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Efeito videogame

A cultura pop do século 21 está mudando nosso cérebro - para melhor. E está formando de médicos mais habilidosos a gente mais sociável. Entenda como os games, a Internet e até a televisão aprimoram sua mente

Por Tiago Cordeiro
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 31 ago 2007, 22h00

Imagine que desse para você escolher entre dois médicos para uma cirurgia. O primeiro é um homem tranquilo, que gosta de livros e de fazer esportes nas horas vagas. O outro é um jovem com mais horas de videogame que de UTI. Qual você chamaria para abrir o seu corpo?

Talvez a melhor escolha não seja a mais óbvia. Por dois meses em 2002, 33 cirurgiões do Centro Médico Beth Israel, em Nova York, jogaram videogame nos intervalos das laparoscopias – cirurgias de abdômen em que um cabo de fibra ótica entra pelo umbigo e é operado remotamente com um mouse. Os 9 médicos que já tinham o hábito de jogar videogame ao menos 3 horas por dia eram 27% mais rápidos e cometiam 37% menos erros do que os colegas menos nerds. Um grupo que não estava acostumado aos joysticks começou a praticar os games Super Monkey Ball 2, Silent Scope e Star Wars: Racer Revenge (jogos que pedem doses cavalares de concentração e agilidade). Resultado: a rapidez com que operam seus equipamentos melhorou em 37%. Alguma coisa aconteceu com o cérebro desses médicos: ficar poucas horas jogando aumentou a habilidade deles. Exemplos assim se repetem. Há dois anos, a neurocientista Daphne Bavelier, da Universidade de Rochester, fez testes em 3 grupos de universitários. Um deles jogou o game de estratégia Medal of Honor por 10 dias, o segundo brincou com algo bem mais simples, Tetris, e um terceiro não fez nada. Todos foram submetidos a testes de agilidade motora e percepção visual e espacial. A turma do Medal of Honor se saiu melhor.

E não estamos falando só de games. Tudo indica que a própria cultura pop de hoje está mudando a nossa mente. Há indícios de que assistir a seriados com tramas complexas, como 24 Horas e Lost, desenvolve noções de inteligência social, e de que passar horas na internet aumenta a capacidade de se relacionar – inclusive fora do mundo virtual. “Uma das razões para a espécie humana ser tão bem-sucedida é a adaptabilidade do nosso cérebro. Todas as ferramentas que usamos, do fogo aos microscópios, influenciam as conexões entre os neurônios. Mas nunca existiram tantos estímulos, para tantas pessoas”, diz o químico britânico Martin Westwell, do Instituto pelo Futuro da Mente, da Universidade de Oxford. Vamos entender melhor como esse turbilhão de novos estímulos mexe com a nossa cabeça. Para começar, precisamos responder uma pergunta: o que é que os videogames têm de tão especial?

Do XBox para o laboratório

A resposta: sofrimento. Boa parte dos games atuais oferecem horas de angústia e só uns pequenos momentos de recompensa. Geralmente as regras não estão escritas em lugar nenhum; você as descobre à medida que joga. Nem o roteiro é fixo; você pode se movimentar do jeito que bem entender – mas corre o risco de chegar a uma nova fase e descobrir que esqueceu de cumprir alguma tarefa importante lá atrás.

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Veja o exemplo de Zelda: The Wind Walker. O objetivo ali é salvar a irmã do personagem. Para isso, é preciso derrotar o vilão Ganon. Mas antes você tem que arranjar um arsenal. Achar as armas não é fácil: você deve encontrar a “pérola de Din” para ganhar esse direito. Mas não sem antes atravessar um oceano em busca da tal pérola. E para atravessar o oceano é preciso arranjar um barco… Ufa.

Ah, claro: cada um desses estágios se divide em outros menores. E em nenhum deles existem setas apontando o caminho. Você deve encontrar o rumo por conta própria e cada etapa fica mais complexa. “Muito mais do que livros, filmes ou músicas, games fazem você tomar decisões. Romances podem ativar a imaginação, canções podem provocar emoções fortes, mas jogos forçam você a priorizar, a escolher”, argumenta Steve Johnson em seu livro A Televisão e o Videogame nos Tornam Mais Inteligentes. Essas escolhas são feitas pelo método de tentativa e erro, seguido de análise e reconhecimento de relações de causa e efeito. É exatamente o que um cientista faz.

Pense num jogo como a série Metal Gear: um soldado se infiltra numa fortificação para descobrir que tipo de armamento de destruição em massa estão construindo ali. Lá dentro, o soldado precisa contactar os membros da resistência local, descobrir rotas e identificar adversários. E ainda acumular armamentos, para só então desafiar o tirano local e acabar com seus planos. “Os games mais desafiadores ensinam a agir como cientista: forçam os jogadores a pensar em hipóteses, testá-las, refletir sobre as consequências, refiná-las e testá-las novamente até alcançar resultados melhores”, diz o filósofo americano James Paul Gee, da Universidade de Wisconsin e autor de What Video Games Have to Teach Us About Learning and Literacy (“O Que os Videogames Podem nos Ensinar sobre Aprendizado e Cultura”, inédito em português). “Ao fim desse ciclo, o jovem deixa de ser apenas consumidor de conhecimento. Ele se torna produtor, a ponto de alguns jogos, como The Elder Scrolls III, terem um final diferente para cada jogador.”

Há quem diga, aliás, que esse tipo de experiência é mais útil para a vida do que os livros. “O mecanismo de recompensa dos games ajuda a encontrar ordem e significado no mundo”, diz o pedagogo americano Kurt Squire, também da Universidade de Wisconsin.Outros pesquisadores vão mais longe até. Para eles, nem é preciso todo esse mecanismo dos games para melhorar nosso cérebro. Basta se enterrar no sofá com o controle remoto na mão. Quer saber como? Então não mude de canal.

