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O olhar de Leonardo Da Vinci

Ele turbinou a renascença e, de quebra, inventou um mundo que só nasceria 5 séculos depois de sua morte. Conheça o verdadeiro código de Da Vinci

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2023, 16h47 - Publicado em 30 abr 2006, 22h00

Texto Thereza Venturolli

A cena acontece em Milão, Itália, numa madrugada de 1489: na bancada do necrotério de um hospital, jaz um corpo cuja pele fora totalmente retirada, deixando à mostra os músculos, nervos e parte do esqueleto. Baldes, bacias, panos e instrumentos de corte sujos de sangue e outros fluidos corporais estão espalhados pelo chão da sala mal iluminada. Ao lado da bancada, um homem de 40 anos lança um último olhar para o cadáver esfolado e para a folha de papel com a série de ilustrações que acabou de desenhar. Sorri, satisfeito com o resultado. Apesar de ter feito tudo com pressa (para que o corpo não começasse a se decompor na cara dele), conseguiu terminar ilustrações inéditas, que mostram feixes de músculos e tendões se entrelaçando nos ossos dos ombros, braços, peito e pescoço. Em vários ângulos. Antes de guardar o desenho, o homem faz uma última anotação ao pé da folha: “Este conhecimento é tão necessário ao desenhista quanto é para o gramático saber a origem das palavras”.

Essa não era a primeira nem a última vez que Leonardo da Vinci faria uma dissecação humana. Ao longo da vida, ele contabilizaria mais de 30 madrugadas de vigília na companhia do que ele próprio chamou de “apavorantes corpos esquartejados”. Ainda assim, a vontade de conhecer o corpo humano até a última entranha superava qualquer calafrio. Não se tratava de uma curiosidade mórbida. Leonardo entendia que a anatomia, tanto quanto a geometria, era peça fundamental da pintura. Ele acreditava que, para representar a realidade com exatidão, era preciso observá-la com rigor científico – numa época em que a ciência propriamente dita ainda nem existia, diga-se. E observar foi o que Da Vinci fez de melhor. Graças à capacidade de aprender a ver, o mestre renascentista adquiriu um conhecimento profundo da natureza. E, com seu talento, deixou para a posteridade alguns dos maiores legados artísticos e científicos da história.

Da ciência à arte(e vice-versa)

Leonardo di Ser Piero da Vinci nasceu em 1452, no vilarejo de Anchiano, do lado de fora dos muros do castelo da então República de Florença, na Itália. Filho ilegítimo de uma mendiga e de um escrivão respeitado na elite florentina, foi criado pelo pai, que teve sensibilidade para identificar os excepcio-nais dons artísticos do garoto e recursos para desenvolvê-los.

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Ainda adolescente, Leonardo foi enviado para trabalhar como aprendiz no estúdio do grande desenhista Andrea del Verrochio. E o garoto de Anchiano impressionou desde o começo – conta a lenda que, ao desenhar um anjo num dos quadros de Verrochio, Leonardo demonstrou ser tão melhor que o mestre que este desistiu de pintar de uma vez por todas. Verdade ou não, o fato é que se tratava do lugar ideal para a formação de um jovem talento da pintura. O estúdio de um artista na Florença no século 15 funcionava como uma oficina, onde o profissional orientava uma equipe de iniciantes na execução de obras por encomenda.

Se o espaço era propício, o tempo não ficava atrás. Quando Da Vinci tinha 1 ano de idade, os turco-otomanos tomaram Constantinopla, afugentando pensadores e artistas em enxame para o rico norte da Itália. Eles chegavam carregados de manuscritos sobre a geometria e a arte na Grécia antiga, e deram o tiro de partida na corrida de transição da Europa medieval para a do Renascimento. A história virava uma esquina e essa esquina era Florença – justamente o lugar onde ele desenvolveu boa parte de sua carreira. E Leonardo seguiu a tradição de seu tempo: buscar a representação fiel da natureza usando todo o conhecimento possível como ferramenta, fosse a matemática, a medicina ou o que mais aparecesse. Mas no centro de tudo, segundo Da Vinci, estava algo mais simples: o olhar.

Para ele, os olhos eram a principal via do conhecimento – o que fazia da pintura a mais elevada de todas as artes. “A visão se deixa iludir menos do que qualquer outro sentido”, escreveu.

