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O feirão das armas

Rifles, mísseis, tanques, bombas, drones - e uma multidão de 30 mil visitantes sedentos para testar e fotografar os últimos lançamentos. Passeie conosco pela LAAD: a maior feira de armas da América Latina

Por Emiliano Urbim
Atualizado em 4 nov 2016, 19h06 - Publicado em 15 dez 2015, 18h15


O senhor na minha frente, paletó escuro sobre o braço direito, aborda a moça do guichê do Riocentro em tom amistoso. “Posso entrar armado?” Você sabe que está indo para um lugar peculiar quando essa questão precisa ser esclarecida. A resposta, aliás, é “não”. Há um guarda-volumes especial para armas na entrada da LAAD (Latin American Aerospace and Defence), principal feira latino-americana de defesa e segurança. Sorridente, o senhor agradece e dá meia-volta, e eu tento adivinhar onde pode estar o seu revólver. A LAAD é realizada a cada dois anos, desde 1997, sempre no Rio de Janeiro.

É um megaevento, em que 600 expositores mostram seus novos equipamentos, serviços e tecnologias aos potenciais clientes: empresas de segurança, forças armadas e polícias do mundo inteiro (este ano, vieram delegações oficiais de 71 países). Os valores dos negócios fechados aqui não são divulgados, mas a indústria militar mundial movimenta US$ 1,8 trilhão por ano, ou toda a economia do México e da Argentina somadas. Nesse bolo, a fatia do Brasil ainda é pequena, mas, mesmo em tempos de crise, está aumentando: foi de menos de US$ 1 bilhão em 2002 para US$ 3,7 bilhões hoje, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde).

Grande parte dos 30 mil visitantes, no entanto, não pensa em negócios. Eles querem mesmo é se divertir. Militares e civis lotam ônibus de turismo para ver armas de fogo, aviões, drones, helicópteros, blindados. Principalmente armas de fogo. Não é um passeio barato: para quem não é profissional da área de defesa ou segurança, o ingresso custa R$ 100 (e, apesar da onipresença de armas, a praça de alimentação é um verdadeiro assalto: uma reles fatia de pizza custa R$ 12).

No hall de entrada, após observar o sujeito do começo do texto (armado? curioso? perigoso?), pego meu crachá. Noutro canto, tiro uma foto e atravesso um detector de metais. Até aqui, a decoração é neutra. As roupas dos atendentes, os revestimentos da parede e do chão, a iluminação: é tudo escuro, discreto, sereno. Nenhuma referência explícita ao, digamos, conteúdo da feira. Se fosse o Salão do Automóvel ou a Flip, tenho certeza que já teria visto algo mais chamativo, como um motor voador ou um livro gigante. É preciso subir uma longa rampa e atravessar um corredor até o Pavilhão 2 para finalmente entrar na feira. Desse ponto em diante, tudo fica claro – literalmente, pois há muita luz e as paredes dos estandes são todas brancas.

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O primeiro expositor é a Taurus, maior fabricante de armas do País. Seus revólveres, pistolas, submetralhadoras, rifles, carabinas e espingardas, todos devidamente descarregados, estão disponíveis em balcões envidraçados para admiração e manuseio. Quem quiser pode ver e pegar as armas, sentir seu peso, fazer mira em um alvo imaginário ou, uma opção extremamente popular, tirar selfie com a arma em punho. O som que vem das peças sendo travadas e destravadas (tlec, plec, clic) pode deixar o observador meio tenso. Ao lado da Taurus, está a Glock: uma concorrente austríaca, cujo estande tem a mesma proposta: muito público e sinfonia de ruídos secos.

Cruzando os corredores, surgem outras atrações. Miniaturas de reatores nucleares com luzinhas piscantes, lanchas que parecem mais adequadas ao lazer do que à defesa e segurança, até um simulador de veículos da construção civil (parece um fliperama antigo).

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As roupas identificam as tribos. Jovens com fardas da Marinha, do Exército e da Aeronáutica circulam pelos corredores – alguns compenetrados, outros como se estivessem na Disney. Os policiais estão sem uniforme, mas é fácil identificá-los: deve ser o jeito de andar, ou os óculos escuros. Também há sujeitos de terno arrastando malas de rodinha, sinal de que estão chegando ou indo para o aeroporto.

