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Testes nucleares em Nevada: Face a face com a bomba

Mais de 100 testes nucleares ao ar livre sacudiram o Deserto de Nevada, nos Estados Unidos, a partir de 1951. As seqüelas que deixaram só em anos recentes vieram a público. Este é o tema do texto a seguir.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 ago 1993, 22h00

Alan Burdick

Saint George, no estado americano de Utah, situa-se no coração da região mórmon. Aí, como em muitas outras tranqüilas cidades que pontilham o deserto, a vida e a morte são vistas como dádivas do céu. Portanto, em 27 de janeiro de 1951, foi como mais um sinal de divina inspiração governamental que os cidadãos de Saint George aceitaram uma detonação atômica que devastou o sítio de testes de Nevada — a primeira de mais de uma centena que brotariam no local nos doze anos seguintes. Mas o programa americano de testes de armas nucleares nunca foi benigno, fato que só se tornou claro em anos recentes, quando vieram a público documentos até então secretos.

Nuvens de radiação, tão tóxicas quanto as liberadas pela explosão do reator soviético em Chernobyl, verteram resíduos rosados sobre pontos tão distantes como a Nova Inglaterra, a mais de 2 000 quilômetros, envenenando o leite, matando o gado e afetando moradores ao longo da trajetória. Milhares de soldados, com ordem de realizar manobras ao pé das detonações, foram expostos a debilitadoras doses de radiação, da mesma forma que eletricistas ou encanadores empregados no sítio de teste. Nos anos seguintes, ex-militares, funcionários do sítio de testes e gente da vizinhança foram vítimas de câncer em proporção alarmante.

Ao contrário de muitos civis feridos em guerra, essas vítimas da Guerra Fria não foram advertidas sobre as ameaças contra sua saúde. Na verdade, foram submetidas a uma cruel campanha de desinformação. Soldados no sítio de testes receberam informações falsas: “O sol, e não a bomba, é seu pior inimigo”. Mulheres que sofriam efeitos do envenenamento pela radiação — perda de cabelo, sérias queimaduras da pele — tiveram alta dos hospitais próximos com diagnósticos de “neurose” ou de “síndrome de dona-de-casa”. Quando uma moradora da área ameaçada relatou à Comissão de Energia Atômica (AEC em sigla inglesa) que seu filho e vários vizinhos haviam morrido, aparentemente de câncer induzido pela radiação, ouviu seca resposta: “Vamos manter o senso de proporção sobre a chuva radioativa”.

Quaisquer riscos a que a mulher e seus vizinhos “pudessem” ter sido expostos “representavam um pequeno sacrifício” em nome da dissuasão (ou seja, do fortalecimento bélico do país). Poucos documentos expressam de modo tão eloqüente o tributo humano àquele “pequeno sacrifício” quanto as fotos de Carole Gallagher. De 1983 a 1990, ela viveu e viajou em diversos Estados do oeste e sudoeste. Em áreas que a AEC antes designara como “virtualmente inabitadas”, Gallagher ganhou a confiança de diversos veteranos, funcionários do sítio de testes e moradores da área de risco, involuntariamente expostos à radiação.

Os retratos que colheu retêm a tradição do humanismo: diretos e sutis, trágicos mas nunca apelativos. Seria fácil descartar o trabalho de Gallagher como um desafortunado capítulo de uma história encerrada. O Decreto de Compensação por Exposição à Radiação, de 1990, estende às vítimas um pedido oficial de desculpas e uma oportunidade de indenização. Os testes nucleares subterrâneos, realizados a partir de 1961 em Nevada, podem ter fim dentro de pouco tempo em virtude de uma decisão assinada em agosto de 1992 pelo então presidente George Bush. Mas, para as personagens de Gallagher, as feridas da Guerra Fria continuam abertas.

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Críticos do Decreto de Compensação apontam que ele oferece parca recompensa — de 50 000 a 100 000 dólares — e somente a alguns segmentos da população atingida. Regiões com direito a compensação fazem divisa com regiões que não têm esse direito, quase ao acaso. Dos mais de vinte tipos de câncer classificados pela Academia Nacional de Ciências como radiogênicos (ou causados por radiação), o decreto considera que apenas treze dão direito a remuneração. Também não prevê pagamentos à segunda geração das vítimas: isto é, crianças com defeitos de nascimento, câncer ou outros danos nos cromossomos, resultantes da exposição dos pais à radiação.

