Se a última poesia que você leu foi Marília de Dirceu, esse post é para você.
Nada contra Tomás Antônio Gonzaga, mas o Arcadismo era febre entre os jovens nascidos há mais de 200 anos. Apesar de o amor seguir sendo um dos grandes temas dos poetas (até mesmo os de Instagram) a forma de versar sobre o sentimento ganhou crueza, novas interpretações e mais apego à realidade que à idealização. Prova disso, é o livro Outros Jeitos de Usar a Boca, da indiana de 24 anos Rupi Kaur, lançado recentemente no Brasil pela editora Planeta.
A obra fala de amor, sim. Mas dá a mesma atenção ao trauma, à perda, ao abuso e à descoberta da forma de amor mais importante: o próprio. Outros Jeitos de Usar a Boca ultrapassou um milhão de cópias vendidas em um ano e ficou mais de 40 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Antes de ler lê-lo, achei curioso que um livro de poesia, gênero que raramente lidera ranking de vendas, tenha ido tão longe. Mas depois da leitura, os porquês do sucesso de Rupi Kaur ficaram bem claros.
Aqui vão alguns deles:
1) Linguagem direta
A primeira coisa que vêem à mente quando falamos de poesia é rebuscamento, palavras difíceis, estrutura inacessível. É claro que essa é uma visão bastante errônea e defasada, mas o fato é que poesia não é o gênero literário mais democrático, muito menos o mais vendido. Mesmo entre pessoas que gostam muito de ler, a poesia encontra certa relutância em ser aceita. E é aí que Rupi acerta: seu trabalho vai na contramão do que é menosprezado(injustamente) na poesia.
Os versos de Outros Jeitos de Usar a Boca são tiros certeiros. A linguagem é direta, honesta e sem formalismos. Alguns não ultrapassam cinco linhas, outros ocupam duas páginas. Apesar da forma simples, a complexidade dos temas de Rupi não é afetada. E nem preciso dizer: não existe uma só página de monotonia.
nossas costas
contam histórias
que a lombada
de nenhum livro
pode carregar
-mulheres de cor
2) Temática brutal
Já disse que o trabalho de Rupi é um tiro certeiro? Pois bem, na forma E no conteúdo.
O livro é dividido entre quatro partes que formam um belo arco narrativo sobre a condição de ser mulher hoje e a complexidade de se relacionar: a dor, o amor, a ruptura e a cura. As duas últimas partes são um pouco mais extensas que as primeiras, mas não menos fortes.
–pai. você sempre liga sem ter nada especial a dizer. você pergunta o que estou fazendo ou onde estou e se o silêncio entre nós se estende por uma vida dou um jeito de encontrar perguntas que façam a conversa continuar. o que eu queria mesmo dizer é. eu sei que o mundo te despedaçou. foi com tudo pra cima de você. não te culpo por não saber ser delicado comigo. às vezes fico acordada pensando em todos os machucados que você tem e nunca vai dizer. eu venho do mesmo sangue dolorido. do mesmo osso tão sedento por atenção que desabo em mim mesma. eu sou sua filha. eu sei que conversa-fiada é o único jeito que você conhece de dizer que me ama. porque é o único jeito que eu conheço.
3) Universalidade
Boas histórias são aquelas que partem do individual, do particular para contar algo universal.
A vida de Rupi, por exemplo, é muito particular: ela nasceu em Punjab, na Índia, emigrou para o Canadá ainda criança, cresceu em uma comunidade de imigrantes no subúrbio de Toronto e é adepta de uma religião cercada de muito preconceito, o sikhismo. Suas vivências são bastante específicas, rodeadas de tabus e regras sobre ser mulher.
“Para as mulheres do sul da Ásia, você precisa ser quieta e não pode ter muitas opiniões”, disse em entrevista ao jornal The Guardian. Mesmo assim, os poemas criados por ela transcendem essas particularidades, conseguem conversar e tocar pessoas dos mais diversos contextos. Não é necessário ter passado pelas mesmas experiências que ela narra para sentir frustração de ter um pai alcoólatra, a raiva de ser silenciada ou a dor de viver um abuso.
o terapeuta coloca
a boneca na sua frente
ela é do tamanho das meninas
que seus tios gostam de apalpar
mostre onde ele colocou as mãos
você mostra o lugar
entre as pernas aquele
que ele arrancou com os dedos
igual a uma confissão
como você está se sentindo
você desfaz o nó
da garganta
com os dentes
e diz bem
um pouco dormente
– sessões nos dias de semana
4) A autora é uma poeta pop
Na mesma entrevista ao The Guardian, Rupi disse que não existia um mercado para poesias sobre trauma, abuso, perda, amor e cura sob a perspectiva de uma imigrante, mulher e Punjabi-Sikh. De fato, pode até ser que não existisse. Mas Rupi criou esse mercado. Compartilhava suas poesias nas redes sociais e passou a ver que muita gente se sensibilizava com o seu trabalho. Quando falo muita gente, não é hipérbole alguma: Rupi tem 1,2 milhão de seguidores no Instagram, 124 mil no Twitter e 321 mil no Facebook.
