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Que vergonha

Uma das emoções mais poderosas que se é capaz de sentir é também uma das manifestações humanas menos estudadas: só recentemente a ciência começou a entender por que tanta gente "morre de vergonha".

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 out 1988, 22h00

Nenhum gesto provavelmente é mais universal, impulsivo e intenso que o de cobrir o rosto com as mãos. E a expressão física de uma emoção que não há quem já não tenha tido o desprazer de experimentar e que, além disso, costuma manifestar-se traiçoeiramente, quando menos se espera — a vergonha. Por incrível que pareça, só há pouco tempo os psicólogos se deram conta, constrangidos, de que nunca haviam encarado a vergonha com a atenção que ela merece. Tampouco os cientistas sociais podem vangloriar-se de saber muita coisa sobre o papel dela na vida em sociedade, além do fato de ser em algumas culturas um poderoso detonador de comportamentos extremados.

No entanto, com o que já aprenderam a seu respeito, os pesquisadores têm bons motivos para desconfiar que a vergonha é muito mais do que aparenta — seria, na verdade, um sentimento essencial à condição humana, capaz de influenciar todos os outros. Assim, ela é que estaria na raiz dos desconfortos à primeira vista inexplicáveis que atravessam as relações entre as pessoas e acabam sendo atribuídos aos mais variados fatores. Pois, se há algo de que a vergonha tem horror é se mostrar. De fato, cada qual sabe por experiência própria que é mais fácil admitir uma porção de emoções consideradas negativas, como a raiva, a frustração, até o medo, do que ser obrigado a reconhecer publicamente que praticou algo socialmente reprovável, um ato vergonhoso.

Do mesmo modo, a dor do convívio secreto com a culpa pode não machucar tanto quanto a vergonha: esta, Para quem é levado a senti-la, ainda pode ser mais destrutiva que o ódio. A vergonha fere a personalidade ali onde ela é mais vulnerável — aos olhos da multidão. É o flagrante da conduta reprovável, que submete o réu ao impiedoso julgamento dos outros. “O olhar de condenação do próximo, sempre humilhante, é o castigo por agir mal”, resume o psiquiatra Antonio Carlos Cesarino. Daí o gesto automático de cobrir o rosto — como se as mãos estivessem cobrindo, num ato protetor, a personalidade subitamente desvendada à reprovação alheia. Os outros são os juízes mas o que conta de fato são as regras do jogo — literalmente.

Pois, mesmo quando aparenta ser outra coisa, a vergonha exprime sempre algum tipo de relação entre a pessoa e as normas de comportamento na sociedade em que ela vive. Descontadas todas as diferenças individuais, a começar pelas de temperamento, quanto mais forte for determinado mandamento social, mais acentuada será a vergonha sentida pelo transgressor ao ser flagrado. Uma proibição absoluta, um tabu, tende a provocar uma vergonha insuportável em quem for apanhado atropelando-a. Nesse sentido, a vergonha é um preciosíssimo termômetro — permite medir a vitalidade de dada norma social a partir das reações que sua transgressão tende a provocar; se a vergonha for pouca, é sinal de que a regra em questão já não representa grande coisa para a sociedade ou parte dela.

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Como quase tudo na vida, é na mais tenra infância que a vergonha dá pela primeira vez o ar de sua desgraça. Segundo os estudiosos, ela faz parte do próprio processo pelo qual a criança se percebe a si mesma como indivíduo. Pouco antes dos 2 anos, ela nota que os adultos, sobretudo a mãe, lhe dirigem mensagens emocionais — carinho, alegria, zanga, tristeza. Descobre então que pelo que faz ou deixa de fazer acaba influindo no conteúdo dessas emoções. Se sorri, por exemplo, ganha agrados; se quebra um vaso, provoca mau humor. Em pouco tempo, aprende a orgulhar-se das emoções “boas” que proporciona e a envergonhar-se das “más”.

O papel dos adultos nessa fase é decisivo. “E no convívio com a mãe que a criança vai construindo sua autoimagem”, diz a psicóloga Sílvia Maria Vilela Ribeiro. A criança que não se sentir amada tenderá a envergonhar-se de si própria, mesmo quando não tiver feito nada de errado.

Mais velha, irá envergonhar-se por imaginários defeitos físicos — até determinada cor dos olhos poderá impor-lhe o sofrido sentimento de ser diferente, de estar com o passo errado em relação ao grupo. E, como as crianças costumam ser implacáveis fiscais do “certo” e “errado” que muitas vezes elas próprias estipulam, o menino ou menina com auto – estima em baixa não precisará procurar muito para achar motivos de vergonha.

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Pode-se sentir vergonha virtualmente por qualquer coisa, mas na cultura ocidental é difícil encontrar uma causa tão profundamente arreigada como o corpo humano, cujas “vergonhas” devem permanecer cobertas assim que se passa da idade da inocência — ou, na metáfora bíblica, desde que Adão e Eva provaram do fruto da árvore do Bem e do Mal. A nudez e a sexualidade, apesar de todas as voltas e reviravoltas por que já passou o mundo no interminável capítulo da chamada moral sexual, continuam a ser o território predileto dos conflitos sobre vergonha (ou falta de). Mesmo ai, porém, o comportamento humano não cessa de surpreender.