Recursos interpostos sob outras leis, válidas apenas para ex-soldados, levaram ao pagamento de menos de 3% das reivindicações feitas até meados de 1993. Isso evidencia, dizem os críticos, que tanto as leis como sua aplicação são inadequadas. E, afinal, mesmo os testes subterrâneos representam risco para pessoas que vivem na direção que o vento sopra, a partir do local da explosão. Dos mais de 760 testes subterrâneos conhecidos, pelo menos 126 liberaram radioatividade para a atmosfera, embora as doses tenham se tornado relativamente pequenas desde 1971. Persiste também o problema de os vazamentos radioativos não serem anunciados.

Em maio de 1986, por exemplo, autoridades no sítio de testes tentaram disfarçar a radiação gerada pela detonação “poderoso carvalho”: deixaram que a poeira letal escapasse no momento que os ventos sopravam resíduos de Chernobyl sobre o local. Não é coincidência que os testes são realizados, ou que se deixam escapar os vazamentos, apenas quando o vento sopra para leste, direção oposta às cidades de Los Angeles e Las Vegas. Um técnico do Departamento de Energia (DOE) explicou esse procedimento a Gallagher dizendo que “as pessoas em Utah (Estado que fica a oeste de Nevada) não ligam a mínima para radiação”.

Tal explicação é típica do menoscabo que a indústria federal de armas nucleares manifesta sobre a segurança de seus empregados, do público e do meio ambiente. No ano passado, o DOE teve de responder em tribunal à acusação de ter ajudado a fábrica de armas Rocky Flats, perto de Golden, no Colorado, a esconder crimes ambientais da Agência de Proteção Ambiental. No Novo México, está para ser aberto um depósito de resíduos nucleares que não satisfaz nenhum dos regulamentos ambientais federais. Portanto, o que a câmara de Gallagher registra não é uma triste anomalia de outras épocas, mas as primeiras vítimas de uma traição à confiança popular. Quando lhes dão face e voz, elas expressam dignidade e exigem a verdade de maneira tão suave e poderosa quanto a radiação que assombra nossas vidas.

Para saber mais:

A casa dos horrores nucleares

(SUPER número 11, ano 3)

Ken Case: o “caubói atômico”, como era conhecido pelos outros funcionários do sítio de testes, foi contratado pela Comissão de Energia Nuclear, nos anos 50, com a função de conduzir gado para a região de impacto imediato das detonações, momentos depois de acontecerem. Assim os cientistas de Los Alamos podiam medir os efeitos da radiação. Case sofreu onze intervenções cirúrgicas, inclusive para tirar o rim e boa parte do intestino, antes de morrer em 1985.“Eles tiveram câncer e nós também”, disse o ex-funcionário sobre os animais que conduzia. “Eles apenas morreram mais depressa.”

Walter Adkins com a mulher, Marvel: motorista de ônibus no sítio de testes, teve tumores na pele, esôfago e pulmão, morrendo em 1988. Foi surpreendido pela chuva radioativa de Banenberry, um teste subterrâneo realizado em 1970, do qual vazou grande quantidade de radiação para a atmosfera. “Ela veio caindo como uma coisa de aspecto rosado. Eu podia vê-la em minha mão. Me disseram: a radiação nunca vai prejudicá-lo.”

Della Truman: como muitos outros moradores da cidade de Enterprise, uma área de risco em Utah, desenvolveu nódulos na tireóide por beber leite contaminado com iodo radioativo. Embora tenha sido diversas vezes examinada por médicos da Comissão de Energia Nuclear, nunca foi informada dos resultados dos exames. Morreu em 1987 de um ataque cardíaco induzido por “tempestade da tireóide”, uma grave aceleração do metabolismo. Seu filho Preston Jay Truman sofre de problemas radiogênicos crônicos. “Na escola nos mostraram um filme chamado A de átomo, B de bomba, conta ele. “Muitos de nós, que crescemos naquele período, pensávamos: C de câncer, D de desaparecimento.”

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