Vendo o sucesso online de seus poemas, a jovem lançou o livro de maneira independente na Amazon em 2014. A compilação de seus poemas deu tão certo que em outubro do ano seguinte a editora Andrews McNeel Publishing publicou uma segunda edição de Outros Jeitos de Usar a Boca. Na mesma época de 2016, a antologia já estava na lista de mais vendidos do The New York Times.
Em 2015, Rupi se envolveu em uma polêmica online e ficou ainda mais famosa. Ela postou uma foto deitada, de pijamas e em sua calça havia uma pequena mancha de sangue. A imagem fazia parte de um conjunto de imagens para discutir tabus sobre menstruação, mas o Instagram tirou a publicação do ar. Como é de se esperar, a poeta não deixou a hipocrisia passar e respondeu à censura. O Instagram desistiu da decisão e manteve a foto de Rupi.
“Obrigada Instagram por fornecer a resposta exata que meu trabalho foi criado para criticar. Vocês deletaram a minha foto duas vezes, afirmando que ia contra as diretrizes da comunidade. Eu não vou pedir desculpas por não alimentar o ego e orgulho de uma sociedade misógina que terá o meu corpo em uma roupa íntima, mas não está de acordo com um pequeno vazamento quando as suas páginas estão cheias de incontáveis fotos/contas onde mulheres (muitas menores de idade) são objetificadas, pornificadas e tratadas como menos que humanas.”
5) Ilustrações minimalistas
Rupi não é artista só da palavra. Além de escrever, ela faz performances, atua, fotografa e ilustra. Se as poesias não são motivos suficientes para ler sua antologia, os desenhos são. Todas as ilustrações minimalistas de Outros Jeitos de Usar a Boca foram feitas por Rupi.
Ela conta que herdou o apreço por desenho da mãe, que tem a atividade como hobby até hoje. Quando a família de Rupi chegou ao Canadá, ela não conseguia falar em inglês com outras crianças, isso a fez passar muito tempo sozinha e, consequentemente, a desenhar.
“Como pertencia a uma família de imigrantes, eu não tinha permissão para fazer esportes ou participar de acampamento, então o único que eu podia fazer era artes. Sempre pintei e li, como se a minha vida dependesse disso”, disse em entrevista ao site espanhol Woman.
a solidão é um sinal de que você está precisando desesperadamente de si mesma
6) O título
Na versão original, a antologia chama-se Milk and honey. E há inúmeras menções às duas palavras ao longo do livro.
como é tão fácil pra você
ser gentil com as pessoas ele perguntou
leite e mel pingaram
dos meus lábios quando respondi
porque as pessoas não foram
gentis comigo
Mas em português o livro ganhou um novo nome que, a meu ver, é muito mais provocante e rende milhares de outras interpretações.
7) Feminismo
Se a intenção de Rupi era fazer com que as mulheres que lessem esse livro se sentissem acolhidas, ela conseguiu. A antologia tem vários poemas sobre sororidade, empoderamento e empatia, e o último capítulo é uma obra à parte nesse quesito. “A cura” é um abraço, soa como se uma pessoa próxima muito querida tivesse escrito uma carta e nos enviado.
quero pedir desculpas a todas as mulheres
que descrevi como bonitas
antes de dizer inteligentes ou corajosas
fico triste por ter falado como se
algo tão simples como aquilo que nasceu com você
fosse seu maior orgulho quando seu
espírito já despedaçou montanhas
de agora em diante vou dizer coisas como
você é forte ou você é incrível
não porque eu não te acha bonita
mas porque você é muito mais do que isso
Sabe aquele momento em que uma amiga está passando por uma fase difícil, de desamor, baixa estima ou quando não consegue sair de um relacionamento abusivo e nada do que você diz parece fazer efeito? Tente mandar algumas poesias da Rupi ou Outros Jeitos de Usar a Boca inteiro. São tiros certeiros.
Quer mais motivos para conhecer o trabalho de Rupi? Assista à palestra dela na plataforma TED.