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Louis Pasteur, Ciência nas ruas

O criador da vacina anti-rábica e da Microbiologia uniu as experiências de laboratório às demandas da vida cotidiana.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h08 - Publicado em 31 Maio 1989, 22h00

Cristina de Medeiros, de Paris

Quase um século após a morte de Louis Pasteur seu nome está impresso no cotidiano de milhões de pessoas. Em cada saquinho de leite comprado numa padaria, por exemplo, a embalagem avisa que o produto está pasteurizado, ou seja, livre de germes causadores de doenças. O cientista francês também empresta o nome a 27 institutos de pesquisa e tratamento de doenças infecciosas e parasitárias espalhados pelo mundo. Era assim mesmo que o químico e microbiologista Louis Pasteur gostava de fazer ciência: em contato com a vida real, confirmando suas teorias com experiências e preocupando-se em divulgar os resultados de suas pesquisas, para que fossem aplicados em benefício da indústria, da Medicina ou da agricultura. A ciência de Pasteur, antes de tudo, estava casada com o dia-a-dia.

Além da pasteurização, o nome de Pasteur é prontamente associado ao da vacina anti-rábica. Embora essas duas descobertas sejam as mais famosas, ele também foi o pioneiro da Microbiologia, inaugurou um ramo da Química chamado Estereoquímica e sobretudo provou que são os microorganismos que causam as doenças e os processos de fermentação. Antes de Pasteur, a Medicina mal conhecia as causas das doenças contagiosas e por isso era incapaz tanto de preveni-las como de tratá-las. A cirurgia era o último recurso em que se pensava para salvar um doente, pois a menor incisão do bisturi freqüentemente era uma porta aberta para a morte. Pasteur provocou uma revolução científica que transformaria as condições da existência humana.

Durante sua infância, porém, nada sugeria a inteligência curiosa do futuro brilhante cientista. Filho de um curtidor de couros, Pasteur nasceu em 27 de dezembro de 1822, na pequena cidade de Dolé, no leste da França, a 370 quilômetros de Paris. Até os 20 anos, ainda que aluno razoável, só tinha olhos para o desenho. Os trabalhos dessa época, que incluem pastéis, litografias e desenhos, estão expostos em seu museu, em Paris, e revelam uma técnica surpreendente, embora puramente intuitiva. Numa dessas pinturas, Pasteur retratou o pai – e o quadro permite supor que, se o autor tivesse seguido a carreira de artista plástico, teria feito sucesso.

Mas estudar era preciso e Pasteur formou-se no colégio de Besançon, onde junto com o diploma recebeu o veredicto implacável do professor de Química: “Medíocre”. É nessa época que seu temperamento obstinado começa a despertar.Em Paris, ao prestar concurso para a Escola Normal Superior, foi aprovado em décimo quinto lugar entre 22 candidatos. Insatisfeito, deixa o curso, prepara-se para novo exame e é aprovado no ano seguinte – dessa vez em quarto lugar. Leva o curso tão a sério que recebe sucessivas cartas do pai pedindo-lhe para reduzir o ritmo de trabalho. Em 1848, um ano depois de obter o doutorado, apresentou à Academia de Ciências de Paris uma descoberta notável em Química.

Pasteur investigara os cristais do ácido paratartárico, que havia sido recentemente descoberto. Para tanto, dispunha de equipamentos bastante rudimentares: seus microscópios eram capazes de proporcionar aumentos de até 800 vezes – pouco mais que os modelos amadores de hoje em dia. Pasteur demonstraria que um dos cristais do ácido paratartárico que era igual aos do ácido tartárico podia ser utilizado na nutrição de microorganismos, enquanto o outro não era assimilado por organismos vivos. Baseado nesses experimentos, elaborou a teoria da assimetria molecular, segundo a qual as propriedades biológicas das substâncias químicas não dependem apenas da natureza dos átomos que formam suas moléculas mas também da disposição desses átomos no espaço. Esse novo ramo da ciência receberia o nome de Estereoquímica.

