O Napster é só o começo
O público cai no mais respeitoso silêncio e Vivaldi empunha o violino para interpretar o primeiro desses concertos, A Primavera.
Dagomir Marquezi
Feche os olhos e volte no tempo. Você está em Veneza, em algum momento da década de 1720. É uma linda tarde de sol e vai haver uma apresentação pública de seu músico favorito, Antonio Vivaldi.
É ele! Vivaldi surge com sua cabeleira ruiva já embranquecida, agradece os aplausos do público e anuncia um novo conjunto de concertos para violino, Opus 8, números de 1 a 4. Por curiosidade, informa que cada um desses concertos foi inspirado numa das estações do ano.
O público cai no mais respeitoso silêncio e Vivaldi empunha o violino para interpretar o primeiro desses concertos, A Primavera. Você ouve, em primeira mão, uma das mais belas e imortais seqüências de notas musicais já imaginadas por um ser humano.
E, como os ventos de outono, as notas se vão. Você só terá uma nova chance de ouvi-las se conseguir estar no próximo concerto. Ou, claro, se comprar a partitura, tocar violino e ter sua própria orquestra.
Agora abra os olhos, vá até a lojinha da esquina. As Quatro Estações de Vivaldi estão à sua disposição num pedaço de plástico redondo com um furo no meio. Você não precisa tocar ou ler música. Basta apertar play.
Na época de Vivaldi, música era uma arte para se ouvir pessoalmente, ao vivo. Hoje, músicas são gravadas e você compra uma cópia da gravação. O dinheiro que você entrega pela gravação vai, em parte, para o intérprete das músicas, outra parte para quem a compôs. O resto vai para o fabricante do CD, os executivos, burocratas, divulgadores, promotores e cobradores de impostos.
No tempo do vinil e das fitas magnéticas, o poder das gravadoras era absoluto. Reproduzir música era um ato precário, low-tech. Aí veio o CD. O som digitalizado tornou-se praticamente igual ao reproduzido em estúdio. Com o gravador de CD, um disco vendido na loja por 25 reais pode ser copiado para um CD virgem de apenas 1 real.
Com a chegada do MP3, foi possível compactar a gravação digital com pouca perda de qualidade. Finalmente, as músicas se libertaram do meio físico (o disco plástico furado) e começaram a vagar sem dono na internet. Mas as gravadoras ainda não haviam entrado em pânico… até o aparecimento do Napster. Agora, sim, os executivos entraram em desespero. Rasguem as gravatas! Vendam as limusines! Suspendam as férias no Taiti!
“Napster”, em resumo, quer dizer: 1) duas pessoas que nem se conhecem podem trocar música pela internet sem que haja dinheiro envolvido; 2) quando você gosta de uma ou duas músicas de um artista, não precisa pagar por um CD inteiro; 3) artistas já não podem garantir que vão ganhar pela reprodução da música.
Verdadeiras revoluções não acontecem mais com passeatas barulhentas, mas em frente a monitores. O Napster é apenas um símbolo dessa revolução. Sofreu limitações da grande indústria da música, seu público caiu consideravelmente. Logo, as limitações foram dribladas e dez dos cerca de 32 milhões de usuários do Napster se transferiram para sites equivalentes e ainda livres de limitações, como o Audiogalaxy, o Napigator, o Morpheus e o LimeWire.
Essa revolução é um caminho sem volta, que vai trazer meios alternativos para remunerar os artistas. Já as gravadoras tradicionais vão ter que enfrentar uma nova concorrência. Veja o caso da Abacaxi Records. A Abacaxi era uma gravadora imaginária que meu amigo Lu Gomes criou nos tempos do vinil e da fita cassete. Uma piada entre amigos.
Hoje, em tempos digitais, sou sócio dele na Abacaxi. Funciona assim: eu gravo CDs inéditos no mundo inteiro no meu computador. O Lu cria as capas e os rótulos. Tudo – som e imagem – é feito dentro de padrões artísticos equivalentes aos utilizados pela indústria.
Qual o mercado consumidor da Abacaxi? Eu e o Lu. Eventualmente, vira presente a um amigo ou amiga. A Abacaxi não tem (por enquanto) fins lucrativos. Nosso catálogo? Temos os adorados discos de vinil que jamais foram lançados em CD. Eu os gravo no meu computador, depois os remasterizo. O Lu adapta a capa do vinil para o CD. Nas lojas não há CDs dos Illusion ou de Billy Bond. Nós temos. Quem precisa da indústria?
Outra fonte de música para a Abacaxi Records: os artistas que distribuem música grátis por sites como o MP3.com. São músicos excelentes que dificilmente encontrariam espaço numa gravadora tradicional. Enfim: a caixa de Pandora está aberta. Os burocratas vão ter que se acostumar com menos, ou arrumar outras fontes de renda. E cada banda de garagem poderá ter sua própria Abacaxi Records.
Editor sênior da revista Playboy