Na parte externa, há vários blindados. Um choque de realidade para quem mora no Rio, como eu: pois são essas as máquinas usadas na ocupação das favelas cariocas. Vistoriando cada um deles, há um grupo de estudantes de DGEI. Eu também não conhecia a sigla: pronuncia-se “Dê-Gei” e significa Defesa e Gestão Estratégica Internacional, um curso superior da UFRJ. O aluno Athos Balmont garante que todos já saem praticamente contratados pelas Forças Armadas brasileiras. Outra universitária feliz de estar na LAAD é Lena Lustosa, que faz Relações Internacionais e, durante a feira, trabalha como recepcionista no estande de uma empresa alemã. “É uma experiência interessante, fico mais próxima do que estou estudando”, diz Lena, que foi selecionada por falar francês e inglês. Quanto às cantadas em português, testemunhadas pela reportagem ali e em outros estantes, ela leva na esportiva. “Me faço de desentendida.”

Enquanto isso, um sargento da Marinha que pediu para não ser identificado percorre a feira meio desanimado. “Fico triste de não ter toda essa tecnologia à nossa disposição”, diz ele, que faz parte do contingente que ocupa a Favela da Maré. Ele estava de folga e foi à feira para ver uma espécie de bomba anti-celular, que bloqueia os aparelhos de uma área específica. Seria ideal para pegar de surpresa traficantes e milícias – ou, como ele diz, os APOP, Agentes Perturbadores da Ordem Pública.

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Estacionado em um canto está um blindado chamado Guarani, “projeto estratégico do Exército”. Trata-se de uma “plataforma 6×6” (mesma lógica de 4×4, ou seja, todas as seis rodas têm tração), com “flexibilidade”, “ação de choque” e “letalidade seletiva”. As expressões entre aspas vêm de um panfleto informativo – todos os expositores da LAAD oferecem folhetos e catálogos coloridos impressos em papel bom, o que me leva a pensar quantos daqueles bilhões de dólares são gastos em gráficas.

Guardando o Guarani está uma tenente. Simpática, Camila Leão comenta que a maioria dos interessados pelo blindado são civis curiosos, em busca de informações como nível de blindagem e calibre das armas. Quando a conversa sai dos detalhes técnicos (pergunto “quanto custa um desses?” e se “ele pode ser usado na invasão de uma favela?”), as respostas se tornam evasivas e ela me pede licença. Precisa estar a postos caso mais alguém queira conhecer o veículo.

Nos estandes brasileiros, os expositores respondem às minhas (primeiras) perguntas repetindo o que está escrito nos folhetos. Os gringos são mais desconfiados. Vários, ao identificarem meu crachá de repórter, polidamente interrompem a conversa. Ouço no interview (“sem entrevista”, em inglês) em todo tipo de sotaque, inclusive o argentino. Trata-se, afinal, de um evento bem específico. A imprensa não é proibida, mas também não chega a ser bem-vinda. É tolerada.

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Hora da pizza superfaturada. Enquanto como, reparo nas mesas ao meu redor. Vejo um cara com tapa-olho, e imagino se é ferimento de guerra. Reparo em grupos de executivos negros, e me lembro dos senhores da guerra da África. Uma mesa de israelenses me faz recordar dos conflitos no Oriente Médio. Mas aqui, na praça de alimentação, não há violência. Só negócios – e pizza.

Viro uma esquina e, de repente, um nome familiar: Odebrecht. Assim como outras marcas conhecidas que surgem pelos corredores (Rolls-Royce, GE, DuPont), a empresa brasileira está aqui com seu braço da indústria de armamentos, a Odebrecht Defesa e Tecnologia (ODT), envolvida com submarinos e mísseis. Ali, o gerente de qualidade Luiz Carlos Moreira pede que eu o fotografe (com a câmera dele). E aí explica que o objetivo das empresas ao investir em estandes grandes, como o da ODT, não é realizar vendas imediatas, mas fixar a marca. “Você chama a atenção primeiro. Isso dá início a conversas, e os negócios são feitos em uma oportunidade futura”, diz Luiz.

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Se receber um carro zero de uma concessionária envolve certa paciência e burocracia, imagine a negociação necessária para adquirir um helicóptero russo, um foguete chinês ou belas metralhadoras Beretta (design italiano, sabe como é). Foram dez anos de discussão até que, em 2013, o Brasil adquirisse 36 caças Grippen NG da sueca Saab. Na feira, há uma réplica do Grippen. O casal Rafael e Kelly Fernandes, de Araruama, na região dos Lagos carioca, encarou a fila para tirar foto no cockpit do avião e ganhar um boné de brinde. Fixação da marca.

A tarde está acabando, e com ela a feira (é o último dia de exposição). Ainda que o encerramento oficial esteja marcado para as 17h, ali pelas 15h30 o clima já é de fim de feira. A maioria dos expositores dá os trabalhos por encerrados, e alguns até confraternizam em torno de garrafas de uísque. Mas ainda há um ponto cheio de visitantes, que se recusam a ir embora. No estande da Taurus, as armas descarregadas ainda disparam. TLECS, PLECS e CLICS.

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