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Em 1849, aos 27 anos, Pasteur foi nomeado professor de Química da Universidade de Estrasburgo, onde conheceu a jovem Marie Laurent, filha do reitor. Apaixonado a ponto de não conseguir concentrar-se em mais nada, decide pedi-la em casamento, não sem antes – como exigia a praxe da época – mandar uma carta ao senhor reitor explicando sua origem humilde e condição financeira apenas razoável. Pelo visto, a carta foi bem recebida, pois dois meses depois Pasteur casou-se com Marie, que permaneceria sua colaboradora dedicada por mais de 45 anos. O casal teve cinco filhos, mas três meninas morreram de doença ainda crianças, sobrevivendo apenas os filhos Jean-Baptiste e Marie-Louise. Jean-Baptiste seria o grande companheiro dos últimos anos do pai, quando este sofreu dois derrames sucessivos.

Pasteur revelou-se um excelente professor. Sério, introspectivo, preparava as aulas meticulosamente, preocupado com todos os detalhes, procurando os termos mais adequados e um perfeito encadeamento de idéias. Jamais afirmava algo sem uma demonstração. Quando assumiu o posto de reitor da Universidade de Lille, em 1854, colocou em prática conceitos modernos de educação. Instituiu cursos noturnos para os jovens trabalhadores, levava os alunos às fábricas da região e organizava cursos práticos, para demonstrar a relação que acreditava existir entre teoria e prática. Nesse sentido, estava perfeitamente sintonizado com as melhores tendências de seu tempo tão carregado de inovações.

Em sua atividade, Pasteur exibia um caráter obstinado. Além de administrador da Escola Normal, onde ficou conhecido pelo seu apego militar à hierarquia e à disciplina, ensinava Química na Sorbonne e dedicava várias horas do dia à pesquisa, trabalhando até nos fins de semana.”Tenho a impressão de que estarei cometendo um roubo se passar um dia sem trabalhar”, dizia. Jamais deixou de prosseguir nas suas pesquisas, mesmo quando, no início de seu período como diretor da Escola Normal, o laboratório colocado à sua disposição não passava de um sótão inabitável. Depois de três anos ali, transferiu-se para um minúsculo pavilhão, onde, para que coubesse todo o material de que precisava, era obrigado a trabalhar ajoelhado.

Essa foi, não obstante, uma fase extremamente produtiva. O acaso o desviou de suas pesquisas com cristais, o grande fascínio de sua vida. Ele havia descoberto que um dos dois tipos de cristais do ácido paratartárico, que se dissocia na fermentação, servia para alimentar microorganismos. Pasteur concluiu então que a fermentação só poderia ser causada por uma substância viva, ao contrário do que imaginavam os químicos. Assim, a fermentação passou a ser o tema de suas novas pesquisas.

Em 1854, quando Pasteur começou a se interessar pelos micróbios, o nome nem sequer existia: esses seres microscópicos eram conhecidos como animálculos, levedos, vibriões ou glóbulos. Sua presença era notada nas fermentações, sem que se conhecesse porém, sua função exata no processo. Com um estudo que se estenderia por mais de quinze anos, Pasteur criaria as bases da ciência hoje conhecida como Microbiologia. O início desse trabalho deu-se em 1856, quando um industrial de Lille solicitou-lhe ajuda. Proprietário de uma destilaria, ele se preocupava com o destino de sua produção de álcool de beterraba, comprometida por muitos problemas cujas causas não conseguia identificar.

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Pasteur constatou então que o suco da beterraba apresentava os tais animálculos: redondos, quando a fermentação era sadia; e alongados, quando defeituosa. O mesmo fenômeno se repetia na fermentação do leite. Observando ao microscópio o movimento dos glóbulos, Pasteur concluiu que sua febril atividade alterava a composição do líquido. O próximo passo seria determinar a procedência desses seres que agiam como fermento. Pasteur acreditava que os germes viviam em suspensão no ar e decidiu provar a hipótese.

Em primeiro lugar, imaginou recolher amostras de poeira, mediante um dispositivo concebido por ele mesmo para aspirar o ar da rua: um tubo que tinha numa das pontas um algodão funcionando como rolha. Esse algodão seria em seguida introduzido num frasco cheio de líquido fermentável e colocado em uma estufa a uma temperatura de 25 a 30 graus centígrados. Ao final de alguns dias, o líquido estaria coberto por uma camada mais espessa, sinal de que os microorganismos do ar, captados pelo algodão, tinham-se desenvolvido. Sempre cuidadoso, Pasteur tomou certas precauções: primeiro, certificou-se de que tanto o tubo com o algodão como o frasco estavam totalmente desinfetados.

