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A praia radioativa

Ela é bem localizada, tem mar calmo e um calçadão agradável. Mas sua areia esconde um segredo: serve para fazer bombas atômicas.

Por Bruno Garattoni, com reportagem de Aglisson Lopes e Natalia Bourguignon
Atualizado em 10 fev 2023, 11h59 - Publicado em 24 jan 2018, 15h51

Texto originalmente publicado em 2018

A praia da Areia Preta é um achado. Ela fica no centro de Guarapari (cidade de 120 mil habitantes a uma hora de Vitória, capital do Espírito Santo), é cercada por prédios e margeada pela maior avenida da cidade, mas é incrivelmente limpa e tranquila. Tem pouquíssima gente, mesmo no verão. Por que será?

E por que ela é chamada “da areia preta”, se sua areia é clarinha? Penso nisso toda manhã, quando vou lá tomar sol e banho de mar. Até que, um dia, resolvo pesquisar a origem do nome. Encontro uma história incrível, que envolve militares americanos, um contrabandista russo, toneladas de material radioativo – e a própria areia na qual estou sentado.

Você provavelmente não sabe, mas vive exposto à radiação. E não é só quando vai fazer uma radiografia pedida pelo médico. Quando você come uma banana, uma cenoura ou uma batata, recebe uma pequena dose de radiação, pois esses alimentos contêm potássio – que é radioativo.

Quando você viaja de avião, também é irradiado: a 10 km de altura, onde os aviões voam, o campo magnético da Terra é mais fraco e deixa passar mais raios cósmicos (tanto que pilotos e comissários de voo recebem o dobro de radiação, por ano, do que as demais pessoas). Somando tudo, você recebe de 1 a 2 milisieverts (mSv) por ano de radiação. É normal, e não traz o menor problema. Em doses controladas, a radiação não é perigosa. Pelo contrário: ela pode até ser útil.

O primeiro a perceber isso foi o físico alemão Wilhelm Röntgen, que em 1895 descobriu como produzir radiação de alta frequência em laboratório – e batizou sua descoberta de raios X. Mais ou menos nessa época, o inglês John Gordon começou a extrair areia da cidade de Prado, no sul da Bahia, e vender para a Europa e os EUA. É que aquela areia continha tório, um metal radioativo que, se aquecido, produz uma luz forte e duradoura – e, por isso, passou a ser usado nas lâmpadas a gas que iluminavam a Europa e os EUA. Foi um sucesso, e Gordon logo estava vendendo areia para várias fabricantes de lâmpadas.

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A 2ª Guerra Mundial pegava fogo. E os EUA vieram em missão secreta ao Brasil —
para comprar areia.

Só que, na década seguinte, surgiu algo bem melhor: a lâmpada elétrica. Ela tomou o mercado das lâmpadas a gás, e a areia brasileira perdeu mercado. Até que a 2a Guerra Mundial detonou uma onda tecnológica: a corrida para produzir a primeira bomba atômica.

Cientistas americanos descobriram que era possível usar o tório para produzir urânio-233, que serve tanto para reatores nucleares quanto para bombas. Ele não é tão eficiente quanto o urânio-235 (que acabou sendo usado na bomba de Hiroshima), mas era muito mais fácil de conseguir, já que podia ser extraído da areia radioativa – que voltou a ter valor.

O Projeto Manhattan no Brasil

Em 1940, o russo Boris Davidovich desembarcou em Guarapari. Ele veio como procurador da Société Minière, uma empresa francesa que explorava a areia do Espírito Santo. Nessa época, ela já era conhecida como “areia monazítica”, termo usado até hoje. O termo vem do grego monazein, que significa “solitário” e denota a raridade desse tipo de areia: ela só existe na Índia, na África do Sul, em Madagascar e no Brasil – onde a maior quantidade está em Guarapari.

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Boris deixou os franceses de lado, e resolveu trabalhar por conta própria. Em apenas um ano, comprou todas as áreas que continham areia monazítica, e fundou uma empresa chamada Mibra (Monazita do Brasil). Ela fazia tudo: extraía a areia, processava e transportava em navios até os EUA, onde vendia para a Lindsay Light and Chemicals – empresa da qual Boris também era sócio.

