Estrelas à vista
Astrônomos brasileiros terão cadeira cativa em um dos telescópios mais poderosos do mundo, o Gemini. Com esse farol inteligente espionando o céu, poderão observar até o nascimento do Universo.
Flávio Dieguez, com André Santoro
O ar, como todos podem ver, é cristalino como o vidro. E não deforma nem desvia as imagens que chegam ao olho. Certo? Nem tanto, afirmam os astrônomos. Eles sabem o que dizem, pois a luz das estrelas tem de atravessar os 100 quilômetros de espessura da atmosfera e, nesse percurso, encontra muitos acidentes. São regiões quentes, outras frias, gases e nuvens densas que mudam a trajetória dos raios de modo imprevisível. A imagem é capaz de dançar no ar, como uma folha seca, e, ao atingir o solo, torna-se mais uma ilusão de ótica do que um retrato fiel do astro.
Imagine o ônibus espacial americano Columbia voando a 300 quilômetros de altura. Você pode enquadrá-lo por um telescópio. Mas jamais terá certeza se ele está realmente na direção que você aponta, a 1 metro para a esquerda ou a 1 metro para a direita. Essa imprecisão aumenta muito com a distância: com o ônibus espacial a 600 quilômetros de altura, ela cresce para 3 metros. Ou seja, quando o afastamento duplica, a dúvida triplica.
Até alguns anos atrás, a valsa das imagens deixava os astrônomos de cabelos brancos porque iludia todos os telescópios instalados no solo. A solução foi criar instrumentos inteligentes, como o Gemini, que o Brasil está ajudando a construir junto com Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Argentina, Chile e Austrália. Serão, na verdade, dois aparelhos idênticos. Um deles foi inaugurado em março, no Havaí, e o outro, no Chile, está programado para funcionar no final do ano. “Com isso, os brasileiros poderão fazer pesquisa de alta qualidade durante trinta anos”, diz o astrofísico João Steiner, da Universidade de São Paulo e colunista da SUPER. Nesta reportagem você vai conhecer as mágicas que o Gemini emprega para corrigir os defeitos do ar e, assim, revelar a verdadeira face das estrelas e das galáxias mais distantes do Universo.
Espelho é capaz de conversar com a atmosfera
O Gemini deve a sua altíssima qualidade a uma combinação magistral de equipamentos inovadores. A peça-chave desse esquema é o espelho de aumento, capaz de mudar de forma até trinta vezes por segundo enquanto são feitas as observações. Sensores acoplados a ele avaliam as alterações imprevisíveis e as imperfeições do ar acima do instrumento e disparam ajustes no vidro, corrigindo automaticamente as distorções que a atmosfera impõe às imagens dos astros (veja infográfico à esquerda).
Esse diálogo permanente é a vantagem mais importante do Gemini em relação aos outros grandes equipamentos modernos. Mas não é a única. Outra virtude é que seu espelho tem revestimento de prata, e não de alu-mínio, como nos telescópios convencionais. Isso lhe dá o poder de captar raios infravermelhos.
Esse tipo de radiação, tal como a luz, é composta de energia eletromagnética e também é emitida pelas estrelas e pelas galáxias. Mas tem a vantagem de atravessar os obstáculos que bloqueiam os raios luminosos, como as grandes massas de poeira e gás existentes no espaço. Com o olho voltado para o brilho infravermelho do Cosmo, o Gemini escancara janelas até há pouco fechadas à pesquisa astronômica. Através delas objetos de importância decisiva para a compreensão do Universo poderão ser vistos com nitidez sem precedentes.
Imagens nunca vistas
Os astrônomos dos sete países do Projeto Gemini já têm alvos prioritários no céu. O novo telescópio permitirá, pela primeira vez, ver o núcleo da Via Láctea, onde pode haver um buraco negro gigante escondido. Outras revelações serão os quase 100 planetas bebês já detectados, recém-formados em torno de outras estrelas, e as galáxias ultra-remotas, surgidas logo depois do nascimento do Universo.