Também o líquido fermentável utilizado na experiência fora mantido em uma estufa à temperatura de 110 graus. Além disso, num procedimento que se tornaria habitual em todo tipo de pesquisa, outro frasco, cheio do mesmo tipo de líquido, foi utilizado como termo de comparação – ao contrário do outro, nele não se introduziu o algodão contaminado. Concluída a experiência, o líquido em contato com o algodão poluído estava fermentado, enquanto o que permanecera em condições assépticas continuava puro, comprovando a teoria de Pasteur. A demonstração, contudo, não foi suficiente para convencer os cientistas partidários da teoria da “geração espontânea”, segundo a qual os organismos sadios desenvolviam doenças espontâneamente.

As ciências biológicas, apesar de todo o salto cultural do século XIX, ainda abrigavam erros e crendices do passado. Acreditava-se, por exemplo, que a própria carne produzia os vermes que surgiam com a putrefação, e não que esses vermes estivessem no ambiente. Para convencer os críticos, Pasteur desenvolveu uma técnica mais complexa capaz de comprovar sua tese. Durante o ano de 1860, percorreu diferentes lugares da França coletando amostras de ar em pequenas balões de vidro. Expostos no pátio do Observatório de Paris, os líquidos contidos nos balões ficaram turvos pela fermentação, enquanto em Chamonix, a 2 mil metros de altitude, apenas um entre vinte balões revelou a existência de microorganismos.

Pasteur pôde então afirmar que a poeira em suspensão no ar era a origem exclusiva da vida nas infusões e que os germes estão repartidos de forma desigual. Ao lado dos estudos sobre geração espontânea, Pasteur prosseguia nas pesquisas sobre fermentação. Depois do álcool de beterraba, passou a estudar o vinho, o vinagre e a cerveja, identificando os germes que tornavam as bebidas amargas e impróprias para consumo. As experiências com o ar ensinaram-lhe que os instrumentos mal esterilizados transformam-se em refúgio de bactérias, que podem ser eliminadas a altas temperaturas.

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Assim, descobriu que um calor da ordem de 60 graus impede a proliferação daqueles germes no vinho, cerveja, vinagre e leite. Recomendou então aos produtores que conservassem os líquidos a essa temperatura até embalá-los em recipientes assépticos e hermeticamente fechados. Esse procedimento, adotado hoje em todo o mundo, deve o nome a seu inventor: pasteurização. Em 1873, já membro da reverenciada Academia Francesa, Pasteur continua seu tenaz combate às moléstias infecciosas. De todas as doenças mortais da época, existia uma que o interessava especialmente, e cuja cura, descoberta por ele próprio no início da década de 80, lhe traria fama mundial – a raiva.

Transmitida por cães, raposas ou lobos, a raiva mata depois de uma longa agonia, em que as vítimas são pouco a pouco dominadas por uma paralisia, seguida de fortes convulsões, e acometidas de intensa sede, ao mesmo tempo que manifestam forte aversão aos líquidos. Antes de Pasteur, os doentes eram tratados segundo métodos os mais estranhos e ineficazes, como a ingestão do fígado de um, animal raivoso, ou de olhos de caranguejo, banhos de imersão no oceano ou ainda compressas de pólvora. A primeira descoberta de Pasteur foi a de que a raiva era uma doença do sistema nervoso e que só se manifestava quando o micróbio atingia o cérebro numa viagem cujo ponto de partida era a mordida. Quanto mais provida de nervos fosse a área atingida, mais rápido seria esse percurso.

Depois de isolar o vírus causador da raiva em tecidos de animais contaminados – embora ignorasse o próprio conceito de vírus, os detalhes de sua ação no organismo e os mecanismos de sua reprodução -, Pasteur conseguiu produzi-lo numa forma atenuada e chegou à vacina, que se provou eficiente quando testada em cobaias. Faltava-lhe, porém, confiança para testá-la em seres humanos. Mais do que o risco de falhar e ser impiedosamente massacrado pelos críticos – que não lhe perdoavam ter fuzilado a idéia da geração espontânea -, Pasteur temia sacrificar vidas humanas. Já estava pronto para testar a vacina em si próprio, quando as circunstâncias mudaram seus planos. No dia 6 de julho de 1885, foi levado a seu laboratório um menino de 9 anos, Joseph Meister, que havia sido mordido mais de quinze vezes por um cão raivoso.