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A TV não nos deixa burros

A 1a temporada de Starsky & Hutch foi ao ar em 1975. A estrutura narrativa dessa série era simples e nunca mudava: nos primeiros minutos, os dois protagonistas, policiais, se vêem diante de uma situação dramática provocada por criminosos. Depois de 60 minutos, o problema está resolvido e tudo volta ao normal. E assim foi durante 4 temporadas. Agora compare Starsky & Hutch com 24 Horas, o seriado policial que estreou em 2001. Cada uma das 6 temporadas acompanha, em tempo real, um dia do agente Jack Bauer. Na temporada de estréia, havia 4 núcleos sociais diferentes: as famílias de Bauer, do senador David Palmer e do terrorista Victor Drazen mais o grupo de funcionários da Unidade Contraterrorismo. Cada história só se resolve depois de uma temporada inteira, o que dá 24 horas de ação. Há 25 personagens importantes orbitando o protagonista. Para complicar, algumas dessas pessoas não são o que parecem. As regras de relacionamento entre elas mudam, assim como algumas se tornam o centro da atenção por algum tempo, para só reaparecer depois.

O espectador precisa torrar o cérebro para ir montando o quebra-cabeça da trama. É parte da diversão. E não apenas em 24 Horas, mas em boa parte dos seriados líderes de audiência nos últimos anos, de Lost a Família Soprano, de Simpsons a Desperate Housewives. E também se aplicam a reality shows no estilo dos Big Brothers. “Esses programas não são tão passivos quanto parecem. Acompanhá-los é uma excelente forma de desenvolver a inteligência social, a capacidade de monitorar e identificar diferentes formas de interação nas pessoas à nossa volta”, argumenta o cientista cognitivo americano Shawn Green, da Universidade de Rochester.

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Não há dúvida de que nosso cérebro é capaz de melhorar o desempenho social. Em 2000, uma pesquisa do Instituto de Neurologia da Universidade College London identificou que motoristas de táxi têm, em média, áreas maiores do hipocampo dedicadas a identificar redes de relações sociais a partir do aspecto físico das pessoas, já que eles passam o dia lidando com passageiros diferentes. E motoristas veteranos têm essa área do cérebro ainda mais desenvolvida que os novatos – sinal de que o hipocampo cresceu à medida que foi mais usado. Algo parecido pode acontecer quando uma pessoa assiste a programas atuais da TV? “Não existem pesquisas conclusivas porque o fenômeno é muito recente. Mas é possível, sim”, diz Shawn Green. Se for isso mesmo, podemos estar diante de algo realmente inusitado: assim como os taxistas experientes percebem mais rápido quem é o passageiro gente boa, um telemaníano fã de Jack Bauer teria mais chances de perceber no trabalho a diferença entre um colega honesto e um que, apesar de se fazer de simpático, não vê a hora de roubar seu cargo.

Da tela para a rua

Se a TV desenvolve a inteligência emocional, a internet é o lugar onde essas habilidades podem entrar em prática. “Enquanto a TV estimula o individualismo, a internet faz o contrário, inclusive para quem tem dificuldade em se relacionar com os outros pessoalmente, olho no olho”, diz o psicólogo americano John Suler, da Universidade Rider, nos EUA.

Alguns cientistas acreditam que o uso dos computadores para se relacionar inibe o funcionamento do córtex orbitofrontal, uma pequena área do cérebro, bem atrás dos olhos, responsável pelo controle dos impulsos e por parte do comportamento social. É graças a essa região que avaliamos, a cada segundo, como os outros reagem às nossas atitudes, e a partir dessa interpretação planejamos o próximo passo.

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Ou seja, ele funciona como um filtro para o nosso comportamento: não nos deixa fazer coisas socialmente reprováveis. Só que os mais tímidos, que acham que qualquer atitude deles será reprovada, acabam sofrendo com isso. A rede, então, pode ajudá-los a superar o problema. “A inibição desse filtro é libertadora para muita gente. Serve como uma forma de terapia”, afirma o professor John Suler. Uma terapia que pode melhorar o desempenho social no mundo de carne e osso também, como diz o próprio Suler: “Tenho um paciente de 20 anos com dificuldade de se comunicar. Pedi a ele que entrasse em chats durante uma hora por dia e, depois de 6 meses, ele estava mais autoconfiante e articulado.”

Nem todo mundo concorda. O pesquisador americano Dimitri Williams, da Universidade de Illinois, é um dos que tiraram conclusões diferentes. Seus estudos, ele diz, indicam que o ciberespaço só serve para amplificar nossas tendências naturais: se você é extrovertido, vai ficar mais sociável ainda. Mas acaba mais isolado do que antes se for introspectivo.

Seja como for, pouca gente pode falar melhor sobre esse poder do mundo virtual para amplificar tendências do que o ladrão Devin Moore, de 22 anos. Em 2003, ele matou dois policiais e um escrivão em uma delegacia em Fayette, no Alabama. O rapaz tinha sido detido por roubar um carro. Mas decidiu escapar. Então pegou a arma de um policial e atirou com precisão na cabeça das 3 vítimas. Devin nunca tinha disparado uma arma na vida, só que era jogador compulsivo do game Grand Theft Auto, em que você encarna um ladrão de carros. Capturado, ele foi filosófico sobre a experiência de transpor tão literalmente para as ruas o que tinha aprendido nas telas. Disse: “A vida é como um videogame: uma hora você morre”. Devin espera sua vez no corredor da morte.

 

Para saber mais

A Televisão e o Videogame nos Tornam Mais Inteligentes

Steven Johnson, Campus, 2005.

What Video Games Have to Teach Us

James Paul Gee, Palgrave Macmillan, EUA, 2004.

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