“Nós vamos utilizar o telescópio que, em vários aspectos, é o melhor que existe”, afirmou à SUPER a astrofísica Beatriz Barbuy, da Universidade de São Paulo, representante brasileira na direção do Gemini. “Ainda mais porque o Gemini pode ser aprimorado no futuro, enquanto o Hubble e o Keck estão consolidados, não podem mais mudar”, acrescenta João Steiner. Entre outras coisas, será possível aumentar a rapidez com que os sensores avaliam as condições da atmosfera para ajustar o foco do espelho. Bastará isso para refinar as correções feitas nas imagens e tornar, aos olhos do Gemini, o ar cristalino e transparente como nunca se viu na história da Astronomia.
Mais liso impossível
O telescópio Gemini tem um espelho de aumento com polimento impecável. Tanto que, se ele fosse ampliado até ficar do tamanho do território brasileiro e suas imperfeições crescessem na mesma proporção, mesmo assim nenhuma delas teria mais do que 6 milímetros de altura.
Na Internet
https://www.us-gemini.noao.edu
fdieguez@abril.com.br
Algo mais
Mesmo para a estrela mais próxima de nós, a Alfa Centauri, situada a 380 trilhões de quilômetros da Terra, a dúvida quanto à sua verdadeira posição no espaço é de 1,7 bilhão de quilômetros.
O poder do foco
Compare os três telescópios mais potentes do mundo com o olho humano.
1. Olhos de águia
A precisão do Gemini é tão grande que, se ele estivesse instalado em Porto Alegre, veria os faróis de um carro, bem separados um do outro, em Belém, a 4 000 quilômetros de distância.
2. Livre da atmosfera
O Hubble também tem alcance de 4 000 quilômetros. Mas, como seu espelho de aumento é menor – 2,4 metros de diâmetro, em relação aos 8,1 metros do Gemini –, capta menos luz. Os faróis seriam vistos mais apagados.
3. O maior do mundo
O Keck tem o maior espelho do mundo, com 10 metros de diâmetro. Mas sua visão é mais curta do que a do Gemini. Se estivesse em Porto Alegre, só poderia separar os faróis de um carro até 2 000 quilômetros de distância.
4. Confusão visual
O olho humano só distingue bem os objetos a distâncias relativamente curtas. Acima de 3 quilômetros, você já não é capaz de discernir um carro de uma motocicleta.
Retina ajustável
Como o Gemini anula as distorções provocadas por nuvens e gases.
1. Um canhão de laser lança um raio sobre a camada de sódio existente a 90 quilômetros de altitude na atmosfera, criando aí uma estrelinha artificial.
2. Ao chegar ao solo, o brilho da falsa estrela fornece dados detalhados sobre as demais camadas de ar da Terra.
3. Sensores coletam essas informações e as remetem para o espelho flexível do telescópio.
4. Sob o espelho, 120 pinos fazem pressão alternadamente, deformando o vidro na proporção de até 1 milésimo de milímetro. Assim se compensam as distorções das imagens provocadas durante a passagem pela atmosfera.
Visão infravermelha
O foco do Gemini aumenta a visibilidade do céu.
1. Galáxia revelada
Nuvens de poeira cósmica bloqueiam quase toda a luz que emana do núcleo da Via Láctea. Mas o Gemini poderá vê-la com clareza porque, graças a seu espelho revestido de prata, capta os raios infravermelhos, que trespassam as massas de pó. Para obter imagens tão boas quanto as dele, um telescópio sensível apenas à luz visível precisaria ter um espelho de aumento duas vezes maior do que o território da França.
2. Dilúvio luminoso
Com 8 metros de diâmetro e uma área de 96 metros quadrados, o espelho do Gemini capta uma quantidade enorme de luz. Com isso, obtém imagens de altíssima nitidez. Para absorver a mesma luminosidade que ele, seriam precisos 2,5 milhões de olhos humanos.