Traumas de guerra
O Exército americano transforma homens em máquinas de matar, mas não os ensina a continuar vivendo. Milhares são vítimas de estresse pós-traumático, uma doença que condecora soldados com paranóia, vícios e suicídio
Faluja, Iraque, 9 de novembro de 2004. No telhado de um prédio, o cabo James Blake Miller, fuzileiro naval dos EUA, tentava se proteger e manter os insurgentes o mais longe possível dele e de seus companheiros. No agito do tiroteio, seus companheiros quase atingiram Luis Sinco, fotógrafo do Los Angeles Times que acompanhava a unidade e que, findo o combate, tirou um retrato de Miller.
No dia seguinte, centenas de jornais traziam a imagem de Miller, cigarro pendurado nos lábios, o rosto coberto de sangue e sujeira. Ainda que a contragosto, virou celebridade, com direito a carta do presidente e dispensa honrosa – ninguém queria que o Marlboro Marine, como ficou conhecido, se machucasse. Mas o estrago já havia sido feito.
Feliz por estar de volta, o marine não se preocupou quando a esposa disse que ele estava apertando o pescoço dela durante a noite. Achou que era passageiro, assim como seus pesadelos sobre o Iraque. Só depois de olhar pela janela e ver o corpo de um iraquiano na calçada, Miller resolveu buscar ajuda profissional de um psiquiatra militar. Diagnóstico: o herói estava com trauma de guerra. Como tantos treinados para a guerra, ele não conseguia achar a paz.
Tragédia ignorada
Os EUA ficaram no Iraque por mais tempo do que lutaram na 2ª Guerra Mundial. Foram 4 anos na luta contra Hitler, e 8 de conflitos pós-Saddam. Se contarmos as operações no Afeganistão, 1,5 milhão de americanos serviram em batalha entre 2001 e 2007. Desses, 4 mil morreram e 60 mil foram feridos ou caíram doentes. Mas nem todas as cicatrizes são visíveis. Na mente de alguns soldados, a batalha nunca termina.
O principal problema psicológico que aflige os ex-combatentes é o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que inclui flashbacks do combate, paranóia constante e a incapacidade de funcionar no ambiente familiar, social e profissional. É o nome atual do que ficou conhecido como trauma de guerra.
Não é uma honra exclusiva de militares. O TEPT pode atacar qualquer vítima ou testemunha de desastres naturais, incidentes terroristas, acidentes sérios ou ataques violentos – qualquer evento aterrorizante em que a morte ou ferimentos graves são possíveis.
A diferença é que estatísticas apontam que 5% da população desenvolve algum nível de estresse pós-traumático, enquanto ao menos 10% dos combatentes desenvolvem o problema plenamente.
Esse problema é turbinado pelas condições das guerras atuais, onde as tropas lidam com múltiplos realistamentos por períodos estendidos, curtos períodos de sono, operações de 24 horas sem descanso, missões alteradas constantemente e muito conflito de guerrilha, onde combatentes e civis se misturam. Na 2ª Guerra Mundial, onde o combate era menos complexo e os inimigos mais claros, 1 a cada 20 veteranos apresentaram sintomas relacionados ao TEPT, 5% do total, índice que subiu para 15% na Guerra do Vietnã. Com o conflito do Iraque ainda ativo, não há dados definitivos, mas especialistas estimam que sejam uns 30%. Um estudo de 2004 aponta que 40% dos soldados que voltaram da “guerra contra o terror” procuraram tratamento psicológico. E não foi para superar fim de relacionamento. “A guerra significa algo diferente para nós que já olhamos através da mira de rifle apontado para outro ser humano, para aqueles que viram uma menina de 9 anos ser atingida por fogo cruzado. Estou comentando somente uma fração do que ainda me atormenta em relação a minha experiência no Iraque”, diz um soldado que serviu como médico em 2004 e escreveu seu depoimento em um site de veteranos.
E os dados são apenas dos que buscaram ajuda. Um estudo do Departamento de Defesa dos EUA mostra que 60% dos fuzileiros navais que estiveram no Iraque e tiveram sintomas de depressão grave e TEPT acabaram não procurando ajuda por medo de prejudicar sua carreira ou de ser tratados de forma diferente pelos companheiros de farda.
Cuca fundida
Nossa falta de atenção e compreensão com os traumas de guerra pode vir da dificuldade que temos para entender o que se passa na mente de suas vítimas.
Claro, dá para ter uma vaga idéia, já que traumas e desastres são parte da experiência do ser humano – a evolução nos dotou com habilidade nata de adaptação a ambientes e circunstâncias variáveis. Estatisticamente, 50% de nós sobrevive a ao menos um evento traumático ao longo da vida. E, após um trauma, o normal é continuar revivendo o episódio na memória: é a maneira que o cérebro tem de processar e aprender com o estresse para depois prosseguir com sua programação normal.
