. Eram computadores com dois a oito processadores, os cérebros eletrônicos da máquina. O poderoso equipamento trabalhou 24 horas por dia num total de 800 000 horas para produzir as imagens vistas no cinema.
Em Toy Story, a Pixar usou diversas técnicas e programas que, juntos, geraram imagens de qualidade inédita. Para cada pixel (ponto da imagem), os computadores realizaram cerca de 500 000 operações matemáticas. Em alguns casos, o detalhamento chega a parecer absurdo. Sabe-se que cada árvore mostrada no filme tem 10 000 folhas e que Sid, o menino malvado, tem 15 977 fios de cabelo. Mas de fato, como aponta Clóvis Vieira, nem tudo saiu do computador. Para construir os personagens, fizeram-se previamente moldes de argila, madeira e plástico. Só depois os bonecos foram passados para o computador, por meio de sensores de leitura ótica, para ganhar as cores e texturas definitivas (veja foto acima).