Depois de ouvir o médico que examinou Meister, Pasteur convenceu-se de que a qualquer momento o menino ia contrair a doença e decidiu aplicar-lhe o tratamento. Durante dez dias, certamente os dez mais longos dias da vida de Pasteur, pontuados de angústia, insônia e até febre, Meister recebeu treze aplicações de vacina no abdômen. Várias semanas se passaram sem que a doença se manifestasse.

Meister estava salvo. Depois, sucederam-se várias outras curas e a novidade se espalhou, levando um número cada vez maior de pessoas mordidas a seu laboratório – vindas não só de Paris e do interior da França como também de outros países, até da longínqua Rússia. Em 1886, de 726 pessoas tratadas, apenas quatro não puderam ser salvas e, mesmo assim, porque, mordidas no rosto ou na cabeça, só foram levadas a Pasteur muito tempo depois de atacadas.

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Foi o caso de Louise Pelletier. uma menina de 10 anos, mordida na cabeça e levada ao laboratório 37 dias mais tarde. Seu estado, a essa altura, já era desesperador. Pasteur sabia que a vacina não teria nenhum efeito. Sabia também que seus adversários só estavam à espera de uma tragédia para retomar os ataques contra ele. Apesar disso, o desejo de salvar uma vida prevaleceu acima de qualquer consideração racional: Pasteur submeteu a menina ao tratamento, que, como ele imaginava, não deu resultado. Quando ela morreu , dias mais tarde, o cientista, que não arredara pé de sua cabeceira, teve uma incontrolável crise de choro.

O pequeno laboratório de Pasteur já não comportava tantas pessoas em busca de tratamento contra a raiva.Por isso, ele solicitou à Academia de Ciências a criação de um estabelecimento especial para vacinação contra raiva, que acabou construído com donativos vindos de toda parte. Entre os doadores, estava o imperador brasileiro Pedro II, cujo busto ornamenta a biblioteca do estabelecimento, chamado, naturalmente, Instituto Pasteur. Inaugurado em novembro de 1888, até hoje é um dos mais importantes centros de pesquisa do mundo.

Louis Pasteur dirigiu o instituto até sua morte, em 28 de setembro de 1895, aos 72 anos. No seu septuagésimo aniversário, recebeu a última grande homenagem em vida, no grande anfiteatro da Sorbonne, a universidade de Paris. Hemiplégico, apoiado ao braço do presidente da República, foi aplaudido de pé por centenas de personalidades do mundo inteiro, vindas especialmente para a cerimônia. E Pasteur, o típico cientista do século XIX que chamava a si a responsabilidade de desenvolver pesquisas sem depender de instituições, declarou com deliberada modéstia: “Minha contribuição foi pequena, mas tenho a consciência de ter feito o que pude”

Para saber mais:

Eles voltaram

(SUPER número 6, ano 11)

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Da raiva à AIDS.

O Instituto Pasteur comemorou em Paris seu centenário em 1988 com o mesmo propósito de seu criador: vencer as doenças e melhorar as condições de saúde pública. Mas suas instalações mudaram muito desde que Pasteur o inaugurou. Vários edifícios foram anexados ao prédio inicial e o conjunto abriga hoje mais de 2 mil pessoas, das quais quinhentas são pesquisadoras permanentes. As atividades de pesquisa do Instituto são repartidas em oitenta unidades, dedicadas à Microbiologia, à Biologia do desenvolvimento e à Imunologia.

Entre as pesquisas recentes mais importantes estão a elaboração da vacina contra a hepatite B, que começou a ser distribuída publicamente em 1981, e a busca de uma vacina contra a malária, que pode ser viabilizada nos próximos cinco anos. A pesquisa, por sinal é dirigida pelo médico brasileiro Luís Hildebrando Pereira da Silva. Em 1983, a equipe chefiada pelos médicos Jean-Luc Montagnier, Jean-Claude Chermann e Françoise Barré foi a primeira a identificar o vírus da AIDS, e o Instituto criou um laboratório especialmente para combater a doença.

Mas não há só pesquisa no Instituto Pasteur. Existem ali também um hospital especializado nas doenças pesquisadas pelos cientistas, centros de referência que prestam serviços de controle epidemiológico junto ao Ministério da Saúde francês e à Organização Mundial de Saúde, dois museus e um centro de estudos pós-universitários. O velho Pasteur teria de que se orgulhar.

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