O TEPT ocorre justamente quando o cérebro passa por tantos eventos traumáticos que vai perdendo, aos poucos, a capacidade de absorver esses impactos. Nesse caso, recordar é viver com medo. Richard Pierce, um veterano do Vietnã, descreve o desenvolvimento gradativo do TEPT dentro da mente de um indivíduo: “Em seus estágios iniciais, eu acho que os pesadelos, o isolamento e a ansiedade são reações defensivas naturais a uma experiência muito traumática. Nas primeiras etapas, é como uma dor de dente que incomoda. Se não for tratada, a infecção cresce e apodrece tudo. Nesse momento, se torna uma doença”, diz ele no livro de Ilona Meagher Moving a Nation to Care (algo como “Fazendo uma Nação se Importar”, como todos neste texto, sem edição brasileira). Se não for tratado de maneira correta, o TEPT vira um dano permanente, como um arranhão em um vinil.
Edward Tick, um psicoterapeuta clínico com 25 anos de experiência no tratamento de veteranos, em seu livro War and the Soul (“A Guerra e a Alma”), define o TEPT como uma “consciência de guerra congelada”. O tempo parece estar parado, enquanto aquele que sobreviveu ao trauma relembra o evento através de recordações inesperadas e pesadelos. “Cada vez que as situações são revividas, o indivíduo fica mentalmente e fisicamente exaurido. Suas ansiedades e frustrações aumentam e ele gradualmente vai perdendo o controle”, escreve Tick. A vítima começa a “organizar a sua vida em torno do trauma. Seu trabalho, suas relações familiares e sua saúde começam a se deteriorar”.
Aprender a matar
No passado, os generais formavam seus batalhões catando cidadãos comuns por onde passavam. Eram soldados de uma guerra só: se sobrevivessem, voltavam para a sua antiga vida.
Hoje, a idéia é criar soldados profissionais, que não hesitem quando chega a hora de puxar o gatilho. Usando as técnicas mais eficientes de condicionamento psicológico e controle mental (se quiser falar mal, pode chamar de “lavagem cerebral”), o treinamento militar pega uma pessoa que nem você, que só conhece tiro da televisão e tem nojo de imaginar que o bife já foi vaca, em uma máquina de matar – e dane-se se a máquina pifar depois. James Blake Miller, o Marlboro Marine da abertura do texto, fez curso de pastor evangélico por correspondência e até cogitou ser mineiro de carvão antes de se alistar. Dois anos depois ele estava em Faluja, mandando tanque derrubar prédio com 40 pessoas dentro e fumando um cigarrinho logo depois. “Uma coisa é quando estão atirando em sua direção e você dá alguns tiros de volta para silenciar o outro lado. Outra coisa, completamente diferente, é quando você olha para um outro ser humano. E ele sabe que você está tentando matá-lo. Para fazer o seu trabalho em combate, você tem que ser capaz de trancar todas as suas emoções”, diz ele no livro de Meagher.
Antes de serem lapidados como instrumentos letais de guerra, os recrutas têm que superar o que o autor Dave Grossman chama de “fobia humana universal”: a aversão que a maioria das pessoas tem de tirar a vida das outras, ausente em apenas 2% dos os indivíduos dentro das Forças Armadas. Em seu livro, On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society (“Sobre Matar: O Custo Psicológico de Aprender a Matar na Guerra e na Sociedade”), Grossman explica que “no interior da maioria das pessoas existe uma intensa resistência na hora de tirar a vida de um outro ser humano. É algo tão forte que alguns soldados morrem em combate por não conseguir superá-lo”.
O Exército dos EUA usa um sistema, chamado de Controle Total, que gera 20 mil soldados por ano – nenhuma outra instituição militar na história treinou tantos homens para matar em tão pouco tempo. Graças ao programa, o número de soldados que falham na hora de rsponder ao fogo inimigo caiu de 70% para praticamente zero. O programa que cria os combatentes perfeitos, no entanto, é ineficaz na hora de evitar que eles tenham danos psicológicos resultantes da tarefa em que são tão bons. “As pessoas comentam: ‘Não sei como você conseguiu fazer aquilo’. E olham para você imaginando como você deve ter mudado, imaginando se você perdeu todo o dilema moral associado a tirar a vida de outra pessoa”, escreveu John Crawford, veterano do Iraque, no livro The Last True Story I’ll Ever Tell (“A Última História Verdadeira Que Eu Contarei”).
Cessar-fogo
Hoje, os soldados que voltam para casa encontram uma América com um clima muito diferente daquele que os veteranos do Vietnã encontravam mais de 40 anos atrás. Apesar de a maioria da população reprovar a invasão do Iraque, os freedom fighters (“guerreiros da liberdade”) são tratados como heróis, diferentemente dos engravatados que os mandaram para lá.