O pintor, então, deveria explorar ao máximo a capacidade que os olhos têm de perceber a luz e as sombras, a posição e a distância, o movimento e o repouso das coisas. E Leonardo explorou tudo o que podia de seus olhos. De suas observações sobre os efeitos da atmosfera sobre uma paisagem, criou normas rigorosas de perspectiva. Definiu, por exemplo, o quanto a imagem dos objetos ao fundo de uma cena deveria ter as cores e os contornos suavizados para passar a impressão de profundidade. Tudo com uma precisão matemática. Ele ainda observou atentamente os movimentos do mundo – da água, das nuvens, das folhas, dos animais e, claro, do homem. Além dos desenhos de anatomia humana, fez dezenas de esboços de cavalos galopando, gatos repousando e cães se coçando. Enfim, em nome da arte, Da Vinci tirou de cada momento da vida uma cena digna de ser representada em detalhes. Para ele, a pintura era uma ciência.

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Esse jeito científico de ver a arte levou o autor de Mona Lisa e A Última Ceia a colecionar uma gama enciclopédica de interesses ao longo dos anos – uma característica que o transformou naquele mito que todo mundo conhece: o de homem mais completo que já passou pela Terra. Mitos pecam pelo exagero. Mas, convenhamos, no caso de Da Vinci, fica difícil derrubar a fama. Além de pintor, Leonardo acabou sendo escultor, arquiteto, anatomista, engenheiro, botânico, zoólogo, geólogo, físico, poeta, músico, inventor, piadista, cozinheiro etc. etc. etc. – e parece que era bonitão e cantava bem (!).

Mas seu grande atributo talvez tenha sido outro: “Ele foi o maior curioso da história”, escreveu o historiador inglês Kenneth Clark, autor de uma das mais respeitadas biografias de Da Vinci. De fato. Leonardo nunca deixava de questionar o como e o porquê das coisas.

Seus documentos de anatomia, por exemplo, não registram apenas a aparência e as proporções do corpo humano, mas preocupam-se também com seu funcionamento. Questões do tipo “que tendões movem o braço?”, “como os dois olhos se movem ao mesmo tempo?”, “como se produz um sorriso?”, “como surge um novo ser no ventre de uma mulher?” aparecem com freqüência no verso de seus manuscritos, como lembretes sobre quais seriam seus objetos de pesquisa seguintes. Ele realmente não parava quieto: mesmo nas cenas mais cotidianas, sempre tinha alguma coisa que atiçava sua curiosidade. Tanto que, um dia ele escreveu em um de seus vários caderninhos de anotações: “Por que os cães farejam espontaneamente o traseiro uns dos outros?” A resposta, logo abaixo, fica entre o fato científico – “o faro é um sentido muito importante para os cães” – e o humor irreverente – “se o traseiro tiver algum resquício do aroma de carne, significa que o cão pertence a um dono de posses e, portanto, merece respeito. Caso contrário, trata-se de vira-lata, e pode, portanto, ser mordido”. Hoje conhecem-se mais de 7 mil páginas ilustradas e manuscritas, com anotações como essas, e tratados sobre anatomia, hidráulica, biologia, geometria, mecânica, matemática e medicina. E especialistas na vida do homem multitarefa calculam que existam outras milhares perdidas.

Ironicamente, tal vitalidade intelectual e amplidão de interesses eram, também, uma maldição. O tempo gasto numa observação tão detalhada da natureza fez com que Leonardo raramente concluísse o que havia começado. Vários manuscritos e projetos foram interrompidos – às vezes no estágio de simples esboço, outras vezes, no meio de uma frase – sem jamais serem retomados. Sua própria produção como pintor foi prejudicada por esse vício de ver. Conhecem-se hoje apenas 17 pinturas dele. Nesse sentido, Da Vinci foi mais um homem de planos e sonhos do que de realizações. Ainda assim, personificou o ideal renascentista do homem completo mais do que qualquer um de seus contemporâneos. E olha que entre esses contemporâneos estavam Michelangelo, Rafael, Boticelli…

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Mão na massa

Nem só de arte viveu a Renascença. A revolução cultural – impulsionada pela prensa de tipos móveis de Gutenberg e pelas grandes navegações – acelerou o intercâmbio de idéias e o desenvolvimento de novas tecnologias. Nesse contexto, as repúblicas da Itália, constantemente ameaçadas de invasão, abri-ram espaço para uma nova profissão – a de engenheiro civil e militar.