A fotógrafa Vânia Toledo, que vive de fotografar o corpo alheio como veio ao mundo e para isso gasta às vezes longo tempo fazendo seus modelos perder a inibição, conta um episódio que a desconsertou. “Certa vez precisei fotografar uma mulher nua em vários pontos da cidade. Pois a moça era tão desinibida, capaz de tirar a roupa com a maior naturalidade em plena estação do metrô, que quem acabou envergonhada fui eu mesma.” Insondáveis de fato são os caminhos da alma humana. A atriz e manequim Luma de Oliveira jura que não sentiu nem um pouco de vergonha quando posou nua pela primeira vez, mas não esquece a vergonha que passou numa festa junina, aos 10 anos de idade, quando nenhum menino a tirou para dançar a quadrilha: “Peguei minhas coisas e voltei para casa arrasada·.

A vaidade ferida envergonha feito um pecado, sabem muito bem os praticantes da profissão que provavelmente reúne o maior elenco de vaidosos desavergonhados de que se tem notícia — a profissão de ator. Não pode ser de outro modo. Afinal, o ator vive daquilo que é a própria essência da vergonha para as pessoas comuns — o ato de expor-se aos outros. E o que faz um ator passar vergonha? “É sentir-se rejeitado pelo público·, responde a consagrada Fernanda Montenegro, que em 38 anos de palcos não errou o bastante para saber como dói a rejeição. Mesmo assim ela recorda uma cena constrangedora há mais de vinte anos, quando abria uma porta no mesmo instante em que um pires caía no chão. Fernanda entrou e pisou no pires. Envergonhada, sem saber onde pôr a cara, atravessou o palco a jato e embarafustou pela outra porta. Mas o tempo e a experiência são um santo remédio contra a vergonha. Recentemente, interpretando Fedra, de Racine, a mesma Fernanda esqueceu um monólogo. Não teve vergonha: encarou a platéia e anunciou que ia recomeçar a cena. “Há trinta anos, teria sido um tormento”, diz. Como toda vergonha é vergonha de expor-se, os consultórios médicos vivem repletos de pacientes envergonhados de expor as mazelas (reais ou imaginárias) que os afligem e que, afinal de contas, os acabaram levando até ali. Em seus dezenove anos de prática, o clínico Arthur Beltrame Ribeiro viu suficientes casos de vergonha para tirar duas regras gerais: “Os homens são mais inibidos que as mulheres em falar de seus sintomas; as doenças venéreas e a impotência são as que mais envergonham”.

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O sintoma por excelência da vergonha — o rubor — resulta fisiologicamente da ação do sistema límbico (parte do cérebro) sobre o sistema nervoso autônomo: com a dilatação dos vasos do rosto e do pescoço, o sangue aflui, deixando a pessoa corada — e fazendo-a perversamente passar recibo perante o mundo de que está envergonhada. Não se sabe por que o organismo recorre justamente a essa forma tão cruelmente ostensiva de exprimir vergonha.

Parece antiga como o mundo, a relação entre vergonha, de um lado, e honra e caráter, de outro. “A noção de honra é o valor que a pessoa julga ter diante de sua comunidade e a vergonha é a perda dessa condição honrada”, explica a antropóloga Lívia Maria Neves de Holanda, da Universidade Federal Fluminense. Nas sociedades tradicionais, como as latinas, ter vergonha na cara é um atributo absolutamente indispensável. Os espanhóis da Andaluzia chamam os ciganos de sin verguenza porque os consideram ladrões e mentirosos. E costumam dizer que honra e vergonha são como cristal —quebrou, não tem conserto. Já nas regiões mais rústicas da Itália. como no sul, a vergonha se recompõe na vendetta, a vingança contra quem atentou à honra, entendida esta como algo que ultrapassa invariavelmente a pessoa para assentar-se na família. Daí as verdadeiras guerras que ensanguentam gerações sucessivas e famílias inteiras. Geralmente, tudo começa — para variar, com alguma ofensa, real ou presumida, à moralidade sexual. E termina, já se sabe, em violência.

A violência como exorcismo final da vergonha nem sempre se volta contra o outro. Em sociedades onde “perder a face· por algum acontecimento vergonhoso é uma provação literalmente insuportável para alguém, o remédio socialmente prescrito é a autoimolação, o suicídio ritual. O exemplo seguramente mais conhecido é o do haraquiri japonês, uma prática terrível cujas origens se confundem com a saga de seus praticantes, os guerreiros samurais. Durante o primeiro surto de modernização do país, o período Meiji (1868 – 1912), o haraquiri foi oficialmente proscrito. Isso não impediu que em 1945, ao ouvir de viva voz do imperador Hiroíto que o Japão se rendera aos americanos, um certo número de súditos se suicidasse diante do palácio imperial, em Tóquio: a capitulação agredia de tal forma os valores militaristas que lhes haviam sido inculcados que só o haraquiri poderia redimir a vergonha nacional.

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Por aí se vê como certos padrões culturais extremamente rígidos podem fazer com que “morrer de vergonha” não seja apenas uma força de expressão do cotidiano. Afinal, muita gente morre de vergonha em situações tão inocentes como levar um tombo em plena rua. Como não há quem ignore, a vergonha não está propriamente no escorregão, mas no riso acusador dos gaiatos que sempre aparecem nessas ocasiões. Mas nisso está paradoxalmente o santo remédio para pôr em seus devidos termos constrangimentos e vergonhas que não trazem nada de bom para ninguém: uma solene gargalhada. Muito antes de começarem a entender os mistérios da vergonha, os psicólogos descobriram que as pessoas capazes de rir de seus próprios defeitos têm mais chances de superá-los — e assim deitar fora muita vergonha inútil. Como diz Claúdio Paiva, responsável pelos textos do programa TV Pirata, da Rede Globo, “quem faz humor não pode ter vergonha de nada”.

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