Além disso, existem aproximadamente 250 ongs que lhes oferecem serviços de qualificação profissional, emprego e aconselhamento. Mas, apesar disso, a economia soluçante não está preparada para absorver a quantidade de gente que retornará para casa nos próximos anos. Milhares de ex-combatentes desempregados são um baita problema econômico, mas também psicológico. Sentir-se rejeitado pela sociedade pode desencadear a depressão, a raiva, o medo, o sentimento de culpa e os vícios que juntos compõem o quadro de transtorno de estresse pós-traumático.
Ainda por cima, o Department of Veteran Affairs (conhecido como VA, órgão federal responsável pelos veteranos) e organizações privadas já estão no limite de capacidade, ainda atendendo soldados de conflitos anteriores, como a Guerra do Golfo (de 1991, aquela em que o Bush pai varreu Saddam do Kuwait).
Segundo dados da Coalizão Nacional dos Veteranos Sem-Teto dos EUA, 1 em cada 6 dos 3 milhões de mendigos americanos são veteranos de guerra. Desse grande exército de 500 mil, apenas 20% são atendidos pelo VA.
O Marlboro Marine é quase um deles. Quatro anos depois da foto que o deixou famoso, James Blake Miller está divorciado do seu amor de colégio e morando em um trailer nos fundos da casa do seu pai, em uma cidadezinha do Kentucky. Ele sempre quis ser policial, sonho que o diagnóstico de TEPT tornou impossível. Aceitou um emprego em uma oficina mecânica de motos e, por conta disso, acabou entrando para uma gangue local de motoqueiros arruaceiros que vive arranjando confusão com a polícia.
A princípio um defensor da Guerra do Iraque, Miller acabou renegando o conflito. “O que ganhamos como país? O que realmente conquistamos além da perda de um monte de gente boa?”, perguntou ele ao seu descobridor, Luis Sinco, em uma reportagem do Los Angeles Times. Talvez um dia os historiadores cheguem a um consenso sobre essas questões. Mas os traumas dos veteranos só serão superados se cada um deles encontrar suas próprias respostas.
Pós-guerra
As conseqüências da guerra permanecem na mente muito tempo depois do último tiro. Conheça os sintomas do estresse pós-traumático
Eternamente no front
O sujeito segue pensando na guerra da qual voltou, querendo ajudar os companheiros e matar inimigos.
Vícios diversos
Qualquer coisa (álcool, maconha, cocaína, remédios) que ajude a esquecer as experiências ruins.
Paranóia
Em inglês, a expressão é jumpiness, a sensação de ficar alerta o tempo todo.
Flashbacks
As memórias do combate são tão vivas que parecem reais, a ponto de ex-combatente às vezes não saberem diferenciar lembranças de realidade.
Rejeição
Muitos veteranos se sentem traídos por Deus e pela sociedade, se revoltam com o seu destino, acham que o mundo lhe deu as costas. Às vezes, é verdade.
Isolamento
Aversão ao contato social, falta de ânimo para interagir com outras pessoas.
Culpa por sobreviver
O soldado convive com os companheiros 24 horas por dia, morre e mata por eles e conta com a mesma consideração. A morte de um desses “irmãos” faz martelar a pergunta: “por que não eu?”
Suicídio
A soma de todos esses fatores pode levar a essa atitude extrema.
Um problema, vários nomes
O estresse pós-traumático existe desde que a guerra é guerra: Heródoto, o historiador grego, conta a história de um guerreiro ateniense que ficou cego na Batalha de Maratona (490 a.C.), apesar de “não ter sido atingido em nenhuma parte do corpo”. Acompanhar a seqüência de diferentes nomes para o mesmo problema mostra como cada época encarou seus conflitos armados e psicológicos.
Nostalgia
Conflito: Guerras Napoleônicas, Guerra Civil Americana (século 19).
Origem: Acreditava-se que os veteranos só tinham problemas porque estavam com saudade do campo de batalha. Nada que um novo combate não resolvesse.
Neuroses de guerra
Conflito: 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
Origem: De sumo interesse de Freud e seus discípulos, relacionava o trauma de guerra com outros pré-existentes.
Cansaço de Batalha
Conflito: 2ªGuerra Mundial (1939-1945) e Guerra da Coréia (1951-1953).
Origem: como o próprio nome indica, a crença geral era de que o sujeito só precisava de um descanso.
Síndrome pós-vietnã
Conflito: Guerra do Vietnã (1959-1975).
Origem: A intenção era colocar os sintomas terríveis como conseqüências de um único conflito, com características particulares, uma espécie de anomalia estatística.
Estresse Pós-Traumático
Conflito: Guerra do Golfo (1991).
Origem: Popularizado nos anos 80, é nome mais usado atualmente, tratando o trauma como um grave problema psicológico.
Para saber mais
LIVROS
War and the Soul (importado)
Edward Tick, Quest Books, 2005.
On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and
Society (importado) Dave Grossman, Back Bay Books, 1996.
DVD
Razões para a Guerra (Why We Fight), 2004, Diretor: Eugene Jarecki