Engenhosidade, você sabe, era o que não faltava a Leonardo. E tem mais uma coisa: para os ricos, investir em tecnologia valia mais a pena do ponto de vista econômico do que patrocinar a arte. Então, fosse por necessidade de sobrevivência, fosse por frenesi criativo, Da Vinci não poderia ficar fora dessa onda tecnológica. E ele serviu à nobreza italiana como arquiteto e engenheiro por anos. Projetou edifícios públicos, pontes, canais, fortalezas, armas. Mas sua capacidade de aprender com a observação do mundo e sua incrível imaginação o levaram mais longe ainda – a pelo menos 4 ou 5 séculos à frente de seu tempo. O ponto é que ele não se ateve só a resolver problemas do cotidiano. Se com a ciência o homem era capaz de compreender o mundo, com a tecnologia ele poderia dominá-lo. Leonardo entrou fundo nessa idéia: quis fazer com que o homem voasse e pudesse viver debaixo d’água. E acabou desenhando coisas que só virariam realidade nos séculos 19 e 20 – máquinas voadoras, pára-quedas, escafandros, submarinos… Profético.

Só que a maior parte dessas idéias visionárias jamais se concretizou, e justamente por causa do descompasso entre a mente do criador e a capacidade tecnológica da Renascença. Os veículos que ele projetou, por exemplo, não tinham uma fonte de energia que os impulsionasse – faltava alguém para inventar o motor a combustão interna…

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Alguns de seus projetos de arquitetura sofriam do mesmo “mal”: eram ousados demais para as técnicas de construção da época. Esse é o caso da ponte encomendada ao artista em 1502 pelo sultão de Istambul para atravessar um vão de 350 metros sobre o canal de Bósforo, na Turquia. Da Vinci desenhou uma ponte de pedra, com um único arco que deveria se estender por 250 metros sobre a água. Mas os construtores duvidaram que o projeto fosse realizável. O projeto de Da Vinci teve de esperar até 2001 para sair do papel. A ponte cruza hoje uma rodovia, numa cidadezinha próxima de Oslo, na Noruega. Leonardo jamais viu o novo mundo que sonhava criar com seus projetos.

Leonardo aproveitou bem tudo o que viu na vida, menos a velhice e a proximidade da morte. Depois de passar 3 anos em Roma – que, apesar da intensa atividade artística, não lhe ofereceu trabalho nenhum –, Da Vinci aceitou o convite de Francisco 1º e se mudou para a França, em 1516, com o título pomposo de “primeiro pintor, arquiteto e engenheiro do rei”. Era agora um homem beirando os 65 anos, que tinha a mão direita paralisada e o espírito ressentido e enciumado do sucesso de seus pares mais jovens, como Michelangelo e Rafael. Passou os 3 últimos anos de vida recluso num chalé confortável, próximo ao palácio de verão da realeza, organizando seus escritos, anotando pensamentos e rabiscando um ou outro teorema de geometria. A morte encontrou, num dia de maio de 1519, um pessimista angustiado com a idéia de que a alma, fosse lá o que fosse, só poderia existir num corpo vivo. Para Da Vinci , o Universo seria regido por leis harmoniosas – vida e morte se complementariam. E ele tinha consciência de que não estava imune a essas leis: “Quando pensava estar aprendendo a viver, eu também estava aprendendo a morrer”.

Razão e sensibilidade

Com imagens hiper-realistas, ele criou a literatura científica moderna. Os desenhos de Da Vinci são revolucionários porque não servem só de apoio aos textos. Eles carregam toda a informação. Quer dizer: além de tudo, ele ainda inventou o infográfico! 3. A mania por detalhes também ajudava na hora de registrar expressões faciais, como as da Madonna Litta, aqui ao lado. O fundo da cena, aliás, mostra como ele dominava outra técnica: a de dar profundidade à paisagem suavizando suas cores e contornos.

Qual é a sua, Mona?

Essa moça parece ora doce, ora esquiva, ora dissimulada. Tudo graças a um truque que Leonardo usava como ninguém: o sfumato – a coisa de borrar, esfumaçar, o contorno das figuras para dar efeitos inusitados. O sorriso enigmático da Mona Lisa vem daí. Não dá pra ver com nitidez o canto esquerdo dos lábios dela, certo? Então o estado de espírito da garota é aquele que a sua cabeça quiser ver na hora.

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Para saber mais

Leonardo da Vinci,

Keneth Clark, Penguin Books

https://www.museoscienza.org/english/leonardo/invenzioni.html,

Site com réplicas das invenções de Leonardo

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