Ou seja: ele ganhava nas duas pontas. Apesar disso, não pagava praticamente nenhum imposto. O fiscal encarregado de checar o recolhimento dos tributos morava num apartamento financiado pela própria Mibra. Uma bandalheira.

colagem com imagens antigas de pessoas na praia

Em fevereiro de 1944, o então secretário de Estado dos EUA, Corden Hull, veio ao Brasil. Ele estava atendendo a um pedido do general Leslie Groves, diretor do Projeto Manhattan, iniciativa secreta para desenvolvimento de armas atômicas. Groves sabia que cientistas na Alemanha e na União Soviética estavam fazendo experiências com tório, e queria garantir o suprimento desse material. Durante uma reunião secreta com Getúlio Vargas, em que a filha do presidente brasileiro serviu de tradutora, os americanos propuseram um acordo com o Brasil para fornecimento de areia monazítica. Eles se comprometeram a comprar 3 mil toneladas, por ano, durante três anos. O acordo era renovável por mais dez períodos, de três anos cada.

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Toda a negociação foi feita, segundo Groves, sem que o governo brasileiro soubesse exatamente o que os americanos queriam com a areia – apenas como demonstração da chamada “política de boa vizinhança” entre os países. “Eles [os brasileiros] sabiam que estávamos atrás do tório, mas não tinham certeza do motivo. Eu não acho que Vargas se importava com isso”, disse o general numa entrevista duas décadas depois.

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A areia radioativa foi usada para fazer uma bomba – quase 50% mais potente que a de Hiroshima.

Pode até ser, mas Getúlio acabou percebendo o valor da areia monazítica.  Em 1951, quando foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), a exploração dos principais minérios atômicos passou para a mão do Estado, que proibiu a exportação de tório, a não ser com autorização expressa do governo.

Naquele mesmo ano, o Brasil foi pressionado a decidir se enviava soldados para ajudar os americanos na Guerra da Coreia ou exportava mais areia monazítica para os EUA. Não mandou tropas e cedeu a areia, o que gerou polêmica: parte da imprensa e dos intelectuais queria que o País retivesse aquela matéria-prima e desenvolvesse sua própria tecnologia nuclear, o que não aconteceu na época (o Brasil só inauguraria sua primeira usina nuclear, Angra I, em 1985).

colagem

As negociações eram desfavoráveis ao Brasil, com a areia radioativa sendo entregue a preços baixos ou transacionada por produtos de valor muito menor (em um dos acordos, ela foi trocada por trigo dos EUA). O País até tentou exportar o tório já beneficiado por usinas locais, como forma de garantir mais lucros. Aí, os Estados Unidos passaram a taxar o metal em 33%, inviabilizando o negócio. A areia bruta não era taxada.

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Nos acordos de venda da areia, os EUA nunca concordaram em compartilhar tecnologia e conhecimento atômico com o Brasil, o que acabou gerando um
mal-estar político entre os países.

Enquanto isso acontecia, a extração de areia de Guarapari continuava, e a cidade ganhou fama. Em 1953, inaugurou até um hotel e cassino com o sugestivo nome “Radium”, bem em frente à praia da Areia Preta. Ele foi fechado em 1964, com a proibição dos cassinos no Brasil, e hoje está abandonado.

Os EUA só testaram a primeira bomba de urânio-233 quase dez anos após o fim da 2a Guerra Mundial. Em 1955 o artefato, que era conhecido pela sigla MET, foi detonado numa torre de 150 metros erguida no deserto de Nevada. A explosão deu certo, e alcançou 22 kilotons (ou seja, liberou energia equivalente a 22 mil toneladas de TNT). Era muita coisa – a bomba de Hiroshima, por exemplo, tinha 15 kilotons –, mas os militares ficaram decepcionados. Previam ainda mais potência, 33 kilotons.

A bomba feita com a areia brasileira fez parte de uma série de 14 testes da chamada Operação Teapot, realizada em 1955. Vídeos dos lançamentos foram liberados pelo governo americano em abril de 2017 e estão sendo publicados, aos poucos, na internet. Oficialmente, a MET foi a única arma com U-233 testada pelos EUA – que dizem ter interrompido os estudos com esse tipo de urânio logo em seguida.

