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Partículas fantasmas do Sol

Capazes de atravessar a terra como se nada houvesse em seu caminho, os neutrinos gerados pela fornalha solar revelam detalhes de sua natureza íntima.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 30 nov 1990, 22h00

Flávio Dieguez

Se o Sol, por algum motivo, parasse de produzir energia, as forças que lhe dão sustentação interna deixariam de existir. Em conseqüência disso, a imensa esfera solar desmoronaria sobre si mesma e explodiria, destruindo a Terra e todos os outros planetas. Por incrível que pareça, porém, durante muitos anos a luz e o calor que o Sol armazena assegurariam sua integridade e nenhum vestígio da catástrofe em andamento transpareceria em sua superfície. Ironicamente, o único sinal de alerta seriam partículas subatômicas, invisíveis e dificílimas de detectar, denominadas neutrinos. Foi, portanto, com grande surpresa que, depois de dar caça aos neutrinos durante duas décadas, os cientistas descobriram que essas furtivas entidades não estavam jorrando do Sol na devida proporção.

Esse fato é tão intrigante, que pelo menos durante algum tempo, chegou-se a imaginar, com seriedade, se o coração do Sol não estaria danificado. “Foi uma tentativa desesperada de eliminar o mistério”, relata o físico americano Murray Gell-Mann, um dos gênios que elucidaram a mecânica das partículas subatômicas, nos últimos trinta anos. Ele esclarece que essa proposta nunca teve muitos adeptos mas expõe com clareza as estranhas proezas do neutrino, visto como uma espécie de fantasma entre as partículas elementares.

O motivo é a facilidade com que ela atravessa os mais sólidos e espessos obstáculos — por exemplo, quando escapa do centro do Sol, onde está encerrado por 650 000 quilômetros de gases altamente comprimidos. Nessa fornalha, fonte de toda a energia solar, a temperatura eleva-se a 15 milhões de graus, e um volume de gases com o tamanho de um balde chega a pesar 1 tonelada, quinze vezes mais que um balde de chumbo na Terra. Em vista disso, quando uma porção de energia toma a forma de um raio de luz, por exemplo, esse imediatamente colide com uma infinidade de átomos, em frenética agitação. E acaba prisioneiro de um violentíssimo bilhar atômico do qual demora 1 milhão de anos para fugir e chegar ao espaço. Totalmente diferente é a situação dos neutrinos: como se nada houvesse no seu caminho, trespassam o Sol com a velocidade da luz e em minutos atravessam também a Terra e toda a sua população. De acordo com a teoria, trata-se de um verdadeiro dilúvio: a cada segundo, nada menos que 600 bilhões deles atravessam o corpo de uma pessoa. Mas, naturalmente, ninguém sente o menor impacto, já que, para tais partículas, o corpo humano é tão rarefeito quanto o espaço sideral. Essa profunda falta de sensibilidade impressionou os próprios cientistas desde que, literalmente, tropeçaram no neutrino, há sessenta anos. O ponto de partida foi um inesperado sumiço de energia nos átomos de rádio, cujo núcleo periodicamente se fragmentava e emitia elétrons muito rápidos — esse fenômeno, desde então, passou a chamar-se radioatividade.

Como a energia final desses fragmentos era menor que a energia inicial contida no rádio, deduziu-se que, além do elétron, havia mais uma partícula, até então desconhecida. Ela transportaria a energia que faltava. Suas características desafiavam a imaginação, pois parecia ser mais leve que o elétron, a mais leve das partículas, e também não possuía carga elétrica (a palavra neutrino foi usada para indicar uma partícula pequena e eletricamente neutra). Apesar disso, em 1930, o físico austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958) assumiu sua paternidade.

Bem-humorado, ele justificou sua decisão numa carta aos grandes especialistas da época, então sediados na Universidade de Zurique, na Suíça, chamando-os de “senhoras e senhores radioativos”. Reconheceu seu ousado gesto, mas afirmou que era a melhor saída diante do que se observava na desintegração do rádio. Mas a existência do neutrino só foi comprovada em 1954, depois da construção das usinas nucleares, que são copiosas fontes de radiação. Mesmo assim, não foi possível medir a sua massa e, nos anos seguintes, fortaleceu-se a hipótese de que ela era rigorosamente zero.

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Foi esse fato que acabou transformando o neutrino num personagem popular, mesmo fora da universidade. Prova disso é o divertido poema que o romancista americano John Updike decidiu dedicar-lhe. Intitulado “Cosmic Gall” (Indiscrição cósmica), o poema ironiza a capacidade do neutrino de atravessar todas as coisas, inclusive a intimidade de um quarto de dormir. No fim, considera tudo isso uma grande “falta de educação”. Mas, não por acaso, Updike escreveu esses versos nos anos 60, período em que a importância do neutrino começou a crescer, chamando a atenção para suas folclóricas propriedades materiais. O grande físico brasileiro Mário Schenberg, atualmente aposentado pela Universidade de São Paulo, contribuiu para isso. Ele foi um dos primeiros a tomar consciência, por exemplo, do papel decisivo dessa partícula durante a explosão e morte das estrelas: ela é nada mais, nada menos que o gatilho responsável por essa explosão.

O problema é que, nos instantes finais de sua vida, as estrelas oscilam fortemente. Quando o seu combustível nuclear se esgota, tendem a desmoronar, porque é o fluxo de energia de dentro para fora que mantém as estrelas inteiras, como se fossem um balão inflado. O desmoronamento, no entanto, comprime as regiões internas e, assim, acelera a queima dos restos de combustível, aumenta a produção de energia e volta a inflar a estrela. Até a década de 40, não se conhecia nenhum meio capaz de tirar o astro agonizante desse vai-e-vem, mas Schenberg sugeriu que o neutrino poderia decidir a parada. Produzido em proporções anormalmente altas, numa das contrações finais, ele podia drenar energia para fora da estrela, já que quase não interage com a matéria. O resultado é que as camadas externas desabam num átimo e produzem uma explosão capaz de estilhaçar definitivamente a estrela.