Um ano depois, a vida de Boris Davidovich virou do avesso. Em 1956, o Congresso Nacional criou a CPI da Energia Atômica, na qual o russo foi acusado de pagar propina a juízes e desembargadores para levar a melhor em disputas de terra. Numa carta particular, que foi obtida pela CPI, ele mencionava a possibilidade de subornar os jornais da época. “Vamos ter que comprar O Globo e  A Tribuna da Imprensa”, escreveu. Para piorar, o Ministério do Trabalho foi fiscalizar um local de extração de areia monazítica em Guarapari e encontrou 27 trabalhadores doentes, com magreza extrema e anemia.

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Apesar disso, a CPI não deu em nada. Ninguém foi condenado. Mas Boris morreu quatro anos depois, em 1960, ao sofrer um infarto ao desembarcar no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Com sua morte, a Mibra acabou. A areia de Guarapari foi explorada até 1986, quando a estatal Nuclebrás encerrou as atividades por lá.

De Guarapari até Chicago

Vários fatores levaram os EUA a reduzir as pesquisas com o urânio-233 produzido a partir do tório brasileiro. Um deles, conforme mostram documentos do governo americano, foi a descoberta de novas fontes de urânio-235. Mas os militares americanos já haviam processado toneladas de areia e estocado quilos de urânio-233, que não tinha mais utilidade – e virou um estorvo.

Atualmente, estima-se que haja 1.500 quilos de U-233 armazenados em depósitos militares dos EUA. O governo americano avaliou, em 2012, que seriam necessários US$ 500 milhões para tratar e descartar o material em um local apropriado – provavelmente no deserto de Nevada, onde aconteciam os testes nucleares. A previsão é de que o processo só termine em 2020, segundo o Departamento de Energia dos EUA.

A areia de Guarapari também criou um problema ambiental por lá. Lembra da Lindsay Light, aquela empresa que comprava a areia? Depois de retirar o tório e repassá-lo ao Exército americano, ela vendeu o resto da areia para construção civil na cidade de Chicago. Bairros inteiros, como Streeterville, foram aterrados com sobras de areia radioativa.

Depois do programa militar, o que sobrou da areia foi parar em chicago – onde se tornou um problema.

O problema só foi descoberto na década de 1990, quando os novos donos da Lindsay Light fizeram acordos com a Justiça e se comprometeram a pagar pela limpeza de áreas contaminadas. O governo acredita que quase 150 mil toneladas dessa areia tenham sido despejadas em terrenos a oeste de Chicago. A areia monazítica não é agudamente radioativa.

Mas, se você ficar em contato com ela por um período muito longo, em ambientes fechados, pode ser exposto a uma quantidade imprópria de radiação. Em 2010, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), da USP, publicou um estudo que analisa a areia de várias praias do Espírito Santo. As amostras da praia da Areia Preta foram as mais radioativas, “excedendo de 2 a 30 vezes o limite recomendado na construção civil”. Por isso, são consideradas “sem aplicação possível”, ou seja, não podem ser utilizadas para fazer uma casa ou um prédio – do contrário, os ocupantes daquele imóvel poderão, ao longo dos anos, sofrer exposição excessiva à radiação.

colagem

O estudo também avaliou a radiação na praia. Aí não há problema. Se você for a Guarapari uma vez por ano, ficar lá um mês e passar 12 horas por dia na areia (haja disposição), totalizando 360 horas, será exposto a 1,2 milisievert de radiação. É o dobro da dose anual normal – mas está bem longe de causar qualquer problema. Um reles exame de raio X emite bem mais, até 8 milisievert. (Para aumentar seu risco de câncer, você precisa tomar pelo menos 100 mSv).

Para quem mora lá, também não há problema. Se a pessoa for à praia da Areia Preta quatro horas por dia, todo dia, irá totalizar 1.460 horas de exposição ao ano. Mesmo nesse caso, ela receberia apenas 5 mSv de radiação, uma quantidade modesta. 

Em suma: a praia da Areia Preta é radioativa, sim, mas absolutamente segura. (Há quem acredite, até, que sua areia amenize doenças como artrite e psoríase.) Talvez seja vazia porque as pessoas têm medo dela. Porque foi sendo cercada, e encurralada, por prédios. Ou porque, depois de ser escavada por décadas e décadas, hoje ela tenha pouquíssima areia – e bem pouco espaço para tomar sol.

E a culpa disso não é da radioatividade. É de uma coisa bem menos assustadora, mas tão destrutiva quanto: a exploração descontrolada, e nada sustentável, dos recursos naturais. 

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