O brasileiro recorda que, por analogia com o antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, esse mecanismo foi chamado de “Processo Urca”. Ele diz que os neutrinos roubavam energia na mesma velocidade com que o dinheiro deixava o bolso dos jogadores no cassino. Esse processo foi espetacularmente comprovado, em 1987, durante a mais próxima explosão estelar já registrada pelos astrônomos, denominada Supernova 197 A. Um pouco antes da detonação, de fato, diversos detectores na Terra assinalaram uma forte vaga de neutrinos, os primeiros até então captados do espaço exterior. Foi uma dupla vitória, pois o registro também confirmou a eficiência dos detectores. O mais antigo deles, construído pelo físico americano Raymond Davis, em 1968, para tentar medir as emissões solares, emprega 600 toneladas de um detergente de tinturaria, o percloretileno. O motivo é que os átomos de cloro desse produto têm uma chance de reagir com os neutrinos e denunciá-los.

A imensa maioria passa despercebida, mas, como a quantidade é muito grande, pelo menos alguns são registrados. Desde o início, Davis sabia que o número de reações seria muito baixo— apenas três a cada dois dias. Isso é tão pouco, que a experiência poderia ser deturpada por diversos outros fenômenos produtores de neutrinos, como a radioatividade das centrais nucleares e os raios cósmicos (partículas pesadas vindas do espaço). Esse fato obrigou o físico a enterrar o seu tanque sob 2 000 metros de rochas, no fundo de uma mina abandonada, no estado de Dakota do Sul, Estados Unidos. A massa de rochas, raciocinou ele, serviria de filtro contra influências indesejáveis.

O esquema deu certo, mas foram necessários vinte anos para aprimorar o instrumento. O procedimento, em si, era bem simples, pois, de acordo com a teoria, o neutrino deveria colidir com os átomos de cloro e transformá-los em átomos de argônio. Ao cabo de algum tempo, esses últimos eram extraídos do tanque por meios químicos e contados tinha-se, assim, o número de neutrinos detectados. Na prática, porém, não era brincadeira vasculhar 600 toneladas de percloretileno. Mesmo ao cabo de dois meses, a uma taxa teórica de três neutrinos a cada dois dias, esse formidável volume esconderia apenas noventa átomos de argônio.

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Depois de afastadas todas as dificuldades, surgiu a primeira evidência de que a Terra não recebia tantos neutrinos solares quanto deveria. A contagem do detector de Davis limita-se sistematicamente a apenas um neutrino a cada dois dias e desde 1987 essa medida recebeu o aval de um detector mais preciso, o Kamiokande II, construído pelos japoneses. Finalmente, há alguns meses, um sofisticado aparelho de nome Sage, montado na província de Baksan, na União Soviética, parece ter posto fim a todas as dúvidas. De qualquer forma, o número dessas complicadas “antenas” líquidas vai ampliar-se: uma delas, a Gallex, está em fase de conclusão, na Itália, e outra, a ser instalada no Canadá, encontra-se em fase de projeto.

No Brasil, existe a idéia de aproveitar, com esse fim, antigos túneis da mina de ouro de Morro Velho, em Minas Gerais. “Os primeiros estudos já foram feitos e estamos aguardando a liberação de verba para prosseguir no trabalho”, diz o físico José Augusto Chinellatto, da Universidade de Campinas, SP. Desde os primeiros resultados de Davis, entretanto, as idéias sobre o dilema modificaram-se bastante, e ninguém mais duvida que as emissões do Sol estão em ordem. Os neutrinos é que parecem ser ainda mais escorregadios do que se pensava. Eles existem em três variedades diferentes e podem transformar-se uma na outra, e assim escapar dos detectores. Esses, até agora, são sensíveis apenas à variedade observada por Pauli, que sempre aparece nas desintegrações associada com o elétron.

Mas também existem neutrinos associados a mais duas partículas parecidas com o elétron, o múon e o teu. Quando os neutrinos do tipo elétron deixam o Sol, interagem fracamente com a matéria e, em decorrência disso, dois terços deles se transformam em neutrinos do tipo múon e do tipo teu. Assim se explica por que apenas um terço do fluxo original produzido pelo Sol deixa marcas nos detectores terrestres. Mas a transformação só é possível, dizem os físicos, se as partículas, tiverem massa, que, segundo os cálculos já feitos, deve ser 25.000 vezes menor que a do elétron. Não é muita coisa: para alcançar um milésimo de grama, o número de partículas que caem sobre uma pessoa a cada segundo — 600 bilhões — teria que ser 40 bilhões de vezes maior.

Mesmo assim, as conseqüências desse fato podem ser muito relevantes para a Física moderna, boa parte da qual se baseia na suposição de que a massa do neutrino é zero. O próprio destino do mundo está em jogo, pois o número de neutrinos é tão grande, que, por mais leve que seja, pode aumentar substancialmente a massa do Universo. Hoje se discute se o Cosmo vai se expandir eternamente, ou se voltará a se contrair até se tornar um ponto de altíssima densidade, tal como era no início dos tempos. A escolha de um ou outro caminho depende da sua massa total. Não se sabe, ainda, se a massa do neutrino pode ditar os rumos do Universo. Mas, como se vê, mesmo um fantasma pode decidir questões bem concretas.

 

 

Para saber mais:

Rei Sol

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(SUPER número 2, ano 2)

Sol, uma viagem para o inferno

(SUPER número 3, ano 9)

A morte do Sol

(SUPER número 4, ano 11)

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